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Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, responde a perguntas da comunicação social durante uma conferência de imprensa após a sua visita aos EUA no âmbito da presidência russa do Conselho de Segurança da ONU, Nova Iorque, 25 de abril de 2023

Pergunta (tradução do inglês): O senhor disse que a Rússia não esqueceria nem perdoaria os EUA por terem negado os vistos aos jornalistas russos que deveriam acompanhá-lo. O que é que isto significa? Importa-se de explicar?

Serguei Lavrov: A nossa representante, Maria Zakharova, comentou hoje em pormenor este assunto no Comité de Informação. Consideramos que é de indignar que coisas como esta aconteçam.  Todos os postulados sobre a liberdade de imprensa e o acesso à informação proferidos pelos líderes ocidentais, entre os quais os norte-americanos, e consagrados nas resoluções do CDH e da OSCE remontam aos princípios dos anos 1990. Naquela altura, a União Soviética estava aberta a tais acordos. Agora que o Ocidente se sente desconfortável com opiniões alternativas e com a possibilidade de os habitantes do planeta e as populações dos países em causa acederem a factos contrários às narrativas ocidentais, ele começou a "pressionar" fortemente os meios de comunicação social que não lhe obedecem.

Os nossos embaixadores em diversos países, incluindo nos EUA, citam regularmente provas concretas de discriminação contra os media russos. Há muitos anos, a França recusou o pedido de acreditação à cadeia de televisão RT e à Agência Sputnik para o Palácio do Eliseu, apelidando-as de "instrumentos de propaganda". O Senhor John Kirby também disse, referindo-se aos nossos jornalistas a quem não haviam sido concedidos vistos para cobrir esta parte da nossa presidência, que os jornalistas russos eram propagandistas e nada tinham a ver com a visão norte-americana e democrática da liberdade de expressão. A Primeira Emenda à Constituição dos EUA acaba por não significar nada na prática. Temos de ver como funciona a liberdade de expressão nos EUA. Ouvi dizer que Tucker Carlson se demitiu da Fox News. É uma notícia interessante. Podemos apenas conjeturar qual foi o motivo. É evidente que a paleta de opiniões no espaço mediático norte-americano ficou menos variada.

Quanto à nossa reação. Não deixaremos de ter em mente este comportamento ímprobo dos dirigentes norte-americanos. Pelo que entendo, esta decisão foi de autoria do Departamento de Estado dos EUA. Não esqueceremos isso quando os norte-americanos precisarem de algo de nós.

Pergunta (tradução do inglês): O que o senhor pensa do Sudão e do que está a acontecer lá? O que pode dizer sobre o envolvimento da EMP Wagner? Perguntámos a Hemetti, líder deste grupo, sobre esta empresa. Ele não negou o seu envolvimento. A quem é que esta EMP reporta: ao governo russo ou a outro organismo?

Serguei Lavrov: Quanto à Wagner, é uma empresa militar privada. Já abordámos este assunto muitas vezes, incluindo nesta sala, quando, há uns dois anos, os nossos colegas franceses e o chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, nos censuraram por mantermos relações com o Mali e a República Centro-Africana e armaram um mini-escândalo. Numa altura em que os franceses começaram a encerrar a sua operação "Barkhan" e a fechar as suas bases militares no norte do país onde existia a principal ameaça terrorista, o governo do Mali contratou a EPM Wagner para não ficar indefeso. Este era um direito que lhe assistia. O Ministro dos Negócios Estrangeiros do Mali disse-o numa reunião da Assembleia Geral da ONU. Ninguém está a fazer segredo disso. A RCA, o Mali, o Sudão e uma série de outros países cujos governos, autoridades legítimas, contratam serviços do gênero, têm o direito de o fazer. Se o senhor está preocupado com este assunto, navegue pela Internet para ver quantas EPMs existem nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em França. Há-as às dezenas. Muitas delas atuaram, durante muitos anos, nas nossas fronteiras, incluindo dentro da Ucrânia. Isto também dá que pensar.

Quanto ao que está a acontecer no Sudão. É uma tragédia. Estão a morrer pessoas. Há uma grave ameaça para os diplomatas. Estamos cientes disso e estamos a acompanhar a situação. Hoje, representantes do Fundo das Nações Unidas para a Infância já pediram à nossa Embaixada que, de alguma forma, abrigasse o seu pessoal, porque estão num local inseguro. Não sei como é que isso pode ser feito. Mas vamos tratar deste assunto agora. Lembre-se de como o Estado sudanês "evoluiu". Primeiro existiu como país único chamado Sudão, depois no seu lugar surgiram o Sudão e o Sudão do Sul. Tudo isso aconteceu diante dos nossos olhos. Os nossos colegas norte-americanos fizeram da divisão do Sudão em duas partes uma das suas prioridades em matéria de política externa. Pediram-nos que persuadíssemos o então Presidente sudanês, Omar al-Bashir, a aceitar a realização da livre vontade e a divisão voluntária do país. Francamente, defendemos que os povos do Sudão decidissem por si próprios. O resultado foi a divisão do país em duas partes. Surgiu o Sudão do Sul. Aparentemente, os norte-americanos, como promotores deste "divórcio", deveriam ajudar os dois novos Estados a coexistirem, a desenvolverem as suas economias e a garantirem o bem-estar dos seus cidadãos, mas algo não lhes agradou. Não vou entrar em pormenores, mas os EUA anunciaram sanções contra os dirigentes do Sudão e do Sudão do Sul. Depois, o FMI começou a apresentar exigências. Esta "engenharia" geopolítica não leva ao bem. Eu recomendaria que fosse feita a principal conclusão da atual crise sudanesa. Não devemos impedir os africanos de negociarem entre si nem acrescentar exigências externas (contrárias aos interesses destes países) aos seus esforços para resolverem os seus próprios problemas à maneira africana.

Pergunta (tradução do inglês): Comente, por favor, o acordo de cereais com a Ucrânia. A Rússia respondeu à carta do Secretário-Geral da ONU dirigida ao Presidente Vladimir Putin sobre a expansão e a prorrogação do acordo? A China é o maior beneficiário deste cereal. A China pediu à Rússia para prorrogar este acordo?

Serguei Lavrov: Digo-lhe desde já que não discutimos este tema com os nossos parceiros da China, inclusivamente por razões puramente pragmáticas. Partimos do facto de termos com a China uma fronteira comum, através da qual as exportações e importações são realizadas. Não precisamos do Mar Negro para que a China compre os nossos cereais. O mesmo pode ser dito sobre outros países que fazem fronteira com a Rússia, como o Cazaquistão.

Quanto à carta dirigida ao Presidente russo, Vladimir Putin, que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, entregou ontem, espero que o seu conteúdo não tenha vazado. Afinal, trata-se de uma troca de correspondência pessoal entre os líderes da ONU e de um dos Estados membros. Se o conteúdo da carta for tornado público, este ato não será decente e significar outra tentativa de exercer pressão sobre a situação que não está a ser resolvida e se encontra num impasse devido às ações dos nossos colegas ocidentais. Recorde-se que, a Iniciativa do Mar Negro, assinada a 22 de junho de 2022, afirma explicitamente que diz respeito aos cereais e amoníaco. Ninguém mencionou o amoníaco até anteontem. Embora António Guterres me tenha dito ontem que o mercado mundial está a sofrer uma grave escassez de fertilizantes, especialmente daqueles do grupo do amoníaco. Ninguém pensou nisso até ao último momento. A rapidez com que este acordo passou de "Iniciativa do Mar Negro" a "Iniciativa dos Cereais do Mar Negro" e de iniciativa humanitária a empreendimento comercial levanta muitas questões das quais não nos cansamos de falar e para as quais não nos cansamos de chamar a atenção. Já viu as estatísticas: menos de três por cento de todos os cereais levados dos portos ucranianos foram para os países pobres da lista do PAM (Etiópia, Iémen, Afeganistão, Sudão e Somália). O resto (mais de oitenta por cento) foi levado para países de rendimento elevado ou médio-alto. Discutimos este assunto e chamámos a atenção para este facto.

Está à vista a tentativa dos nossos colegas ucranianos de provocar um congestionamento artificial de navios, no âmbito do Centro de Coordenação Conjunto de Istambul.  Até mesmo a imprensa ucraniana noticiou que o regime ucraniano vendia lugares na fila.

Chamámos a atenção para o facto de que, ao concentrarem-se inteiramente na parte ucraniana do acordo, os nossos colegas, principalmente na ONU, esquecem que António Guterres propôs originalmente um "acordo-pacote" inseparável. Sim, ele disse-me ontem que o Memorando Rússia-ONU não é muito concreto. Nós aprovámo-lo porque contém compromissos do Secretário-Geral e do seu pessoal no sentido de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para eliminar os obstáculos às exportações russas de fertilizantes e cereais.

Não posso dizer que a ONU não tenha feito esforços. Não, pelo contrário. António Guterres e o Secretário-Geral da UNCTAD, bem como o Subsecretário-Geral para os Assuntos Humanitários têm defendido isso, tentando chegar a acordo com os países que anunciaram sanções unilaterais ilegais contra a Federação da Rússia. Mas praticamente sem resultado. O Banco "Rosselkhozbank", o principal banco que atende às nossas exportações agrícolas, foi desconectado do sistema SWIFT. Ninguém tem a intenção de conectá-lo de volta. Em contrapartida, estão a oferecer-nos alternativas pontuais. O Secretário-Geral da ONU pediu a três bancos norte-americanos que substituíssem o SWIFT e ajudassem o Rosselkhozbank a atender às transações de exportação. Passaram-se vários meses e, de facto, um dos bancos aceitou "gentilmente" financiar uma transação. Todavia, quando nos dizem que todo o trabalho futuro deve ser organizado deste modo, isso não é sério. Se querem uma solução sistémica para o problema da escassez de alimentos nos mercados mundiais, então só têm de reconectar o nosso banco ao sistema SWIFT. Se querem que nós e o Secretário-Geral da ONU andemos por aí e por ali a implorar a uma ou outra instituição financeira dos EUA que seja magnânima, este esquema não pode nem vai funcionar. Os problemas com os seguros persistem. Embora o Secretário-Geral me tenha dito ontem que as taxas baixaram muito após os seus contactos com a Lloyd's de Londres. Tudo isto tem como objetivo manter o controlo de tudo o que se passa e não permitir que os nossos cereais e fertilizantes entrem livremente nos mercados e cheguem, através dos mecanismos de mercado, a este ou àquele país. Tudo isto dificulta o trabalho do Programa Alimentar Mundial, que ajuda os países mais pobres.

Para além do que estamos a falar, tivemos quase duzentas mil toneladas de fertilizantes arrestadas nos portos da UE. Em agosto de 2022, o Presidente russo, Vladimir Putin, expôs publicamente a nossa posição, segundo a qual as empresas (proprietárias dos referidos fertilizantes) se ofereceram a cedê-los gratuitamente aos países mais pobres através dos mecanismos do PAM. Isto aconteceu em agosto do ano passado. O primeiro lote de vinte mil toneladas (das duzentas mil toneladas) foi para o Malawi apenas seis meses mais tarde. Agora estão a ser mantidas negociações difíceis sobre a entrega de outros dois lotes de vinte e quatro mil toneladas cada um para o Quénia e a Nigéria. Tudo isto leva tempo e envolve obstáculos burocráticos e despesas adicionais.              

Quanto à "nossa" parte do acordo de cereais. Sim, estamos a ver que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, e os seus colegas estão a fazer esforços nesta direção, mas praticamente sem resultado. A não ser que se possa considerar como resultado uma esperança incipiente de que, em vez da entrega normal dos produtos necessários aos mercados mundiais, se tenha de "implorar" sempre individualmente aos portos norte-americanos e europeus, aos bancos, às companhias de seguros e a outras estruturas que adotem uma atitude condescendente. Não foi isso que negociámos a 22 de julho de 2022, quando apoiámos a iniciativa do Secretário-Geral da ONU, que, como ele próprio repete, é um acordo-pacote. O "pacote" não é composto por uma única parte.

Por isso, ao contrário de si, não posso dizer ao certo o que está na mensagem do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, ao Presidente russo, Vladimir Putin. Esta mensagem não é para o público em geral, mas sim para o nosso Presidente. Pelo que entendo, mensagens semelhantes foram enviadas à Ucrânia e à Turquia. Haverá reação depois de o destinatário a ler. É assim que se faz em sociedades civilizadas.

Pergunta (tradução do inglês): Parece que não está a gostar deste acordo. Não tem grandes esperanças sobre ele?

Serguei Lavrov: Sem comentários.

Pergunta (tradução do inglês): A 25 de abril deste ano, o Presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou que concorreria a um segundo mandato. Os comentários dos republicanos (por exemplo, de Donald Trump, que também disse que se candidataria a um segundo mandato) dizem que eles receiam muito que isso possa levar a uma terceira guerra mundial. Qual dos dois seria "preferível" à Rússia à frente dos EUA?

Serguei Lavrov: Ao contrário dos jornalistas que, por dever do cargo, devem analisar publicamente o que se está a passar, o governo russo não interfere nos assuntos de outros Estados.

Pergunta (tradução do inglês): O senhor disse em 2022 que o alargamento da NATO seria inaceitável. A 24 de abril deste ano, a Finlândia e a Suécia entraram para a Aliança devido à guerra. O Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, é a favor da adesão da Ucrânia. Terá sido um erro? Quais são as razões para a guerra, agora que a fronteira da NATO com a Rússia duplicou?

Serguei Lavrov: A NATO não tencionava parar. Se olhar para a evolução dos últimos anos, temos assistido a um processo ativo de fusão entre a União Europeia e a NATO em matéria militar. Recentemente, assinaram uma declaração, segundo a qual a UE investiu a NATO da responsabilidade pela segurança de todos os países comunitários e garantiu que o território dos países da UE que não faziam parte da NATO seria disponibilizado para as necessidades da Aliança. A Suécia e a Finlândia estiveram na vanguarda desta cooperação, participando mais frequentemente do que os outros países nos exercícios militares e noutras atividades da Aliança destinadas a sincronizar os programas militares da NATO e dos países neutros. É uma bela figura de linguagem dizer que a Rússia não queria permitir a expansão da NATO. Não é que quiséssemos e pensássemos que era necessário impedi-la, mas prometeram-nos várias vezes que isso não aconteceria. Eles mentiram-nos. Todo o mundo já sabe isso. Tal como mentiram depois sobre os acordos de Minsk e muitas outras coisas. Não tiveram vergonha de confessar isso. A tese de que a Rússia tentou impedir o alargamento da NATO, mas acabou por acelerá-lo é uma vista a partir do seu "campanário". Nós temos os nossos "campanários". As avaliações feitas por observadores imparciais e analistas políticos na Federação da Rússia e no estrangeiro mostram que a NATO queria destruir a Rússia, mas acabou por torná-la ainda mais coesa. Não vamos conjeturar agora sobre o desfecho da situação. Anunciamos claramente os nossos objetivos e reafirmamo-los, reiterámo-los ontem durante a nossa intervenção no Conselho de Segurança da ONU.

O que é que os norte-americanos pretendem? Leio publicações na imprensa local, artigos analíticos, converso com alguns dos meus velhos amigos entre os cientistas políticos. Eles estão mais a pensar no que vai acontecer a seguir. Expusemos clara e honestamente os nossos objetivos. Qual é o objetivo dos EUA, da NATO e da UE? Encher a Ucrânia de armas? Agora está a circular uma teoria "ridícula", segundo a qual o Ocidente deve ajudar a Ucrânia a realizar uma contraofensiva bem-sucedida e depois pedir ao Presidente Vladimir Zelensky que inicie negociações. É uma lógica esquizofrénica.

Queremos fazer com que nenhuma ameaça à nossa segurança venha do território da Ucrânia. As ameaças têm vindo a acumular-se ali há muitos anos, especialmente após o golpe de Estado de fevereiro de 2014. Queremos também que as pessoas que se consideram pertencentes à língua e cultura russas e à religião russa, que sempre professaram por meio da Igreja Ortodoxa Ucraniana, não sejam discriminadas, perseguidas ou ameaçadas de extermínio. Vladimir Zelensky tem, entre o seu pessoal, um tal de Mikhail Podoliak, conselheiro do chefe do Gabinete do Presidente da Ucrânia. Este homem disse que a Ucrânia estava a lutar pelos valores ocidentais e pela democracia. É isto que significa "democracia" e "valores", pelos quais a NATO está pronta a lutar "até ao último ucraniano"?

Há anos que temos vindo a chamar a atenção de todos para o que está a acontecer às minorias nacionais na Ucrânia, especialmente à russa. O regime ucraniano legislou a proibição do ensino noutras línguas que não o ucraniano, tendo aberto, contudo, uma exceção para as línguas da UE, o que mais uma vez confirmou que toda esta campanha tinha como alvo a cultura russa. Foram proibidos os meios de comunicação social - tanto os que transmitiam para a Ucrânia a partir da Rússia como os que, sendo propriedade de ucranianos, transmitiam em russo, divulgando as opiniões da oposição. Milhões de livros foram retirados das bibliotecas. Alguns deles foram queimados em praças, tal como fizeram os nazis. Quase todos os contactos culturais entre os nossos países foram proibidos.

Veja-se o que está a acontecer agora com a Igreja Ortodoxa Ucraniana. Lançámos um apelo ao Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, à direção da OSCE e a outras autoridades. Deram uma reação fraca, semelhante à que fora dada ao golpe de Estado em fevereiro de 2014. Fizemos perguntas aos franceses, aos alemães e aos polacos: um dia antes do golpe de Estado, haviam assinado um acordo como garantes. Eles disseram-nos que nos processos democráticos podiam acontecer "excessos". Tudo. Mais tarde, deram explicações semelhantes a todos os atos posteriores do regime de Kiev. Ao mesmo tempo, o Ocidente prometeu fornecer-lhe armas para derrotar a Rússia no campo de batalha, porque o regime de Kiev estava a defender os valores ocidentais e ideais de "democracia". Se o Ocidente está a lutar por isso, então deve ser ainda mais claro o que defendemos e contra o que nos iremos lutar até ao fim.

Pergunta (tradução do inglês): Por favor, diga-nos mais detalhadamente sobre se teve alguns contactos com funcionários dos EUA sobre o destino dos cidadãos norte-americanos nas prisões russas? Teve alguns contactos ou tentativas? Já houve trocas de prisioneiros no passado. O que é que vocês esperam obter com a troca de Whelan e Gershkovich?

Serguei Lavrov: Conforme o acordo alcançado entre o Presidente dos EUA, Joe Biden, e o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante a sua reunião em junho de 2021 em Genebra, foi criado um canal especial para discutir as questões relacionadas com a situação dos russos detidos nos EUA e os norte-americanos detidos na Federação da Rússia. Não é segredo para ninguém que este canal não foi concebido para informar jornalistas ou para "tornar públicas" diferentes situações com o objetivo de pressionar as negociações sérias e profissionais em curso.

Vários cidadãos norte-americanos estão a cumprir penas na Rússia por diversos crimes. Entre eles estão P. Whelan e E. Gershkovich. Foram detidos quando estavam a cometer um crime, a tentar receber informações consideradas segredo de Estado. Não aceitamos as afirmações patéticas de que um jornalista não pode, por definição, cometer um crime. Há muitos exemplos disso. Chamámos a atenção para o facto de que, quando uma campanha eclodiu em torno de Gershkovich, ninguém se lembrou de Julian Assange, da nossa cidadã e jornalista Maria Butina que passou dois anos na prisão nos Estados Unidos simplesmente por ter participado nos trabalhos de organizações não governamentais.

Há cerca de 60 russos mantidos presos nos EUA. Na maioria dos casos, as acusações são duvidosas. Nem uma única vez, os norte-americanos, ao "raptarem" os nossos cidadãos na Europa e noutros países, se dignaram a cumprir as disposições da convenção consular bilateral, segundo a qual, se tiverem suspeitas em relação a cidadãos russos, não os devem raptar (como nos filmes de Hollywood), mas devem dirigir-se à Federação da Rússia e manifestar as suas preocupações. Repito, existe um canal especial para discutir estas questões. Este trabalho não implica ser feito publicamente. Neste caso, só pode complicar o processo por razões óbvias. Os profissionais não precisam que lhes expliquem isso.

Pergunta (tradução do inglês): Recentemente, o Presidente russo, Vladimir Putin, foi convidado pelo Presidente turco, Recep Erdogan, para assistir à cerimónia de lançamento do primeiro reator nuclear na Turquia, construído por empresas russas. O Presidente russo tenciona visitar a Turquia?

Serguei Lavrov: Acho que os dois Presidentes consideram que este encontro seria importante.

Pergunta (tradução do inglês):  A Rússia tem afirmado repetidamente que a Ucrânia não está a cumprir as suas obrigações no âmbito do acordo de cereais. A Rússia tenciona retirar-se deste acordo e existe alguma razão para ela ficar?

Serguei Lavrov: A Ucrânia não tem nada a ver com as partes do acordo relativas aos fertilizantes e aos cereais russos. Estas partes do acordo estão bloqueadas pelas sanções ocidentais. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, está a trabalhar no sentido de ultrapassar estas sanções e remover os obstáculos à exportação de fertilizantes e cereais da Rússia para os mercados mundiais. Neste Memorando, ele comprometeu-se a fazer os possíveis para atingir estes objetivos. Aparentemente, será necessário fazer também os "impossíveis". Até agora, não estamos a ver que isso está a ser feito.

Relativamente ao futuro do acordo, acabei de responder ao seu colega. De facto, ontem António Guterres entregou uma mensagem ao Presidente russo, Vladimir Putin. Essa mensagem será feita chegar às mãos do destinatário. Iremos informar sobre a sua reação.

Pergunta (tradução do inglês): O Presidente checo, Petr Pavel, afirmou que Pequim não precisa de paz na Ucrânia e que a China está satisfeita com o status quo. Qual é a posição da Rússia sobre este assunto?

Serguei Lavrov: Tais declarações são estranhas ao trabalho de um político normal. Mencionou a República Checa, eu lembrei-me, a propósito, da União Europeia (por enquanto ainda existe). O Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, afirmou que a UE iria desenvolver relações com outros países em função da sua atitude para com a Rússia e a China. Este é um indicador da mentalidade da atual "diplomacia" europeia.

Pergunta (tradução do inglês): Na Irlanda há 80.000 refugiados da Ucrânia. Vocês já lhes pediram desculpa por terem sido obrigados a fugir da sua terra? Se a China é vossa amiga, porque é que não vos envia armas?

Serguei Lavrov: Ninguém está satisfeito com a forma como os acontecimentos estão a afetar a vida das pessoas comuns. Todavia, as suas vidas devem chamar a atenção não apenas quando se encontram no estrangeiro e incomodam os países acolhedores. As vidas das pessoas comuns deveriam ser polo das atenções dos políticos quando estas pessoas são legislativamente discriminadas e ameaçadas na prática.

Ninguém se importou quando dissemos que tais leis não deviam ser aprovadas. A Constituição da Ucrânia diz que todos os direitos das minorias nacionais estão garantidos: políticos, religiosos, linguísticos, etc. E quando estavam a aprovar leis que proibiam estes direitos relativos à língua russa, recorremos (na altura éramos membros do Conselho da Europa) à Comissão de Veneza (este organismo analisa as leis dos Estados membros do Conselho da Europa para verificar a sua conformidade com as convenções europeias). O Conselho da Europa, através desta comissão, emitiu um veredicto, segundo o qual a Ucrânia deveria adotar uma nova lei especial sobre as minorias nacionais. A lei foi aprovada em dezembro passado. O diploma diz que todos os direitos das minorias nacionais, sem exceção, são garantidos na medida do previsto na legislação vigente. Ou seja, no volume que restava após terem sido reduzidos a quase nada. Isto é um simulacro de justiça. Quanto aos refugiados na Irlanda. Não sei dizer. Há muitas notícias no espaço mediático ocidental e leste-europeu a dizer que nem todos os refugiados ucranianos são tão "necessitados". Até acontecem escândalos, alguém roubou algo a alguém, outro roubou a mulher do anfitrião ou vice-versa. Não quero ofender ninguém. Os refugiados começaram a aparecer no nosso território muito antes, como resultado da guerra desencadeada pelo regime de Kiev contra o seu próprio povo no leste do país, apenas porque a população da Crimeia e do leste da Ucrânia se recusou a reconhecer o golpe de Estado e disse aos golpistas que os deixassem em paz e que queriam resolver sozinhos os seus problemas. Por esse motivo, o regime de Kiev declarou-os terroristas e desencadeou uma guerra contra eles. Milhões de pessoas abandonaram a Ucrânia para se refugiar na Rússia. Não me lembro de nenhum dos jornalistas ocidentais nesta sala ou nas minhas outras conferências de imprensa se ter interessado por este aspeto da situação. Há um ano e meio que os refugiados de zonas que ainda estão sob o controlo do regime de Kiev fogem para a Rússia. O senhor é da Irlanda? Muito bem. Utilizo de vez em quando o seguinte argumento: o que é que os ingleses diriam se a língua inglesa fosse proibida na Irlanda? Isso é impensável, isso não cabe na cabeça de ninguém. E na Ucrânia a língua russa pode ser proibida. Pode-se declarar publicamente: "Vão embora para a vossa Rússia, se se consideram parte da cultura russa". Isto foi dito por Vladimir Zelensky muito antes da nossa operação militar especial. Perguntaram-lhe o que pensava das pessoas que viviam do outro lado da linha de contacto. Respondeu que há seres humanos, e há "espécies".  Este "líder da democracia mundial" disse, certa vez, que, se alguém na Ucrânia sentia que fazia parte da cultura russa, devia, para o bem e o futuro dos seus filhos e netos, sair para a Rússia. Disse isso sem rodeios. E quando lhe perguntaram o que pensava sobre o regimento neonazi Azov (que já em 2013 foi designado pelo Congresso norte-americano como entidade que não deveria receber financiamento norte-americano) e que marchava sob bandeiras nazis, com os símbolos das divisões das SS, ele disse que havia muitos deles na Ucrânia e que eram o que eram. Ponto final. Os valores que Vladimir Zelensky "defende pelo mundo ocidental" na guerra contra a Rússia também incluem coisas de que, francamente, nos livrámos há muito tempo. No entanto, num piscar de olhos, a Europa voltou às tradições que eram cultivadas em tempos anteriores.

Pergunta (tradução do inglês):  A ONU tem muitos objetivos. Estes estão constantemente a mudar. O principal objetivo em 1945 era evitar uma terceira guerra mundial. Há 75 anos que conseguimos cumprir este objetivo. Ouvi ontem a sua intervenção no Conselho de Segurança. Parece que o senhor não acredita mais que a ONU seja capaz de evitar uma nova guerra mundial. Porque é que não acredita nisso? Que papel pode desempenhar o Secretário-Geral? Porque é que ele não elabora um plano de paz? Não o faz porque vocês não o considerarão ou porque não o quer fazer?

Serguei Lavrov: Não quer ser o senhor a perguntar-lhe? Só posso dizer o seguinte sobre aqueles que estão a veicular a tese de terceira guerra mundial. O Presidente Joe Biden disse uma vez (não vou reproduzir a citação textualmente) que, se eles ajudassem a Ucrânia a vencer, evitariam uma terceira guerra mundial. Vocês analisam as declarações do vosso Presidente ou apenas os meus discursos no Conselho de Segurança da ONU? Há algum tempo, a então Primeira-Ministra britânica, Liz Truss, afirmou que não hesitaria em carregar no «botão vermelho". O então Ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian, disse a esse respeito que a França também tinha armas nucleares. Depois, o comandante da Força Aérea alemã disse que Vladimir Putin não nos deveria assustar com a guerra nuclear, estávamos preparados para ela. Tudo isto foi dito numa altura em que não dissemos uma só palavra sobre uma terceira guerra mundial. Recorde-se que fomos nós que sugerimos, já na época do Presidente Donald Trump, que os norte-americanos reafirmassem publicamente, oficialmente, ao mais alto nível, a declaração de Gorbachev-Reagan de que a Rússia e os EUA (então URSS e EUA) estavam convencidos de que uma guerra nuclear não poderia ser vencida e nunca deveria ser travada. Já durante a Presidência de Donald Trump, propusemo-nos fazer o mesmo. Não resultou. Os norte-americanos, se estavam mesmo preparados para discutir esta declaração, pediram ressalvas, o que a desvalorizou completamente. Sob o Presidente Biden, os nossos Presidentes fizeram essa declaração. Depois, voltámos a mostrar iniciativa e uma declaração semelhante sobre a inadmissibilidade da guerra nuclear foi adotada ao mais alto nível pelas cinco potências nucleares. Quando este assunto vem à tona, todo o mundo aponta o dedo à Rússia. Dizem que estamos a conduzir o mundo para uma terceira guerra mundial. A língua volta-se sempre para o dente que dói, temos um provérbio assim. Espero que aqueles que fazem declarações como "se a Ucrânia perder, não evitaremos a terceira guerra mundial", estejam no seu perfeito juízo e sejam responsáveis.

Pergunta: A minha primeira pergunta é sobre a saída da delegação israelita, chefiada pelo embaixador israelita na ONU, Gilad Erdan, da reunião do Conselho de Segurança sobre o Médio Oriente. Como é que avalia este passo? Houve contactos com Israel antes da reunião que indicassem ou pudessem ter indicado que a delegação israelita iria abandonar a reunião?

A minha segunda pergunta é sobre a recente declaração do vice-ministro da Defesa da Grã-Bretanha, James Hippie, de que o Reino Unido já enviou milhares de projéteis Challenger com urânio empobrecido para Kiev. Qual é a sua reação a estas declarações?

Serguei Lavrov: Em relação à reunião de hoje. Para ser sincero, não posso comentar os pormenores. Quando assumimos a presidência do Conselho de Segurança, foi discutido o cronograma das reuniões e os seus temas. Ninguém se opôs a que se discutissem hoje os problemas do Médio Oriente e o problema palestiniano. Hoje, o representante de Israel fez uma pergunta retórica de forma tão patética e emocionante sobre como se sentiria a Rússia se uma reunião antirrussa fosse marcada para 9 de Maio, o Dia da Grande Vitória. Trabalhei nas Nações Unidas durante 10 anos. Costumávamos ter reuniões no dia 9 de maio, para discutir todo o tipo de questões, e nos feriados de outros Estados membros da ONU. É assim que funciona esta organização. Se retirarmos todas as datas que cada país gostaria de manter livres de reuniões, restariam poucos dias para o trabalho. No entanto, o representante israelita disse que não podia participar numa "ação anti-israelita" num dia como aquele. Talvez devêssemos procurar uma resposta à pergunta sobre como devemos avaliar esta questão. Não houve nenhuma "ação anti-israelita". Esta ação, a reunião foi realizada de acordo com a ordem de trabalhos do Conselho de Segurança, este ponto mantém-se na ordem de trabalhos há décadas.

A questão palestiniana é o conflito mais antigo que não está a ser resolvido por ninguém. Agora há tentativas de afastar-se novamente dos acordos estabelecidos nas resoluções do Conselho de Segurança e prometer alguns benefícios económicos em troca de os palestinianos não exigirem a criação do seu próprio Estado. É disso que se trata. Não se trata de um evento anti-israelita. Trata-se de um evento, como salientei na minha intervenção, que visa implementar as decisões originais da ONU para garantir o direito dos palestinianos a um Estado próprio e, ao mesmo tempo, o direito de Israel à segurança nas suas fronteiras e, em geral, visa garantir que não haja ameaças à segurança de Israel em toda a região. Foi disso que se tratou, e não de condenar Israel. Hoje também foram feitas muitas críticas aos atos terroristas perpetrados contra israelitas. Isso é bem conhecido de todos.

Expusemos várias vezes a nossa posição sobre munições com urânio empobrecido. Não obstante o que se diga que não é radioativo e que não consta da lista da AIEA, há factos, não listas, e entrevistas com pessoas que sofreram com o urânio empobrecido na antiga Jugoslávia. Há-as na nossa televisão, na Internet e nas cadeias de televisão ocidentais. Na Itália também há pessoas a falar disso. São veteranos de guerra que lutaram contra o "regime" de Slobodan Milosevic (como se dizia na altura). O Reino Unido deve estar consciente da sua responsabilidade. Eles pensam que, uma vez que estão numa ilha, não é assim tão importante onde este urânio empobrecido terá efeito radioativo.

Pergunta (tradução do inglês): Depois de 24 de fevereiro de 2022, muitos países impuseram sanções à Rússia. As sanções ocidentais estão a funcionar? A Rússia pode resistir à pressão?

Serguei Lavrov: Que me lembre, em 2015, o ex-Presidente dos EUA Barack Obama, disse que a economia da Rússia já estava "despedaçada". Aparentemente, esse desejo existe. É estável e não muda consoante a administração que está no poder. Chegámos há muito à conclusão de que precisamos de contar com as nossas próprias forças e com aqueles que são capazes de negociar. Não confiaremos mais naqueles que mentem, enganam constantemente os outros e tentam obter uma vantagem unilateral e ilegítima. Agora, algumas das empresas ocidentais que foram expulsas da Rússia pelos seus governos e que deram ouvidos estão a tentar regressar. O nosso governo pronunciou-se sobre esta situação. Não temos a certeza de que seja necessário resolver esta questão de imediato. Deixemos que as nossas empresas ocupem os nichos libertados. Desenvolveremos a nossa economia, explorando os bens materiais, que a história e Deus nos deram neste mundo, e não procurando serviços virtuais ou aceitando o domínio artificial do dólar e a dependência do dólar.

Os EUA iniciaram um processo de desdolarização. Este processo está agora a ser analisado com grande preocupação, inclusive pelos cientistas políticos e economistas norte-americanos. Este é um facto. Se bem me lembro, num ano, a participação do dólar nas transações mundiais passou de 55% para 47%. Uma queda de 8% num ano, é significativo.

O processo de adoção de moedas nacionais nos desembolsos recíprocos, de fuga ao dólar, ao euro e ao iene e de desenvolvimento de moedas digitais é já imparável. O que acontecerá a seguir com o sistema financeiro monetário internacional, incluindo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, é uma grande questão. O processo já está em andamento. Os norte-americanos provaram que não estavam a dizer a verdade quando, durante décadas, depois de Richard Nixon ter abolido o padrão-ouro, afirmaram que, mesmo sem o padrão-ouro, o dólar "não é nosso", é "o nosso dólar comum". E que uma moeda mundial asseguraria o bom funcionamento de todos os mecanismos da economia mundial.

Agora provaram que abandonaram facilmente, "como por um passe de mágica", todos os pilares por eles promovidos como fundamentos da economia mundial: a concorrência leal, a santidade da propriedade privada, a rejeição do recurso a medidas protecionistas unilaterais e muito mais. Tudo aquilo em que basearam o modelo da globalização, que o mundo inteiro adotou e começou a elaborar os seus planos de acordo com este modelo. Atualmente, a globalização não tem mais futuro na sua forma original. A economia global está a sofrer um processo de fragmentação, desglobalização e regionalização. Sentimos estes processos e participamos neles de forma empenhada no âmbito da OCX, da UEE, do acordo entre a UEE e a China, e no âmbito dos BRICS. O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, está interessado em preparar, para a próxima cimeira prevista para o verão próximo, uma análise sobre como não depender dos caprichos daqueles que até agora geriram o sistema financeiro e monetário internacional.

Pergunta (tradução do inglês): Falou muito sobre a natureza do acordo de cereais, se é de carácter humanitário ou comercial. A Rússia estava preparada para assinar um acordo deste género desde o início?

Falou também da "nova ordem mundial". Ontem houve uma reação dos Estados-Membros, em especial do Brasil. Porque é que a multipolaridade é melhor do que a atual ordem mundial baseada no conceito ocidental de ordem baseada em regras? Como é que vai convencer os seus colegas ocidentais da sua opção?

Serguei Lavrov: Vou repetir mais uma vez. O acordo chamava-se "Iniciativa do Mar Negro" e não "acordo de cereais".  O próprio texto do acordo dizia que se tratava da expansão das oportunidades de exportação de cereais e fertilizantes. Não posso suspeitar que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, tenha astuciado propondo este acordo. Estou convencido de que ele agiu de boa fé. Conheço bem António Guterres. Posso dizê-lo com certeza. Outra coisa é que os seus esforços sinceros e persistentes para persuadir aqueles que impuseram sanções a abrir uma exceção, pelo menos para as exportações agrícolas, cereais e fertilizantes, não deram resultado. Já comentei hoje em pormenor este assunto.

Como é que podemos convencer os nossos colegas ocidentais da necessidade de construir um mundo multipolar? Nós não os vamos convencer. Estamos a expor as nossas posições, tal como a República Popular da China, o Brasil e muitos outros. Propomos fazer negócios com base no que está escrito na Carta das Nações Unidas: todos temos direitos iguais, devemos procurar um equilíbrio de interesses e resolver coletivamente os problemas do mundo. Provavelmente, a melhor maneira de convencer os países ocidentais de que um mundo multipolar já está a tomar forma seria simplesmente não interferir no processo histórico. Eles estão agora a tentar interferir. As sanções contra a Rússia são, de facto, do tipo que nunca antes ninguém tinha visto ou imaginado. Mas, para nós, esta é uma questão resolvida. Temos todas as oportunidades para não depender deste comportamento dos nossos colegas ocidentais, que provaram ser completamente não cooperantes. Ouvi dizer que estão agora a proibir a venda de semicondutores à China. Ao mesmo tempo, estão a exigir que a Coreia do Sul não substitua os fornecimentos de semicondutores da Europa e dos EUA por fornecimentos próprios. Está a ser preparada uma nova ronda de guerra pelo domínio mundial, ou melhor, uma guerra para tentar manter o domínio mundial. Isto poderá provavelmente abrandar o processo natural de formação de uma ordem mundial multipolar, mas não por muito tempo. Historicamente, tenho a certeza de que não será assim. Todas estas ambições de ser, como disse o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, um "belo jardim" (ou seja, o Ocidente) rodeado por uma "selva" (para além de ser o racismo e do nazismo) são um reflexo da filosofia que prejudica toda a humanidade e os seus autores.

O Presidente francês, Emmanuel Macron, disse, após a sua visita a Pequim (se estivermos a falar da China), que a Europa deveria ser independente, que ser aliado dos EUA não era necessariamente seguir a vontade dos EUA em todas as questões e mencionou Taiwan. Disse que este não era um assunto europeu. Entre parêntesis, gostaria de salientar que isto implicava que a Ucrânia era um assunto europeu. Portanto, isso quer dizer que se reconhece que a Europa está a lutar por intermédio da Ucrânia. No entanto, imediatamente depois de Emmanuel Macron o ter dito, Josep Borrell apresentou ontem uma iniciativa no sentido de a UE enviar as suas forças navais para o Estreito de Taiwan. O que é que isto significa? Que aqueles que apoiam a lógica de Josep Borrell na Europa - já perderam toda a independência e são guiados apenas pelos interesses dos EUA, ou não chegaram a acordo sobre qual será a sua posição comum.

O mundo multipolar está objetivamente a tomar forma. Não sei o que ele será nem qual será a sua configuração. Muitos disseram, incluindo na reunião de ontem do Conselho de Segurança da ONU, que o G20 poderia tornar-se um protótipo de um mecanismo de governação. Penso que é melhor basearmo-nos na Carta das Nações Unidas, partindo do princípio de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas terá de ser reformado para refletir as novas tendências e realidades. Talvez venha a ser algo como o G20. Seja como for, é preciso acabar com a sub-representação da Ásia, África e América Latina.

Pergunta (tradução do inglês): Os Talibãs proibiram recentemente as mulheres de trabalhar na ONU. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, está a caminho de Doha para se encontrar com um enviado especial sobre o assunto. Qual é o próximo passo a dar pela comunidade internacional relativamente ao Afeganistão? O Plano de Ação Conjunto Global está "morto"?

Serguei Lavrov: Sim, apoiámos a iniciativa do Secretário-Geral da ONU de realizar uma reunião de representantes especiais, incluindo um grande número de países ocidentais, em Doha, nos dias 1 e 2 de maio próximo. Ao longo de 2022 e deste ano, temos estado a lidar com o Afeganistão em formatos como "países vizinhos". Recentemente, realizou-se no Uzbequistão a quarta conferência ministerial dos países vizinhos do Afeganistão. A China acolheu uma reunião semelhante em 2022. Ao mesmo tempo, está a trabalhar o Quarteto Rússia-China-Paquistão-Irão, para o qual convidámos a Índia. Queremos que estes cinco países   constituam o "núcleo" do formato dos países vizinhos. Mantemos o formato de consultas de Moscovo em que os EUA participaram em tempos. Retiraram-se depois de terem provocado os acontecimentos na Ucrânia. Havia também a tróica Rússia-China-EUA em que o Paquistão também participava. Este formato também foi abandonado.

Aparentemente, a fim de atrair, de alguma forma, o Ocidente para os processos de busca de uma solução para o Afeganistão, o Secretário-Geral da ONU está a convocar uma conferência na qual iremos participar. Consideramos que o Ocidente não deve "mergulhar" nas discussões. Os ocidentais estiveram no Afeganistão durante 20 anos e não fizeram nada para melhorar a capacidade económica do país. O país teve um surto recorde de produção de droga, embora os talibãs estejam a tentar proibi-la. Apoiamos os seus esforços. No entanto, para se desenvolver, o Afeganistão precisa, em primeiro lugar, de dinheiro que os EUA arrestaram e se recusam a dar ao povo afegão. O Ocidente deveria não só devolver o dinheiro ao povo afegão quando as condições o permitirem, mas também considerar a indenização dos danos causados ao país - à economia e à população - durante 20 anos. A nossa posição é a de que os Taliban são uma realidade "no terreno" e que temos de falar com eles. Ao mesmo tempo, não vamos aceitar reconhecer de jure o seu Governo até que ele cumpra as suas obrigações que foram reconhecidas pela comunidade internacional, ou seja, até tornar as suas estruturas de governação inclusivas, no sentido étnico e político. Dizem que, atualmente, o seu governo tem uzbeques, tajiques e hazaras. Isso é verdade. Mas, politicamente, todos estes representantes são todos talibãs.

Para uma sociedade civil é importante haver uma ampla representação das forças políticas do país. Entre outros critérios para o reconhecimento legal, todos mencionam requisitos básicos em matéria de direitos humanos, incluindo os direitos das mulheres e das meninas. Esta questão será debatida na conferência que será convocada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres.

Pergunta (tradução do inglês): E o acordo sobre o programa nuclear do Irão?

Serguei Lavrov: Esta questão não é para nós. Partimos do facto de que o acordo sobre a sua renovação foi alcançado há muito tempo. Os países europeus perderam o entusiasmo por alguma razão. Os norte-americanos já disseram, através de fontes anônimas, que precisam de procurar algo "diferente". Eu não sei. Penso que é um grande erro perder a oportunidade de renovar este acordo, especialmente numa altura em que as relações entre os países árabes e o Irão estão a melhorar, a normalizar-se. Em particular, o Irão restabeleceu as suas relações com a Arábia Saudita com a ajuda da China. Este é um processo sadio. Somos a favor do estabelecimento de mecanismos de cooperação, de transparência e de confiança na região do Golfo. Nesta fase, não cabe ao Irão, a nós ou à China reavivar totalmente este acordo. Cabe àqueles que o destruíram reavivá-lo. Se houver alguma hipótese, deve ser retomado sob esta forma. Na nossa opinião, o documento que foi acordado no ano passado está à altura da tarefa. As tentativas de impor novos requisitos que não existiam no texto original do Plano de Ação Conjunto Global dificultam o processo e refletem a política de que falámos hoje: obter vantagens unilaterais por meio de promessas ou chantagem.

Pergunta (tradução do inglês): O senhor falou do "milhar de milhões dourado". Pensa que, no futuro, pode haver no mundo "oito mil milhões dourados" e não um "milhar de milhões"? A segunda pergunta é sobre a solução de dois Estados. Todos são a favor. O senhor acredita que existe alguma possibilidade real de conseguir um Estado palestiniano independente, contíguo e soberano?

Serguei Lavrov: Penso que não devemos desistir. Assistimos agora a tentativas de tirar os aspetos políticos da questão palestiniana e de se concentrar em oferecer alguns benefícios económicos aos palestinianos. Parece ser uma espécie de suborno. Aqui estão os recursos financeiros, mas esqueçam-se da independência e de um Estado próprio. Não consigo compreender esta lógica. Já mencionámos hoje o Representante Permanente de Israel nas Nações Unidas, Gilad Erdan, que, no seu discurso emocionante defendeu o direito de Israel a ter um Estado judeu. E o que dizer então dos palestinianos? Eles também precisam de um Estado. Assim se reconhece que a solução de dois Estados é a única forma de "minar" a essência judaica de Israel que ele defende. Penso que a razão prevalecerá e, quando as partes deixarem de pensar nos ciclos eleitorais, será possível tratar desta questão com a cabeça fria. Por outro lado, como é possível não pensar nos ciclos eleitorais? Os Estados Unidos, por exemplo, têm ciclos eleitorais de dois em dois anos e não têm tempo para trabalhar porque os seus políticos pensam em como se eleger.

Quanto ao " milhar de milhões dourado", comentei ontem. Claro que o que está escrito nas decisões da NATO e da UE é arrogante, indelicado. Arrogância. Estas são as pessoas que dizem que "as vidas negras importam".

Pergunta (tradução do inglês): O senhor está pessoalmente envolvido em alguma negociação sobre a libertação de presos nos EUA e na Rússia? Por exemplo, de Gershkovich.

Serguei Lavrov: Não.

Pergunta (tradução do inglês): A admissão da Ucrânia na NATO não parece muito realista, apesar do que alguns dizem. Mas como membro da UE, é mais realista. Qual é a sua opinião?

Serguei Lavrov: Não posso decidir pela União Europeia. Podemos ver como esta organização está a militarizar-se rapidamente. Está a transformar-se numa estrutura agressiva com o objetivo declarado de "conter" a Federação da Rússia. Note-se que o Presidente sérvio, Aleksandar Vucic, tem manifestado regularmente a sua preocupação com o facto de o seu país estar a ser abordado para aderir às sanções contra a Rússia e reconhecer a independência do Kosovo, ignorando o destino dos sérvios que vivem no norte da província há muitas centenas de anos. É o que é a União Europeia. Se um país seguir uma política antirrussa, tem boas hipóteses. Será interessante ver a situação com a Sérvia, a Turquia, que está a negociar há muitos anos. Na UE, há quem queira admitir a Ucrânia o mais rapidamente possível. Neste caso, a UE provará que tudo isto não tem nada a ver com os critérios e é um puro jogo geopolítico para se apoderar do território que pode acabar por ser terra de ninguém.

Não sei. Eles que decidam por si próprios. Mas não há dúvida de que a UE é agora pouco diferente da NATO. Tanto mais que, recentemente, assinaram uma declaração NATO-UE onde se afirmava explicitamente que a Aliança garantiria a segurança da União Europeia, e a UE manifestou os seus agradecimentos. Também foi escrito que isto será importante para o "milhar de milhões".

Pergunta (tradução do inglês): Tendo em conta o tempo que resta até ao final do ano, quais são as suas expetativas em relação à paz e à segurança na Terra? Acha que existem perspetivas de negociação ou de fim do conflito ucraniano ou de outros conflitos (Iémen, Líbia)? Falou também do Sudão. Quais são as suas esperanças e expetativas?

Serguei Lavrov: Não é para eu ter esperanças ou expectativas que me pagam. Devemos resolver tarefas concretas. Atualmente, estas tarefas dizem respeito, em primeiro lugar, a garantir a segurança do nosso país e a impedir que os russos, que vivem na nossa vizinhança há séculos, sejam discriminados e exterminados pelo regime ucraniano. Inclusive fisicamente, como anuncia publicamente pela voz dos seus responsáveis governamentais. A política é mesmo assim... Em maio de 2003, alguns meses após o início da guerra ilegal no Iraque, George W. Bush anunciou a bordo de um porta-aviões que a democracia venceu no Iraque. Isso foi em 2003. Quais são as suas expetativas em relação ao Iraque agora? Não sei. Algo semelhante verifica-se no caso da Líbia. O Presidente Barack Obama decidiu governar nos bastidores e colocou os europeus em primeiro plano. A resolução do Conselho de Segurança da ONU foi violada de forma flagrante. A única coisa que exigia era estabelecer uma zona de exclusão aérea para que os aviões de Muammar al-Gaddafi não pudessem atuar. Na verdade, eles não atuaram. Não obstante, lançaram bombas e destruíram o país, que agora está "despedaçado". Fizeram à Líbia o que Barack Obama quis fazer à economia russa. Espero que haja progressos na questão do Iémen. Hoje assinalei, durante a minha intervenção, que valorizamos os esforços feitos pela Arábia Saudita a este respeito para estabelecer um diálogo direto. Relativamente à Ucrânia, não vou tentar sequer conjeturar. Não é que haja um "cronograma". Os cronogramas existem para outros países. Por exemplo, quanto à Líbia. Quantas vezes os franceses anunciaram terem realizado conferências onde foi decidido que "em quatro meses e três dias" haveria eleições. É o que acontece desde 2015. Ainda estamos no mesmo lugar. É preciso simplesmente trabalhar no exercício dos seus direitos legais, fazê-lo honestamente, explicando os motivos. Foi o que fizemos em relação às nossas ações no âmbito da operação militar especial. E também gostaríamos que, a título de reciprocidade, os nossos colegas ocidentais nos dissessem que objetivos estão a perseguir no Iraque, na Líbia e noutros locais onde estão a tentar praticar algumas atividades. Temos de ser otimistas. É inevitável. Embora se diga que um pessimista é um otimista bem informado. Esperemos que prevaleça o desejo de unir forças e a compreensão de que dividir a comunidade mundial em "milhar de milhões" e "sete mil milhões" é errado. É também errada a ideia de se tentar colocar acima dos outros e justificar as suas ambições com tradições aristocráticas, por mais nobres que sejam. Partilhamos a mesma Terra.  Acabámos de abordar o tema de uma terceira guerra mundial. Quem precisa dela? Mas, aparentemente, há quem deseje ir até ao fim. Vou citar mais uma vez a declaração: "Se a Ucrânia derrotar a Rússia, evitaremos a terceira guerra mundial". Um raciocínio muito simples que, por enquanto, não dá lugar a uma conversa profissional normal entre políticos responsáveis. Desejo-lhes sucesso no seu trabalho. É realmente importante. Mais uma vez, dado que, desta vez há menos jornalistas russos do que poderia haver, peço-lhes que ajudem a compensar, dando uma ampla cobertura a tudo o que ouviram de nós.

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