United States of America
Briefing sobre questões internacionais e humanitárias no contexto da situação na Ucrânia proferido pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, Moscovo, 30 de junho de 2023
Boa tarde!
Os acontecimentos no mundo estão a evoluir rapidamente, tomando diferentes vectores. Quanto mais vezes nos encontramos, mais úteis são as nossas reuniões porque permitem informar os vossos telespectadores, leitores e ouvintes sobre a posição da Federação da Rússia. Também são úteis para nós. Não quero escondê-lo: quando ouvimos perguntas dos meios de comunicação social, isso também nos leva a certas reflexões e nos ajuda a fazer conclusões que refletem os interesses daqueles para quem trabalham. Trata-se do público em geral, e é de importância fundamental que sintamos os seus interesses.
Os acontecimentos de hoje refletem o processo global de transição do mundo dominado, durante séculos, pelo Ocidente para um mundo multipolar mais democrático e mais justo. O Ocidente está a resistir tenazmente, esforçando-se por conter e reprimir os seus concorrentes - todos os que são independentes no cenário internacional e não se guiam por "regras" impostas pelos EUA e os seus aliados, mas pelos seus próprios interesses nacionais. Estamos agora a assistir ao exasperado desejo do Ocidente de impedir a ascensão da Rússia como centro independente de uma ordem mundial multipolar. Para isso, o Ocidente preparou, durante muitos anos, e agora está a travar uma guerra contra o nosso país utilizando como proxy o regime nazi de Kiev criado pelos anglo-saxões. E já foi anunciado que o próximo país da sua lista é a China, designada nos documentos doutrinários da NATO como "principal desafio a longo prazo à hegemonia dos 'mil milhões dourados'". O objetivo é impedir que a Rússia, a China ou qualquer outro país reforce as fileiras dos seus aliados, impedir a expansão dos BRICS e o crescimento do seu prestígio no mundo, minar os processos de unificação na Eurásia no âmbito da UEE, da CEI, da OTSC, da OCX, da ASEAN e do projeto "Uma Faixa, Uma Rota".
A maioria dos países do mundo não quer viver de acordo com as regras ocidentais e defende as normas universais do direito internacional, principalmente as consagradas na Carta das Nações Unidas. O nosso objetivo, partilhado pela maioria esmagadora dos países, é fazer com que todos os princípios consagrados na Carta, sem exceção, sejam concretizados na íntegra (e não seletivamente) e em toda a sua interligação. É essencial reconhecer que não há alternativa ao princípio da Carta que diz que as Nações Unidas se baseiam na igualdade soberana dos Estados. Este princípio tem sido sempre desrespeitado pelo Ocidente. Nunca pensou sequer sobre a existência desta disposição da Carta das Nações Unidas. Os EUA estão a tentar impedir a democratização das relações internacionais. Isso é evidente. Washington e os seus aliados procuram cada vez mais, de forma descarada, utilizar os secretariados das organizações internacionais para fazer aprovar, ao arrepio dos procedimentos estabelecidos, decisões sobre a criação de mecanismos de "bastidores", subordinados, em geral, aos interesses ocidentais. Não têm mandatos consensuais, mas dão-se o direito ou reivindicam o direito de culpar os governos inconvenientes aos EUA e aos seus aliados. Esta tendência é particularmente evidente no domínio humanitário e visa colocar a opinião pública mundial contra os países "desobedientes" ao Ocidente. Esta situação torna ainda mais urgente garantir que a Carta das Nações Unidas que mencionei seja rigorosamente observada na sua totalidade, não só pelos Estados, mas também pelos secretariados das organizações internacionais.
O secretariado da ONU, de acordo com o artigo 100º da Carta, é obrigado a atuar com imparcialidade e não tem o direito de receber orientações de governos. Conhecemos numerosos exemplos de violação direta desta disposição. O primeiro desafio é fazer com que todos os Estados não só reiterem a sua fidelidade a todos os princípios da Carta das Nações Unidas, mas também os observem na prática. O segundo desafio, igualmente importante, é adaptar os principais órgãos da ONU às realidades atuais. Refiro-me à reforma do Conselho de Segurança, onde o Ocidente possui uma representação desproporcional e demasiadamente grande. Dos 15 membros, seis assentos são ocupados pelos representantes dos "mil milhões dourados". É injusto. Procuraremos alargar, o mais rapidamente possível, o número de membros do Conselho de Segurança da ONU de modo a que os países asiáticos, africanos e latino-norte-americanos também possuam assentos. As tentativas de incluir na lista de candidatos os candidatos ocidentais são contraproducentes e vãs. O domínio ocidental está a chegar ao fim. É tempo de passar à igualdade. Se todo o mundo é a favor da democracia, não esqueçamos que a democracia também deve estar presente nas relações internacionais.
Pergunta: A vice-presidente da Duma de Estado e Presidente da Comissão de Proteção da Maternidade e Infância do Partido “Rússia Unida”, Anna Kuznetsova, foi nomeada copresidente da Comissão Parlamentar de Inquérito aos Crimes do Regime de Kiev contra as Crianças. Quais serão as funções deste organismo?
Serguei Lavrov: Atualmente, o tema das crianças nos conflitos armados é abordado com muita frequência. É também objeto de especulações daqueles que procuram abusar da "imparcialidade" nas organizações internacionais. Como sabe, O recente relatório do Secretário-Geral da ONU afirma que a Rússia é responsável pelas situações que envolvem mais de uma centena de crianças. Queremos que todas as discussões sobre este assunto sejam honestas e se baseiem em factos. No entanto, o relatório não apresenta nenhum. Um dos mecanismos das Nações Unidas foi criado mediante abuso de procedimento e consenso, trata-se da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia. Os comissários viajam pelo mundo, conversam com representantes do regime ucraniano, obtêm informações, com base nas quais preparam os seus relatórios. Não contactam com aqueles que vivem do nosso lado da linha de contacto, tal como os representantes das Nações Unidas que, durante oito longos anos, nunca vieram ao Donbass quando ainda estávamos a tentar fazer com que os acordos de Minsk fossem observados. Por conseguinte, obtém a informação para os seus relatórios junto do lado “interessado", ou seja, junto do regime de Kiev e dos seus patrões ocidentais, entre os quais numerosas organizações não governamentais a soldo dos EUA e dos seus aliados, que utilizam a sua "pseudo-independência" para promover ideias necessárias ao Ocidente. Estamos interessados em fazer com que todos os trabalhos sejam feitos de forma justa e honesta. Por isso, a comissão parlamentar terá acesso aos factos reais para os analisar, sintetizar e apresentar à opinião pública.
Em maio passado, a Rússia recebeu a visita da Representante especial do Secretário-Geral para Crianças e Conflito Armado, Virginia Gamba. Entregámos-lhe uma quantidade considerável de material, que, esperamos, não será desconsiderado e será tido em conta no futuro trabalho do Secretariado.
Falando de crimes de guerra e de acusações de violações do direito humanitário internacional, é de notar que são poucos os factos que poderiam sustentas as acusações feitas pelos nossos colegas ocidentais contra o nosso país. Pedimos-lhes que nos apresentem informações e provas concretas. Isso praticamente nunca acontece.
Ao mesmo tempo, existem provas abundantes de atrocidades cometidas pelos efetivos dos batalhões neonazi ucranianos, de como os prisioneiros de guerra com sacos na cabeça, as mãos e os pés atados foram abatidos a tiro, de como os corpos dos mortos foram despejados em valas, à semelhança do que praticaram os nazis durante a Grande Guerra Patriótica.
Os nazis não escondem estes factos, eles fazem bravata, gravando estas cenas em vídeo, publicando-as na Internet e nas redes sociais. Mas estas provas aparentemente incontestáveis de atrocidades e violações de todas as leis da guerra e do direito internacional humanitário permanecem ocultas aos analistas do Secretariado da ONU.
Pergunta: No rescaldo da rebelião armada, muitos estão preocupados com a estabilidade da maior potência nuclear. A Rússia é atualmente estável? E pode dar alguma garantia de que a Rússia não está a "deslizar" para uma guerra civil?
Serguei Lavrov: Não devemos explicações nem garantias a ninguém. Estamos a agir de forma transparente. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e todas as forças políticas do nosso país pronunciaram-se sobre este assunto. Se alguém no Ocidente tem dúvidas, o problema é vosso. Também temos sérias dúvidas sobre a adequação de muitos líderes ocidentais que dizem publicamente em eventos oficiais que eles, enquanto membros do governo, compreendem que os seus eleitores estão a sofrer, mas que são "obrigados" a sofrer em prol da vitória da Ucrânia sobre a Rússia. É uma atitude adequada? Isso reflete o interesse nacional? Não vale a pena preocupar-se com os nossos interesses nacionais. Obrigado, mas não vale a pena. A Rússia sempre saiu de qualquer problema mais forte, sendo difícil dar outro nome senão “problema” ao que aconteceu. E assim será desta vez. Este processo já começou.
Muitos analistas ocidentais reconhecem-no. Não foi por acaso que, no sábado passado, quando os desdobramentos estavam apenas a começar, representantes oficiais ocidentais apressaram-se a afirmar que a fachada do poder russo estaria com uma rachadura e que, portanto, eles estavam a fazer tudo correto. Assim, eles admitiram que estão em guerra contra a Rússia. Acreditam que, uma vez que houve uma tentativa de motim, estão a fazer correto armando a Ucrânia. O Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, exortou a duplicar os fornecimentos de armas, demonstrando assim de forma clara, embora indiretamente, quem está a lutar contra quem. Por isso, agradeço a sua preocupação, mas saberemos resolver o nosso problema.
Pergunta: É possível (de acordo com as estimativas do lado russo) conseguir algum progresso na concretização do acordo de cereais na parte referente à Rússia nas duas ou mais semanas que faltam para a prorrogação do mesmo? Continuamos a manter contactos com a ONU, ou isso já não faz sentido?
Permita-me que eu faça uma segunda pergunta. Moscovo considera as consequências da sua eventual retirada do acordo de cereais para a segurança global e alimentar?
Serguei Lavrov: O acordo foi proposto como pacote de medidas pelo Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em 2022. Consistia em duas partes, cada uma das quais, como sublinhou o Secretário-Geral, tinha o mesmo peso: a primeira parte era um acordo sobre a exportação de cereais ucranianos a partir de portos ucranianos e a segunda parte era um Memorando entre a ONU e a Federação da Rússia, no âmbito do qual António Guterres se comprometeu a procurar o levantamento das sanções da União Europeia e dos EUA, que impediam e impossibilitavam a exportação dos nossos fertilizantes e cereais pelas rotas através da União Europeia.
Os mesmos "obstáculos" impossibilitaram o banco Rosselkhozbank de financiar a exportação de fertilizantes e de géneros alimentícios por ter sido desconectado do sistema SWIFT. As agências de seguros de transporte marítimo (por exemplo, a Lloyd's de Londres) qualificaram a rota do Mar Negro como perigosa devido às ações de guerra. Como resultado, as taxas de seguro deram uma disparada. O Ocidente também tomou algumas medidas ostensivamente técnicas, mas na realidade proibitivas. Acho que, de qualquer modo, continuaremos a exportar os nossos fertilizantes e alimentos. Estamos a prestar apoio às nossas exportações, contornando as rotas geográficas e outros obstáculos tecnológicos colocados pelo Ocidente. Segundo estimativas, as nossas exportações devem atingir 50 milhões de toneladas em 2023. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, também falou disso no ano passado, fazendo o ponto da situação. Estou convicto de que os nossos parceiros não sofrerão um prejuízo. A atitude do Ocidente para com este acordo é escandalosa. Em primeiro lugar, a 29 de junho de 2023, os EUA e o Reino Unido publicaram um documento em que afirmam que os nossos fertilizantes e alimentos não estariam sob sanções. Qualquer pessoa que se tenha interessado, pelo menos uma vez, pela situação neste domínio entende que é falso. Em segundo lugar, no que se refere à parte do acordo referente à Ucrânia. Apresentámos muitas vezes dados que mostram que os cereais ucranianos exportados se destinam a satisfazer as necessidades comerciais e não as dos países mais pobres. Isso quando o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, afirmou que a sua proposta visava ajudar os países de África onde a ameaça de fome era real. Segundo os dados disponíveis até ao dia 29 de junho, foram exportadas 32,5 milhões de toneladas de cereais da Ucrânia desde que a Iniciativa do Mar Negro entrou em vigor. Trata-se principalmente de milho (mais de 50%), óleo de girassol e trigo (menos de 30%). Os principais destinatários são: a União Europeia (quase 40%), a China (24%), a Turquia (cerca de 10%). Um pouco mais de 2,5% dos cereais foram exportados para os países mais pobres, que constam da lista do Programa Alimentar Mundial.
No caso de a "Iniciativa do Mar Negro" terminar, forneceremos gratuitamente uma quantidade comparável ou superior de cereais aos países mais pobres, a expensas nossas. O Presidente Vladimir Putin já anunciou esta iniciativa.
Durante todo o período de vigência do "acordo", apenas dois navios por mês saíram dos portos ucranianos no âmbito do Programa Alimentar Mundial com destino aos países necessitados, atingindo, porém, 90 por mês o número de navios que transportaram cereais para fins comerciais. É essa a diferença. Portanto, o "acordo" referente aos cereais ucranianos virou há muito um contrato comercial.
Muitos países da UE estão agora a protestar contra a continuação da importação de cereais ucranianos sem inspeções fitossanitárias e tarifas, porque isso está a arruinar os agricultores da UE. Se é este o caso, se a União Europeia está preocupada com a segurança alimentar, que compre os excedentes de cereais na Europa e os envie para os países em desenvolvimento, como nós fazemos, fornecendo-lhes alimentos e fertilizantes regular e gratuitamente. Em 2022, a UE apreendeu estes produtos nos seus portos. Agora, estamos a tentar libertar, com grande dificuldade, os nossos produtos para enviá-los aos países africanos. Por isso, não se preocupe com a segurança alimentar mundial. Há que fazer coisas que contribuam para o reforço da mesma. Isso inclui o envio dos excedentes de cereais ucranianos para África através da União Europeia e a libertação urgente dos fertilizantes que ainda lá se encontram detidos.
A gota que fez transbordar a paciência foi o ataque terrorista ao duto de amônia Togliatti-Odessa mencionado nas propostas do Secretário-Geral como "parte" deste acordo. Entretanto, Volodimir Zelenski havia bloqueado o seu funcionamento, impondo condições políticas. No final de contas, o duto acabou dinamitado. Não vejo quais argumentos poderiam ser apresentados por aqueles que gostariam de dar continuidade à Iniciativa do Mar Negro. Há muito que se tornou comercial na parte referente aos cereais ucranianos.
Pergunta: Foi realizada recentemente na Rússia uma investigação parlamentar sobre os laboratórios biológicos dos EUA na Ucrânia. Hoje, os senadores e deputados vão realizar a primeira reunião da Comissão de Inquérito às Ações do regime ucraniano. Como avalia a importância da investigação e que esforços estão os diplomatas russos a fazer e continuarão a fazer para garantir que os resultados destas investigações cheguem ao conhecimento dos povos do mundo?
Serguei Lavrov: Consideramos que esta é uma iniciativa importante dos nossos parlamentares. A primeira iniciativa que mencionou - a investigação sobre os programas biológicos do Pentágono na Ucrânia – teve ampla repercussão pública. Apresentámos este relatório na ONU e convocámos uma reunião especial do Conselho de Segurança com o apoio da China. Os membros do Conselho de Segurança pelos países em desenvolvimento manifestaram-se muito preocupados, acentuando a sua preocupação, em maior ou menor grau, nas sua s declarações. Este assunto não está encerrado. O nosso Ministério da Defesa continua a fornecer à comunidade internacional materiais que levantam sérias questões e leva à conclusão de que o Pentágono tem desenvolvido aquilo que é comummente referido como armas biológicas em laboratórios na Ucrânia e qualificado como tais pela Convenção sobre Armas Biológicas e Toxínicas. Não é por acaso que os norte-americanos, que "espalharam" os seus laboratórios em muitas regiões (inclusive as que nos são vizinhos: a China, a Ásia Central e a Transcaucásia), bloqueiam uma iniciativa que há muito promovemos – criar um mecanismo para verificar o cumprimento da Convenção sobre Armas Biológicas por todos os países. Isto não lhes agrada, o que constitui mais uma prova, ainda que indireta, de que os planos do programa biológico dos EUA no território de países estrangeiros não são de modo algum inofensivos ou inocentes. Os norte-americanos afirmam que estas investigações são para fins civis e não tem dimensão militar, mas se é este o caso, realizem estas "investigações civis" no seu território nacional. Uma das razões pelas quais estas investigações são feitas no estrangeiro (para além de criar riscos para os países em causa) é que os norte-americanos não querem fazer experiências perigosas no seu território nacional, receando as suas consequências.
Quanto ao inquérito parlamentar, que foi recentemente anunciado e será presidido pela Vice-Presidente da Duma de Estado, Anna Kuznetsova. É claro que estamos preocupados com o destino das crianças que se encontram em zonas de conflito. Este assunto foi levantado por muitos dos nossos parceiros estrangeiros devido às numerosas e "escandalosas” acusações feitas pelo regime de Kiev e os seus patrões ocidentais.
Posso apenas reiterar que o Presidente Vladimir Putin afirmou repetidamente que todas as crianças que se encontram atualmente em território russo foram identificadas, ninguém esconde os seus nomes nem as suas "coordenadas". Se estas crianças têm pais ou parentes diretos, estes têm todo o direito de vir buscá-las. Isso já está a ocorrer e já ocorreu várias vezes. Várias dezenas de crianças voltaram para junto dos seus familiares quando estes deram sinal de si. As crianças foram parar à Rússia porque estavam em orfanatos e não tinham familiares por perto.
Retirámos os orfanatos e o seu pessoal da zona de guerra. Não estamos a esconde-lo, pelo que não adianta os nossos colegas ocidentais tentarem “fazer de uma mosca um elefante”, tanto mais que nem uma mosca está ali presente. Mas há bastantes "elefantes" do lado ucraniano. Não só no que se refere às crianças, mas também aos outros crimes de guerra que referi.
Uma vez que estão a tratar de crianças alegadamente retidas à força na Federação da Rússia, seria bom que os europeus prestassem atenção ao que está a acontecer às crianças ucranianas na Europa. Recebemos muitas reclamações de ucranianos que se refugiaram na Europa no sentido de que as crianças lhes estão a ser retiradas à força pelas autoridades de tutela.
Penso que a nossa comissão parlamentar irá também debruçar-se sobre esta questão. É inaceitável que os nossos parceiros ocidentais estejam constantemente a fingir que o regime de Kiev é impecável. Este regime é racista e nazi. É um regime que declara publicamente, pela voz do seu Presidente, ministros e outros funcionários, que o seu objetivo é aniquilar legal e fisicamente os russos. Alguma vez algum dos democratas europeias prestou atenção a estas declarações? Não quero ofender ninguém, mas não vi nenhum comentário na imprensa ocidental a este respeito.
Pergunta: A minha pergunta é sobre o relatório recentemente apresentado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, ao Conselho de Segurança da ONU, no qual a Rússia foi apontada como país responsável pela violação dos direitos da criança no território da Ucrânia por causa da morte de crianças em 2022. Ao mesmo tempo, o relatório não faz nenhuma referência ao lado ucraniano. O que pensa desta declaração do Secretário-Geral da ONU? Quais são as razões que justificam esta declaração? Associa esta declaração ao facto de o Tribunal Penal Internacional ter considerado o Presidente da Federação da Rússia e a Provedora dos Direitos da Criança junto do Presidente da Federação da Rússia, culpados de violar estes direitos e ter emitido um mandado de captura dos mesmos? Tenciona a Rússia tomar alguma medida em relação a este relatório?
Serguei Lavrov: No seu relatório, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, mencionou 46 casos em que crianças foram deslocadas para o território russo. Deslocadas (mas o Secretário-Geral não utilizou este termo), não retiradas à força. As crianças foram deslocadas sem o consentimento dos seus pais ou tutores. Elas foram evacuadas da zona de conflito para regiões seguras e são constantemente objeto de reportagens na nossa televisão. As crianças retiradas estão agora em colónias de férias infantis e comentam o seu estado de saúde em declarações à televisão. Dito isto, sempre dissemos às organizações internacionais que, se estivessem interessadas em recolher factos, quer sobre as crianças, quer sobre qualquer outra coisa relativa à situação na Ucrânia devido à nossa operação militar especial, estaríamos prontos a fornecer-lhes toda a informação. E de facto estamos a fazê-lo. Mas, regra geral, as informações por nos concedidas não constam dos documentos do Secretariado da ONU. Também não se diz nada sobre o facto de que, desde fevereiro de 2022, recebemos mais de cinco milhões de habitantes da Ucrânia, dos quais mais de 700 000 são crianças. A maioria delas veio com os seus pais ou outros familiares. E destas, apenas duas mil são crianças de orfanatos da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, que foram retiradas de lá juntamente com o pessoal. Todas estas crianças permanecem nos orfanatos. Com efeito, 358 crianças foram colocadas em famílias, não para a adoção, mas para a tutela provisória. Esta forma foi escolhida em atendimento ao facto de os pais poderem dar sinal de si. Estes pais terão toda a oportunidade de vir buscar os seus filhos se quiserem.
Por que razão o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, decidiu fazer uma menção à Rússia e não disse nada sobre a Ucrânia? Se considerarmos o número de casos preocupantes na Ucrânia, veremos que ele equivale ao de casos mencionados no capítulo dedicado à Rússia.
No entanto, por alguma razão, António Guterres decidiu que é possível dar a um mesmo fenómeno avaliações diferentes, partindo, nalguns casos, da necessidade de o qualificar e, noutros, falar dele em geral sem especificá-lo. Já disse na minha intervenção inicial que estamos preocupados com a política do Ocidente de subjugar os secretariados internacionais e de os "privatizar". É um problema grave. Os secretariados são dominados por representantes de países ocidentais ou de países em vias de desenvolvimento, que se mudaram para Nova Iorque, obtiveram uma segunda cidadania e, portanto, não representam mais os interesses da sua pátria histórica, mas sim os da sua nova pátria. Sabemos como estes interesses são promovidos, quais métodos são usados para isso, sem vergonha nem consciência. Não vejo outro caminho senão o de buscar a verdade. Fá-lo-emos com base na nossa própria investigação objetiva, que não será influenciada por nenhuma das partes interessadas e muito menos por aquelas que patrocinam o regime de Kiev.
Enviámos uma mensagem ao Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em que recordámos o destino das crianças dos refugiados ucranianos na Europa. Os seus pais estão a telefonar para as nossas missões diplomáticas a pedir ajuda. Só nos resta chamar a atenção da União Europeia para esta situação (o que estamos a fazer agora). Enviámos uma mensagem especial a António Guterres. Veremos como ele vai reagir e se conseguirá ser objetivo nesta questão.
Pergunta: As relações económicos, humanitárias e outras da Finlândia com a Rússia foram praticamente rompidas. Acha que é possível restabelecê-las? O que deve ser feito para isso? As missões diplomáticas de ambos os países têm vários problemas, inclusive os em termos de financiamento. O que está a ser feito para resolver estes problemas?
Serguei Lavrov: Colocou a sua questão de forma delicada, começando com a frase de que as relações entre a Finlândia e a Rússia "foram rompidas". Um jornalista, se quiser se guiar pelos factos, tem de ser mais concreto. Não fomos nós que rompemos as relações. As relações foram rompidos pelo governo finlandês, que abandonou, de repente, a sua longa tradição de boa vizinhança e de cooperação mutuamente benéfica com a Federação da Rússia e passou para o campo daqueles que estão envolvidos na campanha contra a Federação da Rússia. O problema não está em nós. Somos vizinhos da Finlândia. Sempre estivemos interessados em conviver em paz. Fizemos muito pela independência da Finlândia. Os russos lembram-se sempre do bom que foi feito para eles, o que não pode ser dito sobre alguns dos nossos parceiros que nem sempre se lembram do bom feito para eles. Se o lado finlandês decidir que é necessário retomar as relações normais, estaremos prontos a considerar a proposta que Helsínquia possa fazer. Quando e se discutirmos o âmbito das nossas novas relações, teremos naturalmente em conta a mudança de estatuto da Finlândia, refiro-me à sua adesão à Aliança do Atlântico Norte e ao documento assinado com a NATO que permite a instalação de infraestruturas militares da Aliança no território do vosso país. Não podemos ignorá-lo. O business as usual não vai acontecer mais.
Quanto ao funcionamento das missões diplomáticas. Não fomos nós que impusemos as sanções a que somos obrigados a responder e estamos a responder. Não fomos nós que causámos o agravamento dramático das relações, inclusive diplomáticas, entre os nossos dois países. Para ser franco, não acho necessário que agora os nossos contactos diplomáticos sejam tão intensas como na época normal, anterior ao momento em que Ocidente nos declarou guerra através do regime nazi ucraniano.
Pergunta: O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse na quarta-feira que acredita que o conflito na Ucrânia terminará diplomaticamente, através de negociações. Existem sinais de os EUA estarem dispostos a negociar sobre a Ucrânia e estarem a tentarem estabelecer contactos com Moscovo sobre este assunto ?
Serguei Lavrov: É uma declaração estranha. Já ouvi falar disso. Mas estas declarações aparecem em simultâneo com as do Secretário de Estado norte- americano, Antony Blinken, dos dirigentes do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, das personalidades oficiais da UE e da NATO de que a Ucrânia deve, primeiro, vencer e levar a bom termo a sua contraofensiva e só depois o Ocidente verá se vale a pena negociar. É esquizofrénico dizer-se que o conflito terminará com as negociações assim que a Rússia for derrotada. Outro aspeto é saber se existe alguma base para as negociações. Os EUA, juntamente com a NATO e a UE, afirmaram com firmeza, repetida e peremptoriamente que a única base para as negociações é a famosa "fórmula de paz de 10 pontos de Volodimir Zelenski". Contém alguns postulados neutros (banais, diria eu) e não sei bem por que razão foram aí incluídos, como, por exemplo, garantir a segurança alimentar e energética. Por outras palavras, a fórmula fala das coisas que foram prejudicadas pelas sanções do Ocidente. No entanto, o principal postulado de que depende um acordo de paz afirma que a primeira coisa que a Rússia deve fazer é retirar-se para as fronteiras que tinha em 1991, entregar à justiça os seus líderes e pagar indemnizações. E só quando estas condições estiverem preenchidas, um acordo de paz pode ser concluído. É esta a posição do Ocidente, quando fala da necessidade de negociações e de uma solução de paz. Um transtorno de personalidades múltiplas destes não ajuda a orientar-se corretamente na situação.
A minha avaliação é a de que eles estão a tentar congelar temporariamente este conflito, conseguir um cessar-fogo e ganhar tempo para fornecer novas armas à Ucrânia, construir ali uma nova infraestrutura militar e entregar-lhe novas armas letais de longo alcance. Pelo menos, é este o roteiro promovido pelos analistas políticos norte-americanos. A revista “Foreign Affairs” publicou recentemente um artigo de Richard Haass e Charles Kupchan em que ambos disseram o seguinte: conseguir um cessar-fogo, ganhar tempo. Sim, a Rússia também terá uma pausa, mas a Ucrânia é apoiada por todo o Ocidente e saíra muito mais forte para continuar a tentar alcançar os objetivos mencionados na "fórmula de Volodimir Zelenski".
A demagogia nunca impediu a diplomacia de atingir determinados objetivos. Afinal, é para isso que a diplomacia existe, para distinguir as "jogadas" artificiais da realidade.
Pergunta: Apesar da pressão, os gregos estão a tentar não esquecer a grande diáspora grega na região do Mar de Azov. Sabemos que o atual governo não vai dizer nem fazer nada. Quão aberta é Rússia à diplomacia popular dos cidadãos de países hostis? Os europeus ocidentais podem vir a Mariupol para ajudar a reconstruir a cidade? Alguns estudantes nossos gostariam de comunicar com estudantes locais, outros se oferecem para ensinar a língua devido à falta de professores de grego. Os advogados perguntaram-me se os estrangeiros tinham sido convidados a participar nos julgamentos dos nazis em Rostov do Don. Ficamos surpreendidos ao ver europeus ocidentais virem a Moscovo e se encontrarem com o Patriarca de Moscovo. Vemos muçulmanos e judeus a tomar a iniciativa. Existem iniciativas por parte dos líderes ou organizações ortodoxas, especialmente quando os hierarcas ortodoxos são perseguidos na Ucrânia e as igrejas e mosteiros estão a ser encerrados ali?
Serguei Lavrov: Disse que gostaria de saber se a Grécia ou a diplomacia popular grega poderiam prestar ajuda aos gregos que vivem na região do Mar de Azov. Estas organizações diplomáticas populares já se ofereceram para isso?
Resposta: A nível organizativo, não. Mas em casos isolados há pessoas interessadas, preocupadas...
Serguei Lavrov: Se estas pessoas o abordar para saber alguma coisa, aconselhe-as a não fazer perguntas, mas a formular as suas propostas sobre como estão dispostos a ajudar, sobre o quê e onde estão dispostos a fazer. Podem transmitir as suas propostas através do nosso Embaixador.
A pedido do Papa, um cardeal do Vaticano reuniu-se com os dirigentes russos e com o Patriarca Kirill. Reunimo-nos com as comunidades judaica e muçulmana. As comunidades que estão interessadas em estabelecer contactos têm sempre a oportunidade de o fazer. Não me lembro de terem sido feitas propostas de cooperação, de apurar factos e trocar opiniões pela ortodoxia mundial representada pelo Patriarca de Constantinopla. Não houve nada disso. Sabe que o Patriarca de Constantinopla está em estreito contacto com os EUA que o financiam. Ele está a fazer tudo para acabar com a ortodoxia mundial. É uma coisa óbvia. Os norte-americanos nem sequer o escondem. Até têm um representante para a liberdade religiosa que faz exatamente o contrário. Ele tenta negociar com todas as igrejas locais ortodoxas para promover a ideia de um "divórcio" da Igreja Ortodoxa Russa em todos os sentidos. Se o senhor ou os seus colegas têm interesse em realizar projetos humanitários na Rússia (por exemplo, professores de grego, ou qualquer outra iniciativa), não vejo problema para eles poderem enviar-nos as suas propostas. Está a perguntar-me se podemos aceitar tais propostas de cidadãos dos povos hostis. Nós não consideramos nenhum povo como hostil. Seria mais correto dizer que há governos hostis. E nunca tivemos problemas com os povos, nem com o povo grego.
Pergunta: Há cerca de um ano, os países à volta da Sérvia, mais precisamente a NATO, impediram-no de visitar Belgrado. Está a ser considerada uma nova tentativa? A que nível Moscovo e Belgrado mantêm contactos oficiais? Moscovo está satisfeita com esta situação?
Serguei Lavrov: É verdade, há pouco mais de um ano eu planeava visitar oficialmente a Sérvia no início de junho. Trocamos regularmente visitas com os nossos amigos sérvios. O Ocidente impediu-me de realizar aquela viagem, pressionando os países vizinhos da Sérvia a não permitirem o sobrevoo do nosso avião. Não temos nenhuma razão para nos sentirmos ofendidos pelos nossos amigos sérvios. Como compensar este incidente? Combinámos com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Sérvia, Ivica Dacic, um bom e velho amigo meu, que ele se deslocará à Federação da Rússia nesta situação. Estamos a acordar datas concretas. Não sei se o que lhe disse fará com que o Ocidente volte a exigir de forma descarada que Ivica Dacic não venha à Rússia. De qualquer modo, temos este entendimento. Em setembro de 2022, o anterior Ministro dos Negócios Estrangeiros sérvio e eu assinámos em Nova Iorque, durante a Assembleia Geral da ONU, um plano de consultas entre os nossos Ministérios dos Negócios Estrangeiros. Lembra-se da histeria dos representantes norte-americanos e europeus? Disseram que condenavam a Sérvia por ter assinado o plano de consultas com o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo numa altura daquelas. Esta doença não tem cura. Estão possuídos pela ideia da sua grandeza, da sua inabalável presunção no contexto daquilo que referi na minha intervenção inicial. Os grandes "mil milhões dourados" impõem as suas "regras" a todo mundo, dizendo aos países com quem devem contactar e o que devem assinar.
Espero que o povo sérvio ultrapasse a difícil situação atual em que a União Europeia e os EUA estão a fazer os possíveis para minar os acordos alcançados há dez anos sobre a Comunidade de Municípios Sérvios no Kosovo. Os ocidentais tentaram criar municípios no norte do Kosovo, regiões povoadas por sérvios, sem representantes sérvios. Estamos solidários com o povo sérvio na defesa da Resolução 1254 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de todos os princípios acordados pela comunidade internacional e aprovados pela ONU.
Os nossos contactos com a Sérvia são regulares. Estamos gratos ao Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e ao Governo sérvio por estarem sempre abertos ao contacto com o nosso Embaixador. É útil. Temos sempre a oportunidade de conversar ao telefone. Estou à espera da visita de Ivica Dacic, quando ele considerar conveniente fazê-la.
Pergunta: Qual é a situação após as inundações em Kakhovka? A assistência prestada é suficiente?
Serguei Lavrov: Divulgamos regularmente informações sobre a Central Hidroelétrica de Kakhovka. As autoridades locais publicam relatórios e vídeos. O rio Dniepre voltou ao seu curso normal. Houve registo de danos consideráveis causados pelas inundações. Agora estão a ser reparados. Penso que os danos causadas às construções civis serão rapidamente reparados. A reconstrução da barragem propriamente dita levará algum tempo. As autoridades competentes estão a trabalhar nesta questão.
Pergunta: Disse que a República Centro-Africana e o Mali contarão com especialistas militares russos. Eles serão do Grupo Wagner ou do Ministério da Defesa russo?
Serguei Lavrov: Temos mantido uma cooperação militar e técnica estreia com a República Centro-Africana e outros países africanos.
Várias centenas dos nossos formadores militares do Ministério da Defesa russo estão há muito tempo na República Centro-Africana a ajudar a formar oficiais no âmbito do tratado oficial entre os nossos dois países. Já formaram vários milhares de militares locais. Tanto o Presidente como o Governo desse país valorizam o profissionalismo dos militares formados pelos nossos especialistas.
Quanto ao Grupo Wagner que também esteve lá e em vários países africanos. Estiveram ali sob o contrato concluído com os governos daqueles países. Há dois anos, em setembro de 2021, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Mali, Abdoulaye Diop, afirmou na Assembleia Geral das Nações Unidas (quando circulavam rumores e especulações nos bastidores) que a República do Mali estava preocupada com as perspectivas da sua segurança, com a decisão do Governo francês de terminar a operação Barkhane e com a decisão da UE de se retirar também do Mali e retirar as bases militares francesas das regiões norte do país, a zona mais perigosa, onde existiam sérias ameaças por parte de unidades terroristas, que chegaram ao Mali e a outros países africanos depois de os países da NATO, com a participação ativa da França, terem bombardeado a Líbia e o terem transformado num "buraco negro" através do qual os terroristas entraram na República Centro-Africana e no Mali, entre outros. Compete aos governos dos países africanos decidir sobre o que fazer com os contratos com o Grupo Wagner e ver se estão interessados em continuar a cooperar com ele para garantir a segurança dos seus órgãos do poder.
Pergunta: Está a ONU a realizar alguma investigação sobre os trágicos acontecimentos ocorridos na Ucrânia durante os protestos na Praça de Maidan, em Odessa e Mariupol em 2014 e em Bucha, na primavera de 2022?
Serguei Lavrov: Não sabemos nada sobre isso. Recordamos a necessidade de levar a termo a investigação sobre estes crimes terríveis cometidos durante os protestos na Praça de Maidan, em fevereiro de 2014, em Odessa, em maio de 2014. Aqueles que dispararam contra as pessoas que estavam a saltar da Casa do Sindicato em chamas tinham um ar orgulhoso, filmando os seus crimes que foram transmitidos em direto. Sentiam-se como heróis na luta contra os "russos". Na altura, muitos na Europa ficaram indignados com esta façanha. O Comité de Ministros do Conselho da Europa (éramos membros desta estrutura na altura) decidiu, com muita dificuldade, criar uma espécie de órgão consultivo para ajudar as autoridades ucranianas a investigar o incidente. As intenções foram anunciado, mas o projeto acabou por não dar em nada. No que respeita aos crimes na Praça de Maidan, a única coisa que foi feita é que foram detidos alguns efetivos da polícia de choque “Berkut”. No que diz respeito ao caso da Casa dos Sindicatos, sei que as pessoas que organizaram os protestos anti-Maidan ainda estão sob investigação. A justiça e a imparcialidade não estão a funcionar neste caso.
Todas as ações do governo ucraniano, que "limpou" do seu espaço jurídico tudo o que estivesse relacionado com a língua russa, a educação e os meios de comunicação social russos, estão a contribuir para o fomento do ódio.
Citei hoje muitos exemplos de o regime de Kiev exortar a matar russos. Volodimir Zelenski, por exemplo, dissera, em tempos, que aqueles que se consideravam russos deveriam ir para a Rússia e que aqueles que estavam no Kremlin não morreriam de morte natural. Os seus colegas, entre os quais o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmitro Kuleba, diplomata (que provavelmente aprendeu a diplomacia com Josep Borrell), disse há alguns meses que a eliminação do Presidente da Rússia seria suficiente para acabar com a guerra na Ucrânia. Disse isso durante o seu discurso numa instituição democrática ocidental não governamental. Não temos ilusões. Também não temos quaisquer ilusões relativamente a outros crimes marcantes, "casos" que não envolvem sequer a Ucrânia.
Por exemplo, o caso Skripal. Recentemente, voltámos a pedir aos britânicos que nos dissessem onde estão os nossos cidadãos. Não sabemos nada deles desde 2019. Fora anunciado que teriam sido envenenados, "hailey laikely", por agentes dos serviços secretos russos. No entanto, nenhuma prova disso foi apresentada.
Outro caso é sobre o “envenenamento de Aleksei Naválni. Os nossos numerosos pedidos oficiais de provas enviados à Alemanha, à Suécia, à França e à Organização para a Proibição de Armas Químicas continuam pendentes. A Alemanha disse que não podia conceder-nos as análises completas porque tinham sido feitas pela Bundeswehr e não podia, portanto, permitir que tivéssemos acesso aos seus "segredos" no domínio das armas biológicas. Depois, disseram que haviam entregado estas análises à OPAQ. Enviamos um pedido à OPAQ. Esta última disse-nos que os alemães os tinham proibido de entregar este "documento" à Rússia. É assim que eles estão a investigar os referidos casos.
Vale a pena citar os exemplos mais recentes relativos à Ucrânia, em particular o do Boeing da Malásia abatido sobre o Donbass em julho de 2014. Todas as testemunhas, exceto uma (e eram quinze), eram anónimas. Nenhum nome foi divulgado no tribunal. Os norte-americanos disseram que tinham imagens de satélite que provavam que haviam sido os militares do Donbass a abater a aeronave. Os nossos advogados pediram essas imagens e tiveram o seu pedido negado. Enquanto isso, o tribunal holandês declarou acreditar na palavra dos norte-americanos. É como aquela anedota do homem que aceitou jogar às cartas sem saber as regras.
Outro exemplo ainda é o caso Bucha, que se tornou um pretexto para uma nova ronda de sanções e histeria no Ocidente. Recordo que esta provocação teve lugar três dias depois de as nossas tropas se terem retirado do local, na esperança de que o "acordo de Istambul" fosse observado pela Ucrânia. Durante três dias inteiros, o Presidente da Câmara de Bucha esteve na televisão a dizer que estavam de novo "em casa". No terceiro dia, foram mostrados dezenas de cadáveres deitados na rua central da cidade. Desde então, temos vindo a pedir que nos digam, pelo menos, os nomes das pessoas mostradas como mortas, já não pedimos que nos informem de como a investigação está a ser realizada.
Em setembro de 2022, pedi publicamente ao Secretário-Geral da ONU, António Guterres, na reunião do Conselho de Segurança da ONU em Nova Iorque, que usasse a sua autoridade para garantir que os nomes das pessoas que foram alegadamente "torturadas até à morte” pelas tropas russas no local fossem disponibilizados à opinião pública mundial. Por enquanto, nada está a acontecer. Lembro-o regularmente ao Secretário-Geral durante as nossas reuniões. No entanto, por enquanto, não podemos esperar que os nossos colegas e o Secretariado das Nações Unidas por eles pressionado avaliem honestamente a situação e realizem investigações objetivas.
Pergunta: Como é que ocorre o reencontro das crianças retiradas da Rússia durante a operação militar especial com os seus países ou representantes dos mesmos? Qual é o status das crianças que chegam à Federação da Rússia?
Serguei Lavrov: Já falei sobre isso. Deve não ter estado atento. São consideradas temporariamente deslocadas. Algumas delas têm tutores temporários. Nenhuma delas foi adotada, as autoridades competentes tomam medidas para verificar se têm pais e se estes estão dispostos a vir buscá-las. Algumas crianças foram postas no orfanato pelos seus pais vivos. Aparentemente, o reencontro familiar não estava entre os seus planos.
Quanto ao status e ao processo de reunificação familiar. Tivemos um briefing inteiro no Conselho de Segurança da ONU, onde falou a Provedora dos Direitos da Criança, Maria Lvova-Belova. Descreveu a situação em pormenor. Todos os nomes das crianças estão disponíveis para consulta. Todos os interessados podem consultá-los. Se os pais descobrirem que o seu filho está algures na Federação da Rússia e quiserem vir busca-lo, têm todas as oportunidades para o fazer. Recomendo que, para obter mais informações junto de uma fonte mais competente (se não tiver sido proibido de o fazer pelo Tribunal Penal Internacional), contacte o escritório da Provedora Maria Lvova-Belova.
Pergunta: Qual é a posição do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a situação na Central Nuclear de Zaporojie? Ontem, o lado ucraniano afirmou que estava a realizar exercícios antirradiação e a distribuir iodo. Quão grave é a ameaça simulada por Kiev? O que pensa o nosso país sobre o assunto?
Serguei Lavrov: Temos comentado regularmente este assunto. Ontem, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU, voltámos a divulgar um documento oficial em que reiteramos a nossa grande preocupação com os factos que demonstram as ações provocatórias do lado ucraniano. Eles dizem que se irão fazer explodir quando estiverem numa instalação nuclear. Acha mesmo necessário eu comentar isto? É uma mentira que faz parte do modus operandi da atual liderança ucraniana. Faz passar qualquer disparate como a tarefa mais urgente da atualidade e exige que o Ocidente apoie as suas iniciativas absurdas.
Veja-se o tom com que o regime ucraniano fala com os seus parceiros ocidentais. Um assessor de Volodimir Zelenski disse que eles estão a exigir que a NATO aprove, na sua cimeira, o início do processo de adesão da Ucrânia, caso contrário esta não vai querer entrar. É assim que eles falam com os seus patrões, de quem são cem por cento dependentes financeiramente e em todos os outros aspectos.
Sobre a Central Nuclear de Zaporojie. Há já vários meses que os peritos da AIEA se encontram no local a atuar em rodízio. Enviam relatórios regulares para Viena, a sede da AIEA. Podem fazê-lo até diariamente. Estes peritos, bem como o Diretor-Geral da AIEA, Rafael Grossi, que visitou a Central Nuclear de Zaporojie, sabem muito bem quem está a bombardeá-la. Ultimamente, o número de bombardeamentos tem vindo a diminuir, mas até há pouco tempo eram regulares. Eles sabem muito bem que isso é perigoso e que não vai servir para nada. Negam todos os nossos pedidos para formularem a sua posição e relatarem o que vêem com os seus próprios olhos na Central, dizendo que a busca dos culpados não é da sua competência. Por isso, limitam-se a escrever a palavra "bombardeamentos" nos seus relatórios. Agora pedimos-lhes que, pelo menos, especifiquem o lado de onde vêm os bombardeamentos. Isto não é a busca dos responsáveis.
Os ucranianos estão a fazer jogadas perigosas. Sabemos que eles sabem encenar "tragédias". Sobre a distribuição de iodo e outros medicamentos. Este é mais uma encenação a exemplo dos espetáculos de Bucha e do disparo de um míssil "russo" contra a estação de comboios de Kramatorsk. Como se verificou no local, o míssil foi norte-americano. Há muitas outras encenações. Bem se vê que o homem teve experiência no programa de televisão “Clube dos Alegres e Espertos”.
Pergunta: Respondendo à pergunta do nosso colega finlandês, o senhor disse que não via necessidade de uma presença diplomática tão grande como no passado. Sabe que Bucareste também quis limitar o número de diplomatas russos igualar as embaixadas. Até onde, acha, pode evoluir a espiral de restrições e expulsões mútuas? Em 2022, Dmitri Medvedev disse que chegou a altura de colocar cadeados nas portas das embaixadas.
Serguei Lavrov: Ele disse-o mesmo e eu penso que sim. Qualquer analista objetivo concordará que, na situação criada pelos nossos parceiros ocidentais (NATO e UE), não há necessidade de manter contactos tão intensos como os que tivemos nos tempos melhores, quando vivíamos em amizade, cooperação, boa vizinhança, fazíamos investimentos conjuntos, ganhávamos dinheiro, quando os nossos povos se visitavam como turistas. Agora os contactos estão noventa por cento congelados em comparação com o que eram antes. Sim, estamos a manter a nossa presença diplomática. A Finlândia também a mantém no nosso país. Mas não precisamos uma presença tão grande como antes. Queremos que as nossas embaixadas e consulados gerais trabalhem normalmente para que não tenham problemas em pagar salários e transferir dinheiro para manter as nossas instalações em boas condições. Repare, não fomos nós que criámos estes problemas, não fomos nós que começámos a expulsar diplomatas, nem fomos nós que quisemos igualar o número de diplomatas e obter a paridade. Tudo bem, podemos estabelecer a paridade. Mas a escolha não é nossa.
A esmagadora maioria das embaixadas dos países ocidentais na Rússia contrata localmente cidadãos russos que não fazem parte da quota de pessoal diplomático. Nós não temos esta prática. Também podemos despachar para fora este pessoal. Se começarmos a agir segundo o princípio "olho por olho e dente por dente", podemos ir longe demais. Teremos em breve uma história semelhante à dos norte-americanos e os britânicos que iniciaram "reduções", "expulsões" e declarações de persona non grata.
Lembre-se de como tudo começou no caso dos norte-americanos. Em dezembro de 2016, Donald Trump já tinha sido eleito presidente e Barack Obama estava a três semanas da sua saída da Casa Branca. Logo na véspera das festas do fim de ano, Barack Obama "bateu com a porta" para deixar a Donald Trump um bom "legado" nas relações com o nosso país, ou falando simplesmente; descarregou assim a sua raiva. Mandou expulsar várias dezenas dos nossos diplomatas. Depois, retirou cinco bens imóveis que estavam protegidas por imunidade diplomática ao abrigo de tratados interestatais. Ficámos então à espera, até ao verão, que a Administração Trump fosse capaz de "dar a volta à situação". Não o conseguiram. Começámos então a retaliar. A diplomacia age em reciprocidade: há reciprocidade na gentileza, nas concessões, mas também na grosseria.
Pergunta: Como estão os preparativos para a Cimeira Rússia-África? Que líderes do continente africano são esperados? Que documentos importantes poderão ser assinados nesta cimeira?
Serguei Lavrov: Os preparativos para a Cimeira já estão na fase final. Estamos a chegar à linha de chegada. Quase todos os países confirmaram a sua participação. Mais de metade dos países africanos serão representados na Cimeira. Apesar de estarem a ser descaradamente "pressionados" e abordados todos os dias para cancelarem a sua ida à cimeira, ou para baixarem o nível de participação. Estas são as "maneiras" dos nossos colegas ocidentais. Gostaria de recordar mais uma vez. Quando a nossa operação militar especial começou, explicámos as suas causas. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, fez um discurso que foi visto e ouvido por todo o mundo. As causas que nos levaram a lançar a nossa operação especial acumularam-se durante anos, começando com a NATO ter faltado à palavra dada de não se expandir, continuando com o golpe de Estado que levou verdadeiros racistas ao poder, que começaram a proibir a língua russa e a exigir a expulsão dos russos da Ucrânia. Já disse hoje que começaram a ameaçar matar todos os russos onde quer que os encontrassem. Tudo isto criou uma situação absolutamente inequívoca para nós, não tivemos outra alternativa senão lançar uma operação militar especial. Tudo isto foi explicado em pormenor. O Ocidente condenou-a. Tudo bem, mas deixem os outros em paz: os países da Ásia, da África e da América Latina que constituem a maioria global. Tratem-nos como adultos. Respeitem o seu direito de ouvir as avaliações da Rússia e do Ocidente e de elaborar a sua própria posição. Nós nunca exigimos nada, mas explicamos a nossa posição. O Ocidente não explica nada, dizendo que "a Rússia é uma ameaça, não devem comunicar com ela, ela tem os seus dias contados, por isso não apostem no cavalo perdedor". Estas são as maneiras "diplomáticas" que temos hoje no Ocidente. Eu sei disso. Estive muitas vezes em África nos últimos dois anos. Os meus colegas dizem-me que são alvo de pressões descaradas. Esta é a "democracia" e a forma como o Ocidente trata os outros países e encara o princípio da Carta das Nações Unidas de respeitar a igualdade soberana dos Estados. Eles estão-se nas tintas para isso. Pensam apenas que tudo lhes é permitido, enquanto aos outros só é permitido o que os "mil milhões dourados" lhes permitirem.
A maioria dos países será representada ao mais alto nível. Estão a ser elaborados uma declaração e um documento importantes que definirão os planos de interação entre a Rússia e os países africanos numa perspectiva de médio prazo (para alguns anos). À margem da Cimeira, realizar-se-á um fórum económico e um fórum dos meios de comunicação social. O evento tem uma agenda repleta de atividades que serão realizadas em vários locais. Estou convencido de que será interessante.
Pergunta: Confirma as estatísticas da ONU sobre as vítimas civis na Ucrânia? Considera que a chamada operação militar especial melhorou a situação humanitária na Ucrânia, no Donbass e nas regiões fronteiriças da Rússia?
Serguei Lavrov: No que respeita à situação humanitária. Este é um dos objetivos da nossa operação militar especial. O senhor estava satisfeito com o que tínhamos antes do seu início, quando o Presidente Volodimir Zelenski tinha exigido, no verão de 2021, que os que se considerassem russos e pertencentes à cultura russa saíssem da Ucrânia para a Rússia, quando chamou aos russos "espécies" e não seres humanos, quando outros membros da sua administração lhes chamaram "indivíduos" e "não-humanos" e quando, na prática, foram aprovadas leis para destruir tudo o que era russo na Ucrânia, incluindo as terras onde os russos viveram durante séculos, criaram cidades e desenvolveram a economia, a indústria e a agricultura? Ao mesmo tempo, na Ucrânia sob Zelesnki os nazis estão a ser publicamente glorificados e os monumentos aos que derrotaram o fascismo na Segunda Guerra Mundial estão a ser destruídos. Acha que esta é uma situação humanitária normal? Pode ser vista como normal uma situação humanitária normal em que, após a assinatura dos Acordos de Minsk (mesmo um ano antes, após o golpe de Estado), instalações civis - escolas, hospitais, jardins de infância – começaram a ser bombardeados todos os dias, apesar dos Acordos que foram aprovados por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU? Nessa altura, andávamos a pedir à missão da OSCE, que integrava alguns cidadãos búlgaros, entre outros, que interviessem e dissessem a verdade. Durante vários anos, a missão recusou-se a divulgar dados sobre quem estava a realizar bombardeamentos, informando apenas o número de bombardeamentos realizados na zona de contacto por semana e o número de instalações civis danificadas e de civis feridos. Dissemos-lhes que, uma vez que eles eram a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa, deviam informar objetivamente.
Depois de várias chamadas de atenção (contrariamente às exigências de Kiev de não publicar estes dados, este facto também é conhecido), eles apresentaram os factos, segundo o lado ucraniano foi quase sempre o primeiro a atacar, entanto a milícia do Donbass teve de retaliar. O número de vítimas civis e de instalações destruídas neste território foi cinco vezes superior ao registado no território ocupado pelos ucranianos.
Agora estamos constantemente a mostrar e a transmitir na televisão ataques das forças armadas ucranianas contra instalações civis. Nunca vi a televisão ucraniana ou as redes sociais publicarem o resultado dos ataques contra uma instalação militar em território russo. Talvez me tenha escapado alguma coisa. Mas se houve, foi um episódio isolado.
As nossas forças armadas e todos os que estão envolvidos na nossa operação militar especial não atacam instalações civis. Não esqueça que houve muitos casos, desde o início da operação, em que unidades militares ucranianas colocaram armas pesadas nos pátios de edifícios residenciais, em recintos escolares ou no interior das instalações civis. Esta informação está disponível na Internet e nas redes sociais. O facto de eles provocarem deliberadamente um ataque contra as armas pesadas instaladas nas instalações civis é um método sujo. O nosso exército nunca visa deliberadamente instalações civis e nunca "dispara só por disparar”. Todos os nossos ataques têm como alvo as infraestruturas militares. Já o lado ucraniano escolhe como alvo instalações civis.
Se a Bulgária, como amiga do atual regime, tiver alguma informação sobre quais as instalações militares que a Ucrânia atingiu em território russo para, de alguma forma, justificar o que está a fazer ao bombardear bairros residenciais, agradecia se me informasse.
Quanto às baixas. Não tenho informação sobre de onde é que as Nações Unidas triam as suas informações. Pelo menos, não fomos abordados para conceder informações.
Pergunta: O Presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, sugeriu que a língua inglesa deveria ter o estatuto de língua internacional para a comunicação no país e que os feriados ortodoxos, incluindo o Natal, deveriam ser celebradas em novas datas. Compreendemos que as pessoas que falam russo de geração em geração não começarão a falar inglês num instante nem celebrarão o Natal ortodoxo a 25 de dezembro, a mando das autoridades do país. Os serviços secretos russos afirmaram que os objetos de valor e as relíquias do Mosteiro de Kiev-Pechersk vão ser transportados para a Europa para a proteção contra os míticos ataques de mísseis. Isso faz lembrar a situação durante a Grande Guerra Patriótica em que os inimigos levaram os nossos objetos de valor aos montes para outros países onde eles mais tarde se sumiram e nunca mais se viram. Irá o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo acompanhar este processo? Irá a Rússia tentar trazer de volta os objetos de valor levados para o estrangeiro?
Serguei Lavrov: Já enviámos uma carta à Diretora-Geral da UNESCO, Audrey Azoulay. Ela garantiu-nos que a UNESCO não tem nada a ver com o assunto. Mas a nossa pergunta era sobre outra coisa. Se a UNESCO estivesse envolvida neste caso, isso seria uma violação de todos os regulamentos e estatutos.
Independentemente de alguém ter ou não pedido ajuda, a UNESCO tem autoridade para tratar destes casos e proteger o património cultural. Existe uma lista especial da qual consta o Mosteiro de Kiev-Pechersk, com todo o seu património, decoração e mobiliário.
Continuamos a procurar informações sobre o que está realmente a acontecer no local e se estas notícias são verazes. Em particular, estamos a estudar a informação recentemente divulgada de que o Louvre recebeu alguns ícones que deram origem à pintura de ícones. Não foi explicado quem criou estes ícones e onde se encontravam – simplesmente disseram "vieram da Ucrânia para o Louvre". O pessoal do museu confirmou este facto junto da imprensa. No entanto, quando os jornalistas lhe pediram maiores informações sobre os ícones e a sua proveniência, o pessoal do museu afirmou que isso era um "segredo". Também não diz por quanto tempo os ícones ficarão no Louvre. Aqui estão presentes muitos jornalistas. Procurem obter informação junto do pessoal francês sobre o assunto. É importante, também para a preservação do património histórico e da memória.
Pergunta: A questão das crianças da Ucrânia decorre também do facto de o Tribunal Penal Internacional ter emitido um mandado de captura contra o Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin. Isto cria o problema em termos de garantia da imunidade do Presidente quando este se deslocar em viagens internacionais, à África do Sul para a Cimeira dos BRICS. Tem a certeza de que a parte russa será capaz de garantir a imunidade do Presidente Putin?
Serguei Lavrov: A imunidade dos líderes de Estado é garantida pelo direito internacional e pelas convenções internacionais.
No caso da decisão do TPI, não é uma questão da inviolabilidade, antes de um sentimento de intocabilidade dos britânicos que forçaram o procurador Karim Khan (de origem paquistanesa e nacionalidade britânica) a emitir um mandado contra o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, a Provedora dos Direitos da Criança, Maria Lvova-Belova, com uma rapidez inédita, contornando todos os procedimentos e regras. Se alguém já a viu, não adianta provar ter sido absurdo emitir um mandado contra ela.
A intocabilidade dos anglo-saxónicos é bem conhecida. Criam-na por iniciativa própria e exigem que os outros façam o que eles dizem e não toquem neles. A anterior procuradora do Tribunal Penal Internacional, Fatou Bensouda, quis instaurar um processo sobre os crimes de guerra dos EUA no Afeganistão. Então lhe disseram que ficaria sob sanções e que nem pensasse em levantar esta questão. Os EUA adotaram uma lei que proíbe a aplicação de quaisquer ordens do TPI. Houve tentativas de considerar os factos reais e inegáveis dos crimes que os britânicos e os australianos cometeram no Afeganistão. O tribunal manteve-se em silêncio, provando assim que é controlado externamente, principalmente pelos norte-americanos e os britânicos.
Sabemos que os mandados foram emitidos em violação de todas as regras. Foram disponibilizados dez milhões de libras esterlinas para investigar estes "casos", apesar de o tribunal deve financiar os processos com os seus recursos, por ordem de entrada. Todos os que estão interessados em analisar imparcialmente as atividades do TPI, verão que este caso é falso. Nós, tal como muitos outros países, incluindo os EUA, a China e a Índia, não somos obrigados a cumprir as decisões do TPI. Assistimos ao fracasso da tentativa de melhorar a justiça penal internacional.
Pergunta: Esta semana, o Comité de Segurança Nacional e Inteligência do parlamento canadiano publicou um relatório sobre a segurança no Ártico, pondo a tónica na tese sobre a "ameaça russa". Antes disso, o Primeiro-Ministro canadiano, Justin Trudeau, manifestara a esperança de que a cooperação com a Rússia viesse a ser retomada. Como encara a Rússia as atividades dos países ocidentais no Ártico neste momento? O que é que acha o Ministério dos Negócios Estrangeiros da eficácia do Conselho Ártico cuja presidência passou recentemente da Rússia para a Noruega?
Serguei Lavrov: O Conselho Ártico foi um mecanismo único que promoveu uma cooperação equitativa e não politizada e ajudou a resolver os problemas do Extremo Norte, com ênfase nas necessidades e interesses dos pequenos povos indígenas do Norte e na melhoria das indústrias e rotas amigas do ambiente. Muito foi feito e continua a ser feito.
O caráter não politizado desta organização (manifesto durante as crises mais graves das últimas décadas) foi destruído pelos países ocidentais e pela sua obsessão em isolar a Rússia em todos os lugares. Começaram a dizer que era necessário "encontrar um papel" para a NATO (não havia nada disso até há pouco tempo) para garantir a segurança da navegação. Nós asseguramo-la sozinhos. A Rota do Mar do Norte é a via navegável nacional da Rússia, passando a sua maior parte pelo mar territorial russo. Somos responsáveis pela sua segurança.
Sempre constatámos e obtivemos a aprovação dos nossos colegas do Conselho Ártico que não havia problemas na região cuja solução exigisse a intervenção de uma força militar. No entanto, os "apetites" da NATO estão a aumentar: já engoliram a Finlândia e estão a tentar convencer a Suécia a não queimar o Alcorão para entrar na Aliança o mais brevemente possível. Estes processos não inspiram muito otimismo. Vamos tê-los em conta e tomar medidas técnico-militares. De modo geral, a cooperação prossegue a nível não governamental. Existem contactos entre organizações de pequenos povos indígenas.
O facto de os canadianos se referirem a nós como a "principal ameaça", mas estarem dispostos a cooperar, é um sinal de que o Ocidente está com um problema mental. O Ocidente está consciente de que, de qualquer modo, terá de manter relações de vizinhança com a Rússia (nós e o Canadá somos vizinhos). Mas, ao mesmo tempo, têm de seguir a linha traçada pelo Grande Irmão que os incita a estigmatizar-nos, a declarar-nos como ameaça sempre e em todos os lugares, etc.
Algum dia, tudo voltará ao seu caminho e haverá uma colaboração mais ou menos normal entre os países nórdicos. A nossa tarefa é manter a Rota do Mar do Norte em funcionamento. Estamos empenhados em expandir o seu potencial e tomaremos medidas para garantir a segurança da navegação.
Pergunta: A ONU confirma 480 ataques russos a escolas e hospitais na Ucrânia no ano passado e acusa as forças armadas russas de utilizarem 91 crianças como escudo humano. Como é que pode explicar isto?
Serguei Lavrov: Não ouviu o que eu estava a dizer até agora, pois não? Respondi a uma pergunta semelhante.
Não compreendemos quais são as estatísticas utilizadas pela ONU nas suas publicações. Informámos os nossos colegas da ONU de que gostaríamos de ver as provas em que assentam as suas afirmações. Não vimos uma única confirmação do facto de o exército russo se ter envolvido em bombardeamentos de instalações civis.
O facto de os ucranianos utilizarem instalações civis para realizar reuniões de mercenários, generais ocidentais e formadores militares ocidentais com os seus militares, violando o direito humanitário internacional e cometendo crimes de guerra, é a culpa da Ucrânia. Se detectarmos "reuniões" destas (como a que teve lugar em Kramatorsk no outro dia), vamos ataca-las, pois se trata das pessoas que nos declararam guerra.
Gostaria de pedir aos países da NATO envolvidos no treino dos ucranianos que prestassem atenção ao facto de os ucranianos utilizarem constantemente infraestruturas civis para instalar as suas armas pesadas.
A Espanha também está a treinar as forças especiais e os militares ucranianos. Durante os exercícios, os espanhóis não deveriam apenas ensiná-los a matar russos (como eles pedem), mas também a instruí-los sobre as regras elementares do direito humanitário internacional. É proibido utilizar armas pesadas em instalações civis. É um crime de guerra. A ONU deve estar interessada no apuramento dos factos. Da nossa parte, não há qualquer limitação em fornecer-lhes os respectivos dados. Mas a forma como utilizam estes dados está a levantar questões. Já referi a nossa preocupação com as insistentes tentativas descaradas do Ocidente de reduzir e privatizar o Secretariado da ONU. Há muitos indícios preocupantes disso.
Espero que a compreensão do facto de a Carta das Nações Unidas exigir que o Secretariado seja neutro e imparcial venha a prevalecer. O princípio da igualdade soberana dos Estados triunfará e todos os países, incluindo os membros da NATO e da UE, começarão a respeitá-lo. A ONU acabará por se tornar um instrumento da multipolaridade, conforme o planeado pelos pais fundadores da ONU. Os países ocidentais têm dificultado a sua implementação durante anos, numa tentativa de fazer com que a ONU sirva os seus interesses, especialmente depois de terem ocorrido mudanças no espaço ex-soviético e de a URSS ter deixado de existir. Nas últimas três décadas, o Ocidente tem tentado utilizar a ONU para os seus fins egoístas. Mas esta política não pode ter êxito. Todos devem retomar os princípios básicos da Carta das Nações Unidas e não só confirmá-los, mas também guiar-se por eles na prática. Espero que este apelo não seja posto em causa. Este é um apelo ao respeito pelas coisas ratificadas por todos os membros da comunidade internacional.