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Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, à “Rádio e Televisão de Portugal”, Moscovo, 30 de junho de 2023

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Pergunta: Obrigado por concordar em explicar às pessoas, “à cidade e ao mundo, a todo o universo". Esta entrevista será vista por pessoas em dezenas de países que agora estão assustadas e desconfiam da Rússia. Muitos delas eram, há algum tempo, favoráveis à ideia de um espaço económico e humanitário comum, de Lisboa a Vladivostok. Considera que o mundo está atualmente em guerra? Quão iminente é o risco de um confronto direto entre a Rússia e a NATO? Poderá vir a tornar-se nuclear?

Serguei Lavrov: O famoso slogan sobre a criação de um espaço económico e humanitário comum, de Lisboa a Vladivostok, também incluía um espaço de segurança. Foram dias de expectativas e esperança de que, após o fim da Guerra Fria, o Ocidente se comportasse de forma decente. Essas expectativas não se concretizaram. Podemos levar muito tempo a falar sobre este assunto.

Concordo com aqueles que dizem que, em vez de tentar analisar as  razões pelas quais as coisas aconteceram desta forma, é melhor começar a agir com vista ao futuro, tendo em conta que o Ocidente não poderá mais   gozar da nossa confiança em matéria de segurança nem no domínio de relações económicas e comerciais, nem nos mecanismos financeiros criados pela globalização, que foram apregoados como sendo para o bem de todo o mundo e depois, "num instante”, se transformaram em instrumentos de chantagem, de pressão, de extorsão e de roubo. Sim, esta perspectiva existia. Os habitantes “assustados” de dezenas de países devem estar assustados com os seus governos. Aí, todas as vozes sensatas são abafadas, conforme o princípio da responsabilidade mútua, a União Europeia e a NATO fazem os países marchar em ordem unida, alinhando-os do mais baixo ao mais alto. Todos repetem, como se lhes fosse dada corda, a mesma lição decorada: "não têm o direito de permitir que a Ucrânia perca" e a única saída para a situação atual é infligir uma "derrota estratégica" à Rússia.

No Reino Unido, Lizz Truss foi brevemente Primeira-Ministra. Ao ser perguntada enquanto candidata a Primeira-Ministra sobre a hipótese de utilização de armas nucleares, ela afirmou que, enquanto comandante suprema, não hesitaria em carregar no "botão vermelho". O comandante da força aérea alemã, Ingo Gerharz, afirmou que os países da NATO deveriam estar preparados para utilizar armas nucleares. Estas citações não são literais, mas o seu significado é claro. Os países da NATO estão prontos para uma guerra nuclear e o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, deve compreender isso. O ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Yves Le Drian, afirmou, no contexto dos aspectos nucleares da situação, que não se devia esquecer que a França também possuía armas nucleares. Estas declarações deram início a discussões públicas sobre a probabilidade de uma guerra nuclear. Quando perguntaram ao Presidente da Rússia, Vladimir Putin, se a Rússia utilizaria armas nucleares, ele deu uma resposta muito detalhada. A minha principal mensagem é: vejam, analisem as declarações dos líderes da UE e da NATO. A sua retórica é muito agressiva. Eles não se cansam de repetir, como cânticos rituais, que a Rússia tem de sofrer uma "derrota estratégica". Pode não haver muitos analistas estratégicos em Portugal, mas muitos outros países da UE e da NATO têm-nos certamente (o Pentágono tem-nos sem dúvida). Eles não se cansam de ameaçar todos os dias, aos quatro cantos, derrotar estrategicamente a Rússia (um país nuclear). Os vossos telespetadores deveriam ter em conta este aspeto para distribuírem igualmente os “sustos” que têm. Voltemos aos tempos em que foram proclamados os objetivos da criação de um espaço comum (económico, social, de segurança) do Atlântico ao Pacífico. A última vez que esta nobre iniciativa foi mencionada foi no contexto da assinatura dos acordos de Minsk. Em fevereiro de 2014, os nacionalistas radicais que chegaram ao poder num golpe de Estado desencadearam uma guerra contra o seu próprio povo no Leste e no sul do país. Quando a guerra foi feita parar, inclusive a pedido de Berlim e Paris, foram assinados os conhecidos acordos de Minsk. Com o tempo, verificou-se, porém, que nem Angela Merkel, então no mandato de Chanceler da Alemanha, nem o então Presidente da França, François Hollande, nem o então Presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, pessoas que haviam assinado esse documento com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, o iam observar, tendo-o admitido francamente passado algum tempo. Estavam a apostar em ganhar tempo, em fornecer armas ao regime ucraniano e em resolver militarmente o "problema" do Donbass, afogando-o num banho de sangue. Bombardearam-no durante os oito anos em que os acordos de Minsk estiveram em vigor. Mas aí veio a decisão final: nada de estatutos especiais, apenas o "plano B", ou seja, reprimir militarmente aqueles que se opuseram ao golpe de Estado anticonstitucional ilegal que levou os seguidores nazis ao poder. Os acordos de Minsk foram complementados por uma declaração emitida pela Chanceler alemã, Presidente francês, Presidente ucraniano e o Presidente russo em apoio do Pacote de Medidas de Minsk. Berlim e Paris comprometeram-se a fazer uma coisa importante, ou seja, a restabelecer efetivamente os serviços bancários à população do Donbass submetida a um bloqueio por Petro Poroshenko e o seu regime. A França e a Alemanha, representadas pelos seus líderes, comprometeram-se a prestar serviços bancários, entre os quais a transferência de pagamentos sociais, às pessoas necessitadas.

O segundo tema abordado por esta Declaração da Alemanha, França, Rússia e Ucrânia referia-se ao processo de elaboração de um acordo de parceria entre a Ucrânia e a UE. A declaração afirmava sem rodeios que Berlim e Paris organizariam consultas tripartidas entre a Rússia, a Ucrânia e a UE para que não houvesse contradições entre os regimes de comércio e de investimento negociados pela Ucrânia com Bruxelas e as suas obrigações no âmbito da já há muito existente zona de livre comércio da Comunidade de Estados Independentes. Não foram prestados nenhuns serviços bancários. Berlim e Paris não tentaram sequer dedicar-se a este assunto. Não houve nenhumas consultas entre a Rússia, a Ucrânia e a UE. A Declaração terminava com as partes a manifestarem-se solenemente fiéis à ideia de espaço comum do Atlântico ao Pacífico. Havia ali muita coisa. Como já se apercebeu, nem todas as promessas de Berlim e de Paris estipuladas nessa Declaração foram cumpridas. É agora claro que eles não iam fazer nada. Queriam conter, de alguma forma, o processo de libertação da Ucrânia iniciado pelas milícias do Donbass com o nosso apoio e ganhar tempo. Ouvimos muitas mentiras e falsas promessas do Ocidente. Não digo isto para continuar a procurar argumentos a favor da nossa posição no passado e nesta fase, mas para reiterar que tirámos conclusões necessárias. Agora temos os olhos postos no futuro e não no passado. O passado ensinou-nos uma boa lição. Por isso, com os olhos postos no futuro e na atual situação no nosso país e nos assuntos mundiais, construi-lo-emos sem olhar para os nossos colegas que são incapazes de negociar e são mentirosos, para os nossos ex-parceiros ocidentais.

Pergunta: Acha que um conflito nuclear é possível?

Serguei Lavrov: Já lhe respondi à esta pergunta. É melhor endereçar a sua pergunta àqueles que exortam a infligir uma "derrota estratégica" à Rússia.

Pergunta: No futuro de que fala, a Rússia está a promover a ideia de multipolaridade. Esta ideia está há muito na ordem do dia. Moscovo está a construir as suas relações com grandes players: Índia, Brasil, Turquia e Argélia. No entanto, nenhum destes países está a romper relações com o Ocidente nem a condenar-se ao afastamento do processo tecnológico e económico. A rutura da Rússia com o Ocidente afeta as ambições de Moscovo de liderar um mundo multipolar?

Serguei Lavrov: Acaba de dizer que a Rússia está a promover de forma empenhada a ideia de um mundo multipolar. Não é isso que ocorre. O mundo multipolar está a formar-se objetivamente porque vêm emergindo novos centros de crescimento económico, poder financeiro e influência política. A China, a Índia e o Brasil são disso um bom exemplo. Além disso, não devemos esquecer os países árabes do Golfo, a Turquia, a Indonésia e os países da ASEAN. Em África, chegam líderes que querem utilizar os recursos dados por Deus a este continente para industrializar os seus respetivos países e desenvolver tecnologias modernas, e não para servir os antigos colonizadores. Este processo reflete também a transformação de num dos polos de um sistema policêntrico que vem emergindo objetivamente. Tudo isso pode ser consultado nas estatísticas.

Veja-se qual é a participação do G7 no PIB mundial, já é menor do que a dos países BRICS, com o hiato a diminuir. A China já está à frente na maioria dos parâmetros de desenvolvimento, especialmente se tomarmos em conta a paridade do poder de compra. Quanto ao PIB per capita, o resultado é menor. O processo ainda não terminou, e a China ainda não subiu ao primeiro lugar. Todavia, já é impossível conter esta tendência. Todos o reconhecem. Os problemas criados pelos EUA e pelos seus satélites por causa da nossa operação militar especial forçada na Ucrânia, depois de longos anos em que tentámos explicar ao Ocidente que a sua mentira sobre a não expansão da NATO para o Leste e o não cumprimento das suas promessas iriam acabar mal. A reação do Ocidente à nossa operação militar especial (um passo absolutamente justo que não teve alternativa e foi dado para defender a nossa segurança, as pessoas que habitavam desde há séculos naqueles territórios e as quais o regime de Kiev tentou privar do direito ao seu idioma, à sua religião, à sua cultura e aos seus valores), às ações abomináveis dos neonazis instalados em Kiev com o apoio Estados Unidos levou Washington a abusar de todos os instrumentos por ele outrora promovidos no âmbito dos mecanismos de funcionamento da economia mundial. Isto inclui a concorrência leal (que foi arrasada após a aplicação das sanções unilaterais), a inviolabilidade da propriedade (não somos apenas nós que estamos a ser roubados, a Venezuela, o Irão e o Afeganistão também foram roubados. Agora, estão a quebrar a cabeça para "legitimar" o roubo cometido. Por enquanto, as suas tentativas não dão resultado. Pelo menos têm alguns resquícios de consciência. Os conceitos de liberdade das forças de mercado e de presunção de inocência foram esquecidos num instante. As sanções impostas contra nós e outros países (já começam a impor medidas unilaterais ilegítimas contra a China) tornaram-se um ex-líbris do Ocidente, bem como uma tentativa de manter a sua posição na economia mundial e, no plano político, a sua hegemonia para que ninguém possa dar um mínimo pio contra a vontade dos EUA e do resto do "Ocidente coletivo" que lhes obedece integralmente.

Quanto ao facto de os países que são os nossos parceiros estratégicos e  aliados não terem deixado de se relacionar com o Ocidente, posso dizer que nós também não rompemos relações com o Ocidente. O Ocidente, pelo que entendo (não quero utilizar uma linguagem pomposa), ficou com raiva ao ver a Rússia ter ousado defender os seus legítimos interesses históricos e, como resultado, rompeu praticamente todas as relações connosco. Isto começou muito antes do lançamento da nossa operação militar especial. Em dezembro de 2016, o ex-Presidente dos EUA, Barack Obama, que estava a três semanas de abandonar o cargo, expulsou dezenas de cidadãos nossos. Depois, tiraram-nos cinco instalações em violação dos acordos intergovernamentais, em violação das Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas. As sanções só iam aumentando.

Diz-se que " se Júpiter está zangado, está errado". Não quero sequer comparar o Ocidente a Júpiter. Ele é movido pela raiva, pela compreensão de que está a perder irrevogavelmente a sua posição dominante, pelo desejo de fazer os possíveis para conter este processo histórico. Penso que qualquer político com a mínima capacidade de pensar no Ocidente compreende que este processo histórico acabará por triunfar. Temos mantido relações diplomáticas com os países ocidentais e não nos estamos a autoisolar. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, sublinhou-o recentemente, dizendo que não nos estamos a autoisolar. Naturalmente, desenvolvemos relações com aqueles que estão dispostos a fazê-lo de forma honesta, em pé de igualdade e respeito pelo direito internacional e pela norma consagrada na Carta das Nações Unidas que obriga todos a respeitar a igualdade soberana dos Estados grandes e pequenos. Não "fechamos as portas" ao Ocidente. É ele que procura isolar-se de nós. Mas se e quando pessoas sensatas chegarem ali ao poder, se nos proporcionarem a oportunidade de ver como poderíamos alargar os nossos contactos, que ainda se mantêm mas estão praticamente reduzidos a um mínimo absoluto, veremos o que têm para nos oferecer. Reagiremos de modo a ter em conta os nossos interesses vitais. No entanto, nunca mais na época dos atuais políticos e da geração que nos sucederá apostaremos em projetos de desenvolvimento de sectores estratégicos da nossa economia, áreas de que dependem a soberania e a independência da Federação da Rússia, com o envolvimento dos nossos colegas ocidentais.

Pergunta: Afirma-se que a resolução do conflito russo-ucraniano está nas mãos do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e do Presidente dos EUA, Joe Biden. É verdade? Os diplomatas dos dois países estão atualmente a trabalhar em conjunto?

Serguei Lavrov: Não sei se o Presidente dos EUA, Biden, está interessado nisso. Pelo menos, não está a mostrar interesse. Todo o mundo sabe que Volodimir Zelenski não é uma figura independente. Dizem-lhe o que deve fazer, traçam-lhe uma linha de conduta. Seguindo esta linha, ele, claro, improvisa de acordo com a situação vivida em cada dia concreto. De facto, não faz sentido conversar com ele.

Agora, o Ocidente criou um grupo de países que se reuniu há dias em Copenhaga. Todos os membros do G7 estiveram presentes. Os países BRICS, menos a Rússia, a Arábia Saudita, a Turquia e os representantes ucranianos também foram convidados. A China foi convidada, mas recusou-se a participar, acreditando, com razão, que este evento estava condenado ao fracasso e seria de confronto por ter sido precedido do anúncio de que o seu objetivo era assegurar a aprovação da sobejamente conhecida «fórmula de paz" de Volodimir Zelenski. A "fórmula" reivindica a capitulação e a punição para a Federação da Rússia e a obtenção de reparações. Só depois disso poderiam seguir negociações e entendimentos de paz.

Sobre a posição do Presidente dos EUA, Joe Biden, e da sua Administração. Nunca sugeriram que se procurasse uma solução de paz, criticando, ao mesmo tempo, as iniciativas avançadas pelos países do Sul Global, a iniciativa dos países africanos e a do Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Há dias, tivemos uma visita de um "emissário” do Papa com uma missão semelhante. Vários outros países apresentaram também as suas propostas de ajuda e de "mediação". Todas estas iniciativas receberam comentários negativos do Ocidente e dos EUA que consideram ser ainda cedo para parar com as ações de guerra. Porque o que é necessário, em primeiro lugar, é fazer com que a Ucrânia melhore a sua situação no campo de batalha para poder infligir uma "derrota estratégica" à Rússia e tenha posições mais fortes nas negociações no que respeita à situação no "terreno".

Claro que figuras como o Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, o Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, e praticamente toda a Administração norte-americana reclamam uma "derrota estratégica" para a Rússia no campo de batalha. Não estão a falar de negociações, estão a falar das ações no campo de batalha. Estamos prontos para continuar a trabalhar neste sentido e fá-lo-emos. Sabemos pelo que estamos a lutar. Estamos a lutar para eliminar as ameaças militares diretas à nossa segurança que o Ocidente está a criar já nas nossas fronteiras, apesar das suas promessas, envolvendo a Ucrânia nas suas jogadas e prometendo-lhe agora, para além do mais, a adesão à Aliança do Atlântico Norte. Estamos a lutar para impedir o extermínio dos habitantes do Donbass e, de um modo geral, do sudeste da Ucrânia, que estão a ser forçosamente privados, através das leis adotadas pelo regime nazi de Kiev, do direito à identidade, idioma, religião, do direito à educação, ao acesso aos meios de comunicação social e dos outros direitos relacionados com a utilização da sua língua materna, a língua dos seus antepassados, que viveram durante séculos nas terras onde o Presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, quer cometer genocídio. Viveram nas terras onde todas as principais cidades foram fundadas por governadores russos.

O facto de o Ocidente acolher de forma leviana a russofobia, a campanha de discriminação, a proibição de tudo o que é russo, as ações abertamente racistas de cariz nazi (como, em simultâneo com a campanha de erradicação de tudo o que é russo, o nazismo está a florescer na Ucrânia, a maioria dos efetivos dos chamados batalhões nacionalistas ostenta tatuagens nazis, usando bandeiras e emblemas das divisões nazis das SS). O Ocidente está em silêncio e está tranquilo, se é que presta alguma atenção. Não fomos nós que desistimos das negociações. As negociações foram realizadas em março de 2022 a pedido da parte ucraniana e terminaram com um entendimento, como disse o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, numa reunião com mediadores africanos. No entanto, os anglo-saxões representados por Washington e Londres proibiram Volodimir Zelenski de aceitar o entendimento alcançado, pensando que, uma vez que os russos se prontificaram a assiná-lo, era necessário continuar a guerra para esgotar ainda mais a Rússia e obter dela acordos no interesse da Ucrânia. Portanto, esta não é a nossa escolha. A pergunta sobre as armas nucleares também não é para nós. Entrevistou alguma vez tão detalhadamente algum dos políticos ocidentais que defendem a continuação da guerra?

Pergunta: Eu pessoalmente, não.

Serguei Lavrov: Foi o que pensei.

Pergunta: A paz em troca de territórios ainda é possível? A Rússia ficaria satisfeita com esta opção?

Serguei Lavrov: Isso parece uma barganha num bazar. Não estamos a lutar por causa de territórios, mas por causa de pessoas, da nossa história, religião, língua russa, que é uma língua oficial de todo o sistema das Nações Unidas e que está a ser atacada hoje não só na Ucrânia, mas também noutros países europeus, nos países bálticos. Todo o mundo está em silêncio. Faço perguntas a muitos dos meus interlocutores e ninguém responde. Por exemplo, consegue imaginar a Suíça a proibir o francês ou o alemão, a Irlanda a proibir o inglês, a Bélgica, o flamengo? É impossível sequer imaginar coisas como esta. Na Finlândia vivem 5,2% de suecos, sendo o sueco um dos idiomas oficiais do país. Na Ucrânia, os ucranianos de origem russa são pelo menos 20%, e os que falam e pensam em russo são mais de metade. Portanto, a questão não está em conquistar territórios. A questão é que Volodimir Zelenski está a cumprir a ordem de destruir quaisquer sinais da civilização russa no território ucraniano onde os seus antecessores radicais e neonazis foram autorizados a realizar um golpe de Estado com o objetivo de transformar a Ucrânia num instrumento de contenção e destruição da segurança da Federação da Rússia, erradicação de tudo o que é russo nas terras que foram desbravadas pelos russos.

Pergunta: Não posso deixar de perguntar sobre a situação atual. Como vê o futuro do Grupo Wagner em África?

Serguei Lavrov: Depende da posição dos países, cujos governos convidaram, em tempos, o Grupo Wagner e acordaram com ele determinadas condições que haviam sido definidas sem a participação do governo russo. O Estado russo tem as suas próprias relações com muitos países africanos no domínio da cooperação militar e técnico-militar. As condições em que os países africanos fazem contratos com este Grupo não são da nossa conta.

Pergunta: Embora eu não tenha falado pessoalmente com ninguém, não consigo imaginar como é que é possível destruir um país com onze fusos horários e uma população de 146 milhões de habitantes. Como é que vê a solução do conflito existencial entre a Rússia e o Ocidente no pós-guerra?

Serguei Lavrov: Quanto a não conseguir imaginar como é possível destruir a Rússia: não quer entrar na política em Portugal?

Pergunta: Não, Deus me livrou.

Serguei Lavrov: Penso que muitas pessoas o apoiariam. Esta é uma declaração sensata. Não procuramos nenhum confronto. Mas nunca permitiremos que alguém nos imponha a sua vontade.

Pergunta: Então não exclui uma solução militar?

Serguei Lavrov: Estamos a solucionar militarmente o problema chamado "guerra de todo o Ocidente contra a Federação da Rússia". Os ocidentais utilizam a Ucrânia como material dispensável, mantendo os seus soldados sob efeito de drogas para não sentirem a dor e levando-os como gado para a primeira linha do campo de batalha. Ao referir-se novamente, há dias, a este assunto, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou que toda a máquina económica, de guerra e de informação do Ocidente está a lutar contra nós. As mentiras estão a passar dos limites no espaço mediático. Todo o mundo sabia que as forças armadas ucranianas, nomeadamente os batalhões nacionalistas, utilizavam instalações civis como abrigo para as suas armas pesadas desde o início da crise (ou seja, desde 2014, altura em que começaram a bombardear o Donbass utilizando armas pesadas e aviões). Nunca abandonaram esta prática, que só se intensificou com o início da nossa operação militar especial, colocando armas pesadas em cidades, perto de jardins de infância e nas escolas. O fogo era disparado a partir daí, provocando um ataque de retaliação contra instalações civis. Há muitas provas disso na Internet. Há vídeos em que cidadãos ucranianos comuns aparecem a pedir os militares ucranianos que se retirem das áreas onde se encontram jardins de infância, escolas, lojas e outras instalações civis. As provas são muitas, mas ninguém lhes prestou atenção. Tal como todo o mundo se esqueceu rapidamente das imagens em que os prisioneiros de guerra com as mãos atadas são mortos com tiros na cabeça e lançados numa vala, à semelhança do que praticavam os nazis. Ninguém se lembra do que se passava quando os bairros residenciais eram bombardeados e as crianças eram mortas no Donbass. Até existe lá uma "Alameda dos Anjos". Não me lembro de os jornalistas ocidentais terem mostrado, na altura, interesse pelo que se passava do outro lado da linha de contacto, ou seja, nos territórios a que o Conselho de Segurança da ONU tinha prometido conceder um estatuto especial.

Os nossos jornalistas têm trabalhado todos estes anos, desde o início do golpe de Estado, na linha de contacto, 24 horas por dia, sete dias por semana, mostrando os danos e as atrocidades que ali tiveram lugar em resultado das ações das forças armadas ucranianas. Exigimos que a OSCE registasse os resultados dos bombardeamentos destes territórios e das instalações civis. No entanto, a missão da OSCE, que lá esteve durante anos, limitou-se a divulgar o número de violações do cessar-fogo, de bombardeamentos e de baixas, sem especificar o número de baixas sofridas do lado das milícias e do lado do regime de Kiev. Quando finalmente conseguimos que estes dados fossem publicados, verificou-se que quase todas as baixas do lado das milícias foram causadas por bombardeamentos não seletivos das forças armadas ucranianas, enquanto os danos causados do lado do regime de Kiev foi o resultado de bombardeamentos de retaliação. Esta verdade está a ser varrida para debaixo do tapete.

O senhor é jornalista e pode realizar uma investigação jornalística para ver que, entre as numerosas falsificações e mentiras, o exemplo mais eloquente do que está a acontecer nos círculos ocidentais é o caso Bucha, cidade onde, no início de abril de 2022, foram exibidos os corpos de civis alegadamente martirizados pelos militares russos. Dezenas de corpos na rua central foram mostrados três dias depois de as tropas russas se terem retirado do local. Isso teria tido efeito se os corpos encontrados tivessem sido escondidos numa cave, por exemplo. No entanto, a televisão mostrou-os deitados na rua central da cidade. Conhecemos muito bem "encenações" do gênero. O espetáculo de Bucha é o mais cínico de todos.

Pedimos que nos dissessem os nomes dos civis que haviam sido "mortos" ali. Já passou mais de um ano, mas ninguém o vai fazer. Ninguém está a falar de uma investigação. Também não houve nenhuma investigação em 2014, quando, a 2 de maio, os nacionalistas ucranianos não hesitaram em posar para as câmaras, queimando 50 pessoas vivas na Casa dos Sindicatos de Odessa. A investigação iniciada não deu em nada. Já se passaram nove anos desde então. Também não houve investigação sobre quem disparara na Praça de Maidan durante o golpe de Estado. Há muito a investigar. O Ocidente "mete os factos no bolso", acusando, para o efeito propagandístico, a Rússia e não fornecendo factos a ninguém. Ninguém respeita os vossos leitores. Note-se que as maiores emissoras norte-americanas não fazem praticamente reportagens analíticas baseadas nos factos, transmitindo apenas slogans. Os leitores ocidentais estão acostumados a orientar-se unicamente pelas declarações do Presidente dos EUA ou do Secretário-Geral da NATO ou do chefe da União Europeia. Toda a imprensa está a marchar em ordem unida e não tem a menor dúvida. Bucha é uma questão concreta. Este episódio foi aproveitado para fazer abortar a assinatura do acordo de paz com a Rússia, bem como para mais uma ronda de sanções antirrussas. As suas consequências tiveram uma concretização prática. Quem eram as pessoas que foram mortas nesse local? Acho que os seus familiares deveriam ter tido conhecimento do facto. E também a opinião pública mundial, dada a ampla repercussão que este episódio teve graças aos esforços de Washington e Bruxelas. Penso que a opinião pública mundial deve exigir a verdade. Faça uma tentativa. Talvez o consiga.

Pergunta: Que eu saiba, as investigações estão a ser realizadas.

Serguei Lavrov: Estão a ser realizadas?

Pergunta: A julgar pela imprensa, sim, estão. Não concordo consigo quando diz que toda a imprensa ocidental está a marchar em ordem unida. Tive a oportunidade de assistir às conversas analíticas e dúvidas expressas em direto no nosso estúdio pelos peritos convidados. Mesmo na nossa televisão há muitas pessoas que falam com interesse e competência.

Serguei Lavrov: Não quis ofender ninguém. Talvez estas reportagens simplesmente não cheguem até nós.

Pergunta: Claro que não chegam. Tal como os correspondentes ocidentais não são autorizados a chegar ao Donbass.

Serguei Lavrov: Ficaria muito grato se pudesse escrever sobre a investigação da situação em Bucha. Se lhe for difícil fazê-lo publicamente, envie-nos pelo menos alguma informação sobre quem está a realizar esta investigação e quando ela começou. Se souber alguma coisa sobre a investigação dos ataques terroristas aos gasodutos Nord Stream, também ficaria agradecido se nos informasse.

Pergunta: É pouco provável estar a ser realizada uma investigação deste caso. Como deve a ONU ser reformada para ser um instrumento internacional eficaz?

Serguei Lavrov: É muito simples: é necessário respeitar a Carta das Nações Unidas e os compromissos que foram solenemente proclamados, assinados e ratificados. Em primeiro lugar, refiro-me ao princípio da igualdade soberana dos Estados. Todas as "raízes" dos problemas da humanidade desde a criação da ONU residem no facto de o Ocidente se ter recusado categoricamente a respeitar a igualdade soberana dos outros. Continua a pensar e a agir usando métodos colonialistas, vivendo à custa dos outros. Há uns dois anos, uma das cimeiras do G20 adotou uma declaração sobre a transição verde e as alterações climáticas. Os países em desenvolvimento salientaram, com razão, que ainda não tinham atingido uma fase de desenvolvimento pós-industrial porque ainda estavam longe disso, pelo que não podiam abandonar a industrialização, prontificando-se, porém, a utilizar tecnologias que respeitassem a natureza. Foi acordado que seriam disponibilizados 100 mil milhões de dólares para este fim por um determinado período. Até à data, nada foi feito. As estatísticas da ajuda à Ucrânia apresentam um valor de 160 mil milhões de dólares disponibilizados praticamente num ano. Provavelmente, os países africanos e outros países que necessitam de ajuda externa avaliam, por um lado, a atitude do Ocidente para com as suas necessidades e os compromissos sobre ajuda a esses países por ele assumidos no âmbito ONU. Por outro lado, a forma como o Ocidente encara não tanto as necessidades do povo ucraniano, mas a sua obsessão em utilizar o povo ucraniano para a guerra contra a Federação da Rússia.

Deve ter ouvido as mais recentes declarações do Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, sobre a necessidade de continuar os fornecimentos à Ucrânia e de os duplicar. Portanto, os fornecimentos vão ser duplicados. Não sei até que ponto esta decisão será bem recebida pela população. O senhor disse que muitas pessoas estão "assustadas" com o que está a acontecer na Ucrânia. Se eu fosse eleitor alemão, teria ficado assustado ao ouvir a minha colega Annalena Baerbock dizer, respondendo a uma pergunta sobre as dificuldades sofridas pelos alemães, que sabia que os seus eleitores estavam a sofrer, mas que tinham de sofrer por causa da Ucrânia. Se é assim que os votos estão a ser conquistados na Europa antes das eleições, isso significa que algo deu errado. Tudo está subordinado à tarefa imposta por aqueles que estão do outro lado do oceano.

Pergunta: Isto significa que a Rússia ainda pode tomar alguma decisão em cooperação com os líderes dos países além-oceano?

Serguei Lavrov: Já estamos cansados de responder a esta pergunta. É melhor perguntar-lhes a eles.

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse muitas vezes, há um ano, e tem-no dito repetidamente que não desistimos das negociações. Citei-lhe um exemplo, dizendo que havíamos chegado a um entendimento, apesar de os ucranianos estarem agora a tentar negá-lo. Mas isso não é verdade. Eles estão a tentar deturpar os factos. Houve um entendimento: sei-o ao certo, porque estive envolvido neste processo. Agora estão proibidos de negociar. Existe uma "fórmula de Volodimir Zelenski", segundo a qual a Rússia deve capitular, e só depois disso, depois da famigerada "derrota estratégica" mencionada pelo Ocidente, é que será celebrado um tratado de paz com a Rússia. O Ocidente anunciou publicamente que o principal objetivo político é persuadir o Sul Global, os países BRICS, a apoiar este "plano" que visa a capitulação da Rússia. Este foi o tema da reunião de Copenhaga para a qual foram convidados vários países respeitados do Sul Global, que, segundo nos disseram, se recusaram a assinar declarações conjuntas. Mas estas tentativas vão continuar. É este o cerne do processo político que o Ocidente quer impor a todos os outros: puxar para o lado de Volodimir Zelenski os nossos amigos, os nossos correligionários, os nossos parceiros estratégicos para forçar a Rússia a capitular. Se for este o caso (e é mesmo, porque estão a falar disso publicamente), então, e usemos uma linguagem moderada, a qualidade da sua arte diplomática deixa a desejar.

Pergunta: O que é que acha das atuais relações da Rússia com África?

Serguei Lavrov: Temos boas relações com os países africanos. Estamos a preparar a segunda Cimeira Rússia-África que se realizará nos finais de julho próximo em São Petersburgo e incluirá vários eventos, entre os quais um fórum económico e trabalhos nas secções dedicadas a áreas concretas da nossa cooperação (educacional, humanitária, cultural).

Os nossos contactos com os países africanos são regulares. No último ano, estive quatro vezes em África e visitei 15 países. Recebo regularmente visitas de representantes africanos. Hoje, por exemplo, vamos receber o Vice-Presidente do Conselho Supremo (Soberano) da República do Sudão.

Os países de África, ao contrário de alguns outros países dominados por aqueles que na Rússia são chamados "João que se esqueceu das suas raízes”, conhecem bem a história dos seus Estados, da sua luta contra o colonialismo e apreciam a ajuda prestada pelo nosso país na organização da governação, criação de instituições estatais e na  construção dos alicerces das suas economias nacionais e dos seus sistemas de ensino nacionais, na formação do seu pessoal nacional, o que os colonizadores nunca fizeram.

É uma base sólida. Não perdeu a sua importância no período relativamente curto que se seguiu à extinção da União Soviética, quando, devido a gravíssimos problemas internos da Rússia, nunca chegámos a intensificar a nossa cooperação com África. Este período já passou. A primeira Cimeira Rússia-África teve lugar em Sochi, em outubro de 2019. As suas resoluções estão a ser implementadas. Os novos planos serão anunciados na segunda Cimeira que se realizará nos finais de julho próximo em São Petersburgo. 

 

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