Resumo do briefing realizado pela porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, Moscovo, 2 de novembro de 2022
Crise ucraniana
Antes de falarmos sobre a crise ucraniana, gostaríamos de chamar a vossa atenção para duas datas históricas importantes. O dia 28 de outubro marca o 78º aniversário da libertação completa do território da República Socialista Soviética Ucraniana dos invasores nazis em 1944, enquanto no próximo dia 6 de novembro se completam 79 anos da libertação da cidade de Kiev dos invasores nazis em 1943.
Naquela altura, os nossos avós e bisavós não podiam sequer pensar que, um dia, os seus descendentes tivessem de lutar novamente de armas na mão contra os apoiantes convictos da ideologia misantrópica, os seguidores ideológicos dos sequazes nazis Bandera e Shukhevich, que têm milhares de mortos inocentes na sua consciência. Ninguém podia pensar que pessoas com uma tatuagem de suástica circulassem livremente pelas ruas de Kiev tentando promover a sua posição citando argumentos pseudo-históricos. Acho que, naquela altura, ninguém teria acreditado nisso. O atual regime de Kiev utiliza métodos de guerra nazi e técnicas terroristas que são inaceitáveis, assemelhando-se cada vez mais a grupos extremistas como o EI e a al-Qaeda. Contudo, não há nada de estranho nisso, pois na origem da criação destes grupos estiveram os mesmos instrutores da comunidade anglo-saxónica. Os ataques com drones aéreos e submarinos efetuados pelas unidades ucranianas a 29 de outubro contra os navios e infraestruturas da frota russa do Mar Negro em Sebastopol, foram uma prova disso. Esta operação foi realizada sob a direção de especialistas britânicos, segundo informou o Ministério da Defesa da Federação da Rússia e declarou a Federação da Rússia durante a reunião do Conselho de Segurança da ONU. Nestas circunstâncias, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia pretende convocar, num futuro próximo, a embaixadora britânica.
Como o Ministério da Defesa russo já salientou, na sequência deste ataque não podemos mais fornecer segurança aos cargueiros que transportam alimentos ucranianos, pelo que suspendemos a nossa participação no "acordo de exportação de cereais". A discussão de questões relacionadas só pode prosseguir depois de Kiev dar garantias claras de que o corredor humanitário e os portos ucranianos não serão utilizados para ações militares contra a Rússia. Trata-se não só de ações militares na acepção clássica do termo como também de atividades extremistas e terroristas levadas a cabo pelo regime de Kiev. Os ataques foram perpetrados durante a implementação da ação humanitária. Esta designação foi dada às atividades de exportação de cereais após a celebração do acordo cujos garantes são a ONU e o seu Secretário-Geral, António Guterres.
O regime de Vladimir Zelenski não deixa as tentativas de desestabilizar a situação nas regiões fronteiriças da Rússia, sobretudo nas novas unidades da Federação. Todos os dias recebemos notícias sobre atos subversivos cometidos por neonazis ucranianos contra civis, sobre bombardeamentos de casas e infraestruturas civis pelas tropas ucranianas, o que constitui um crime de guerra. O regime de Kiev continua a apelar aos EUA e aos seus aliados para fornecerem às forças armadas ucranianas armas mais poderosas de longo alcance. Infelizmente, os nossos apelos aos países ocidentais para que deixem de financiar o regime ucraniano e pensem nas consequências da militarização desenfreada da Ucrânia estão a ser ignorados.
Há alguns dias, Washington anunciou um novo pacote de ajuda militar de 275 milhões de dólares para o regime de Kiev. Incluirá munições para lançadores múltiplos de foguetes HIMARS, veículos blindados e outros produtos militares. A 31 de outubro, o Pentágono anunciou a atribuição e a sua intenção de entregar ao regime de Kiev oito sistemas de mísseis antiaéreos NASAMS, dos quais dois chegarão à Ucrânia num futuro próximo.
Naquele mesmo dia, a União Europeia informou sobre a sua contribuição para a assistência militar à Ucrânia. A porta-voz do Serviço de Negócios Estrangeiros, Nabila Massrali, afirmou que, desde fevereiro passado, a UE alocou 3,1 mil milhões de euros ao abrigo do Fundo Europeu para a Paz (EPF) para pagar o fornecimento de armas a Kiev. Isto é o quanto a UE valoriza a paz. Este dinheiro está a ser utilizado para militarizar o regime de Kiev.
As autoridades e os círculos empresariais dos EUA, Reino Unido, Canadá e UE ignoram os interesses dos seus próprios cidadãos, financiando e a armando o regime nazi em Kiev, beneficiando contratos de fabrico de armas avaliados em milhares de milhões de euros. Isto prolonga o conflito e agrava a situação económica nos países ocidentais, cujos regimes democráticos liberais locais exortam as suas respetivas populações a apertarem os cordões à bolsa para sobreviver às consequências das sanções antirrussas (por eles inventadas e aplicadas) e para que os seus governos possam financiar a militarização do regime de Kiev e sustentar a economia ucraniana. Primeiro, as populações ocidentais foram exortadas a apertarem os cordões à bolsa, agora estão a ser exortadas a apertar os cachecóis, pois está a começar a fazer frio. Deixem-me lembrar-vos que, ao contrário do "aperto dos cordões à bolsa", o "aperto dos cachecóis" pode ter consequências imprevisíveis.
Outra forma de apoio ocidental à Ucrânia é o fornecimento de mercenários estrangeiros. O recrutamento é efetuado por estruturas norte-americanas e britânicas, empresas militares privadas francesas, organizações de extrema-direita da Alemanha, Espanha, República Checa, Itália e de outros países. Segundo a informação disponível, em oito meses, foram recrutados mais de 8.000 mercenários de mais de 60 países. Os grupos mais numerosos vieram da Polónia, dos EUA, do Canadá, da Roménia e do Reino Unido. Isto quando o mercenarismo é proibido legalmente e criminalmente processado em muitos países. Mais de 3.000 mercenários estrangeiros foram mortos, outros tantos regressaram aos seus países por iniciativa própria.
A ajuda dos países ocidentais que compreende, entre outras coisas, entregas maciças de armas e mercenários, treinamentos militares de combatentes nazis e o financiamento do regime de Kiev, contribui para o prolongamento das hostilidades e o aumento do seu envolvimento na situação ucraniana, consolidando-os como parte no conflito.
Numerosas provas de que as tropas ucranianas utilizam métodos de guerra inadmissíveis, dos crimes de guerra cometidos pelos militares ucranianos e do apoio ocidental ao regime de Kiev confirmam a necessidade de acabar com as ameaças à segurança que emanam do território da Ucrânia. Todos os objetivos fixados serão atingidos.
EUA exortam ao fim da cooperação com a Rússia em utilizações pacíficas da energia nuclear
Durante a Conferência Ministerial da AIEA sobre Energia Nuclear no Século XXI, a Secretária da Energia dos EUA, Jennifer Granholm, apelou ao fim da cooperação com fornecedores russos de tecnologias nucleares e combustível para centrais nucleares.
Chamámos repetidamente a atenção para o que está a acontecer em torno da central nuclear de Zaporojie. Em resultado, recebemos uma resposta absurda de que fomos nós que disparamos contra nós mesmos. Quando exortamos toda a comunidade mundial a utilizar os instrumentos das organizações internacionais e a nossa própria capacidade para prevenir uma catástrofe que pode resultar da chantagem nuclear por parte do regime de Kiev, ninguém no Ocidente dá ouvidos aos nossos apelos embora a conferência supracitada possa ter sido utilizada para discutir as preocupações da Rússia a esse efeito. Em vez disso, os EUA estão a dizer a todos que é impossível cooperar com a Rússia no campo das utilizações pacíficas da energia nuclear. Não é um argumento científico e técnico, antes um apelo político.
Esta não é a primeira vez que altos funcionários norte-americanos fazem declarações do gênero. Não é de modo algum uma novidade de 2022. Os norte-americanos começaram a fazer tais declarações muito antes.
A estratégia dos EUA anunciada em abril de 2020 e voltada para recuperar a liderança norte-americana na produção mundial de energia nuclear visa desalojar a Rússia e a China do mercado de energia nuclear, utilizando métodos políticos. Agora Jennifer Granholm utiliza como pretexto a operação especial para alcançar o objetivo fixado há dois anos. Uma vez que este objetivo foi estipulado num documento doutrinário dos EUA de 2020, é lógico que a sua elaboração tenha levado mais do que um mês e até mais do que seis meses, falando da questão da manipulação do tempo e do espaço.
As razões são claras. Washington era outrora líder indiscutível na produção de energia nuclear. A prova disso é o número de unidades de energia nuclear construídas nos EUA e de centrais nucleares construídas em todo o mundo com a tecnologia e projetos norte-americanos. Mas tudo isso pertence ao passado. Neste momento, os EUA são um outsider pro ter perdido as competências de fabrico como as de engenharia.
Empenhada em descarbonizar o seu sector energético, a Casa Branca decidiu reconstruir a indústria nuclear norte-americana, o que requer evidentemente uma injeção financeira substancial. Com uma concorrência normal no mercado, é necessário tempo para que os investimentos retornem. Além disso, não há garantias firmes de retorno quando muitos dos concorrentes dos EUA foram muito à frente. No entanto, a concorrência económica leal não é para os EUA, vai contra o espírito do excecionalismo norte-americano.
Tenho alguns conselhos para aqueles que querem e gostariam de desenvolver um átomo pacífico nos EUA e não conseguem obter financiamento. Calculem quanto dinheiro dos contribuintes norte-americanos foi gasto com o apoio ao regime neonazi de Kiev. Não se trata de milhões, mas de dezenas de milhares de milhões de dólares. Acrescentem a este montante (mais do que impressionante) todos os milhares de milhões oficialmente mencionados pela Casa Branca e o Departamento de Estado dos EUA, gastos na mudança do regime na Ucrânia, o que resultou numa fase ativa de confronto na Ucrânia e causou a atual situação. A soma será exorbitante. Este dinheiro seria mais do que suficiente para os EUA "darem um novo alento" ao setor de energia nuclear e assumirem a liderança.
Os EUA optaram por um caminho "tortuoso". Tiveram a ideia de eliminar os concorrentes do mercado. É lógico que alguns lucrem com os contratos de fornecimento de armas para desestabilizar o mundo, enquanto outros utilizem ferramentas políticas, chantagem e pressão, em plena conformidade com os princípios do hegemonismo norte-americano, para ajustar contas com os concorrentes. Neste caso, o consumidor não terá outra escolha senão utilizar uma tecnologia "crua" dos EUA (todos têm presente a história da central nuclear Fukushima-1 construída segundo o projeto norte-americano com grosseiras infrações). Lembramo-nos de como terminou a história. Mesmo que nenhum resultado seja alcançado, como é o caso da última campanha de renascimento de energia nuclear lançada por George W. Bush em 2003, pode-se (como fazem os EUA) divagar muito sobre novas tecnologias e grandes perspetivas sem fazer nada na prática, travando o desenvolvimento da energia nuclear mundial e eliminando, ao mesmo tempo, os concorrentes por meios políticos, e, para que ninguém interfira com esta conversa fiada, impedir os países especializados em construir equipamento avançado e centrais nucleares de acederem aos eventos sobre tecnologias nucleares realizados nos EUA. Todos os que quiserem encontrar-se com especialistas russos fora dos EUA são aconselhados a não contactar connosco. O que acham que os EUA fizeram à delegação russa que deveria vir a este fórum internacional? Negaram vistos aos delegados russos.
Isto tornou-se um comportamento padrão dos EUA que utilizam sem vergonha qualquer pretexto ou método para manter o seu controlo económico sempre que possível.
A Rússia tem defendido consistentemente a igualdade de acesso de todos os países à energia nuclear para fins pacíficos. Estamos muito preocupados com as tentativas do "Ocidente coletivo" de politizar esta área. Somos o maior fornecedor de tecnologia nuclear comercial para os mercados mundiais. Pretendemos continuar a desenvolver a cooperação internacional em tecnologia e combustível nuclear, com destaque para a interação com Estados que se orientam pelo bom senso e pelos seus interesses nacionais. Estamos dispostos a cooperar em pé de igualdade e não reconhecemos a hegemonia dos EUA. Ao mesmo tempo, não pretendemos usar "propaganda negra" contra os nossos concorrentes, como faz Washington. Temos produtos altamente competitivos e internacionalmente conhecidos neste setor.
Sobre as celebrações do Dia Internacional para o Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas
O dia 2 de novembro marca o Dia Internacional para Acabar com a Impunidade dos Crimes Contra os Jornalistas, criado em 2013 pela Assembleia Geral da ONU na sequência do rapto e assassinato de dois jornalistas franceses que cobriam o conflito armado no Mali. A data visa lembrar à comunidade internacional a obrigação de garantir a segurança dos jornalistas e outros profissionais da comunicação social, dos quais muitos enfrentam riscos e ameaças constantes para a sua saúde e vida devido à especificidade das suas funções profissionais.
Quase dez anos após a instituição do Dia Internacional, temos de dizer que a situação em termos de segurança dos jornalistas está longe de ser normal e, nalgumas áreas, desoladora. O sistema de obrigações dos países em termos de defesa dos profissionais dos mass media e a arquitetura das instituições multilaterais destinadas a facilitar a sua implementação, construídos ao longo de anos, falharam o teste da universalidade e imparcialidade. A lógica errada de dividir os jornalistas em "bons" e "maus", naqueles que merecem proteção e naqueles que não a merecem, adotada pelas "verdadeiras" democracias, permeou as atividades de muitas estruturas formalmente independentes, levando ao seu descrédito e, em alguns casos, à sua completa disfunção. Caso contrário, teríamos ouvido deles palavras de condenação contra aqueles que impõem sanções aos meios de comunicação social e encorajam a pressão sobre os correspondentes, contra aqueles que administram há anos o website criminoso Mirotvorets (Pacificador), contra os organizadores e autores do brutal assassinato de Daria Duguina, contra aqueles que dispararam mísseis de precisão de fabrico norte-americano contra um grupo de repórteres da cadeia de televisão e rádio Tavria, matando o jornalista O.V. Klokov. Nós os ouvimos dizer muito, mas não ouvimos porque eles não consideram os representantes de certos meios de comunicação como jornalistas nem mesmo como humanos. Qualquer pessoa que dedique a sua vida à profissão que visa informar em nome de outros (sociedade, diferentes grupos sociais) deve esperar compaixão e saber que aqueles que ameaçaram a sua vida serão pelos menos repreendidos. Mas não ouvimos nada disto dos países "civilizados" nem dos seus representantes internacionais em relação a um grande número de jornalistas. Não ouvimos uma única palavra das entidades de direitos humanos sobre as atrocidades contra os profissionais dos mass media. A razão é simples. O seu ponto de vista não coincide com as opiniões aprovadas pelo "Ocidente coletivo". Entristece igualmente ver que a seletividade nas suas avaliações é vista pelo mesmo regime de Kiev como aprovação tácita das suas arbitrariedades e crimes o encoraja a cometer novos e novos crimes cínicos e desumanos. Lembro-me bem de como os horríveis crimes domésticos cometidos na Rússia contra um jornalista provocaram uma tempestade de emoções na OSCE. Fomos obrigados a explicar o motivo por que este ou aquele jornalista fora alvo do crime. A Rússia cumpriu na íntegra os seus compromissos, de forma exaustiva e inequívoca, com toda a competência. Digam-me, quantos jornalistas dos mass media tradicionais e novos foram mortos ou feridos no território controlado pelo regime de Kiev? A OSCE ou o Conselho da Europa, que até se preocupa connosco depois de o termos deixado, não têm nada a dizer a este respeito? Isso quando têm instituições especializadas para tratar destas questões.
Para nós, este dia é acima de tudo uma ocasião para recordar uma vez mais todos os jornalistas que faleceram prematuramente no desempenho do seu dever profissional. É nosso dever fazer os possíveis para que os responsáveis pelas suas mortes tenham uma punição merecida. Queremos acreditar que o significado original do Dia Internacional acabará por ser, um dia, retomado e que o compromisso da comunidade global de proteger os jornalistas de ataques criminosos, sem se ter em conta as suas políticas editoriais, e de criar condições de trabalho seguras para eles, deixará de ser uma declaração oca e tornar-se-á um guia de ação.
Resumo da sessão de perguntas e respostas:
Pergunta: Têm sido frequentes ultimamente os apelos veiculados pela imprensa ocidental para forçar Kiev a entabular negociações. Quão elevada é a probabilidade de Vladimir Zelensky atendê-los?
Maria Zakharova: Uma visão tão especulativa daquilo que pode acontecer não é para esta situação. Apoiamo-nos nos factos, na situação no terreno, na implementação das nossas exigências, e não em modelos hipotéticos do que pode ou não acontecer.
Outra coisa é que constatamos a inconsistência de tal abordagem por parte dos países ocidentais, a falta de unidade e coesão nas suas fileiras. Podemos ver como o tom do "Ocidente coletivo" está a mudar de dia para dia. Um dia eles declaram-se favoráveis às negociações, outro, aos "combates e à resolução militar de todas as questões", outro ainda, à "vitória" definitiva e incondicional ou novamente às negociações. Um dia são a favor da paz, outro, contra a paz. Vamos nortear-nos pelos objetivos fixados pela liderança russa e pelos factos. Estamos sempre abertos a qualquer tipo de negociações, contactos. Nunca fechamos a porta.
Os nossos especialistas mantêm o diálogo, inclusive nas situações muito complexas e controversas, com todos aqueles que expressam o seu desejo e intenção de o fazer. Ao fazê-lo, somos guiados pelo evoluir da situação no terreno, pelos nossos objetivos e pelos nossos interesses nacionais.
Pergunta: As autoridades sérvias, incluindo o seu Presidente e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, dizem que a Rússia usou o "precedente do Kosovo" ao reconhecer a independência das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, o que motivou o Ocidente a aumentar pressão sobre Belgrado. Agora, segundo as autoridades sérvias, os EUA e a UE estão a pressionar a Sérvia a reconhecer o Kosovo, o mais rapidamente possível, para tirar alegadamente este argumento à Rússia. Terá a Rússia mesmo usado o "precedente do Kosovo" ao incorporar as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk e as Regiões de Kherson e de Zaporojie? A diplomacia russa utiliza o conceito de "precedente do Kosovo" na sua prática? Há realmente algo em comum na situação em torno do Kosovo, por um lado, e em torno das novas regiões russas, por outro?
Maria Zakharova: No que respeita aos referendos e aos seus resultados, a questão da correlação entre o princípio da integridade territorial dos Estados e o direito dos povos à autodeterminação é importante. O direito à autodeterminação, assim como outros princípios fundamentais do direito internacional, está consagrado no Artigo 1º da Carta das Nações Unidas, confirmado no Artigo 1º do Pacto, de 1966, sobre os Direitos Civis e Políticos, e no Artigo 1º do Pacto, de 1966, sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. A Declaração sobre Princípios do Direito Internacional relativos às Relações de Amizade e à Cooperação entre Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, adotada em 1970, salienta o princípio da igualdade soberana dos Estados, incluindo a inviolabilidade da integridade territorial e da independência política, bem como a igualdade de direitos e a autodeterminação dos povos. Contudo, a Declaração sublinha que, ao interpretar e aplicar os princípios fundamentais do direito internacional, deve entender-se que eles estão interligados e cada princípio deve ser considerado à luz dos outros princípios. Em termos simples, não é uma espécie de buffet onde o comensal pode servir-se daquilo que deseja. Isto tem de ser visto numa interligação.
A questão da relação entre o princípio da integridade territorial e o direito à autodeterminação é resolvida na Declaração de 1970 da seguinte forma. O documento confirma a inviolabilidade da "integridade territorial ou unidade política dos Estados soberanos e independentes que respeitam nas suas ações o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos" "e como consequência têm governos que representam todo o povo pertencente ao território sem distinção de raça, religião ou cor".
Esta lógica é reiterada na Declaração de Viena de 1993 da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos. Quando nos dizem que, nos anos 1960 e 70, houve o processo de descolonização e que não tiremos daí os documentos de que gostamos. Em 1993, altura em que as fronteiras do continente europeu estavam a mudar, este processo não estava relacionado com o processo de descolonização, foi emitida a Declaração de Viena da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos.
O documento sublinha que um Estado que afirma defender o princípio da integridade territorial e da unidade política deve ter "um governo que represente os interesses de todas as pessoas no seu território sem quaisquer distinções".
Obviamente, as autoridades de Kiev não podem ser consideradas como "governo desses". Quem ali representa o povo inteiro sem divisão, sem distinção? Tudo o que fizeram durante todos estes anos foi realçar as diferenças entre as pessoas pelos mais diversos motivos e segregá-las. Quem na Ucrânia pode ser considerado um governo nacional representando todo o povo? Isto deve ser decidido em eleições, se estamos a falar de um regime democrático. É precisamente esta forma de governo que é declarada nos documentos da Ucrânia. Mas ali os governos foram levados ao poder em golpes de Estado inconstitucional com dinheiro e apoio político e militar estrangeiros. Estes governos não representavam o povo da Ucrânia em toda a sua diversidade, mas sim os interesses de países, empresas e organizações estrangeiros. Isto não estava em conformidade com os princípios formulados no direito internacional. Além disso, em vez de representarem os interesses do povo, as autoridades ucranianas estão, desde 2014, em guerra contra a sua população, sufocando-a economicamente.
A Declaração de 1970 acima mencionada sublinha que "o estabelecimento de um Estado soberano e independente, a livre associação ou integração com um Estado independente ou estabelecimento de um outro estatuto político livremente determinado por um povo constituem modos de implementação do direito à autodeterminação por esse povo".
A questão da qualificação dos referendos ao abrigo da Constituição e da legislação da Ucrânia não afeta a sua qualificação ao abrigo do direito internacional. A prática demonstra que o direito dos povos à autodeterminação através da secessão, bem como a subsequente integração com outro Estado não podem, por razões objetivas, ser efetuados de acordo com a legislação nacional. Isto foi confirmado, em particular, pelo parecer consultivo de 2008 do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas sobre o "Acordo com o Direito Internacional da Declaração Unilateral de Independência em relação ao Kosovo", segundo o qual o "direito internacional geral não contém nenhuma proibição aplicável às declarações de independência". No contexto do Kosovo, apoiamo-nos na decisão jurídica internacional tomada pelos organismos competentes. O precedente do Kosovo deu origem a uma série de definições jurídicas internacionais às quais nos referimos. Fornecem uma definição geral que também se aplica a outros casos.
Posto isto, os EUA declararam num Memorando apresentado ao Tribunal neste caso que as "declarações de independência podem e frequentemente violam o direito interno, mas isto não significa que tenha havido uma violação do direito internacional". O Reino Unido salientou no seu memorando que "em geral [o direito internacional] não proíbe a secessão ou separação e não garante a integridade do Estado predecessor contra movimentos internos que conduzam à divisão ou independência apoiados pelos respetivos povos". Esta não é uma opinião privada dos políticos britânicos e norte-americanos, mas a posição do Estado no âmbito do processo jurídico internacional.
No caso do Kosovo, em contraste com os antigos territórios ucranianos, foi um ato adotado pelo Parlamento da República (uma das instituições provisórias de governo autónomo da província na altura) a 17 de fevereiro de 2008 que declarou unilateralmente a independência do Kosovo. Não houve referendo no Kosovo. Como pode ser precedente aquilo que na realidade não aconteceu. Quanto à Crimeia, às Repúblicas de Donetsk, de Lugansk, etc. ali houve referendos. A avaliação jurídica internacional foi dada pelas respetivas instituições e pelos participantes envolvidos diretamente nesse processo. Podemos e devemos referir-nos a isso.
As Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk eram Estados soberanos e independentes. A Rússia reconheceu-os como tais por decretos do Presidente da Federação da Rússia de 21 de fevereiro de 2022. Além disso, as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk foram reconhecidas pela Síria (a 29 de junho de 2022), pela República Democrática e Popular da Coreia (a 13 de julho de 2022), e pela Abcásia e a Ossétia do Sul. As referidas repúblicas tinham tratados internacionais, por exemplo com a Federação da Rússia, sobre amizade, cooperação e ajuda mútua. É importante notar que as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk realizaram os seus primeiros referendos sobre independência em 2014. Lembro-me da atenção dada a esse processo pela imprensa internacional: se o resultado desses referendos seria aceite como guia de ação. Os referendos em causa ocorreram quando houve um golpe de Estado na Ucrânia que resultou numa série de medidas repressivas por parte das novas autoridades contra a sua população e as autoridades que tinham sido eleitas de acordo com a lei e a Constituição. Neste contexto, minorias nacionais em toda a Ucrânia tiveram os seus direitos e liberdades violados, a língua russa começou a ser expulsa de todas as esferas da vida, ativistas da sociedade civil começaram a ser perseguidos. Foram perpetrados ataques à liberdade religiosa, começou a apreensão de igrejas e a perseguição aos opositores políticos das autoridades, ou seja, o exatamente contrário ao que diz o direito internacional sobre a integridade territorial da soberania do Estado e a representação igual dos povos de um país. Durante oito anos, a questão do reconhecimento internacional da independência das referidas repúblicas não foi levantada, dado que o Pacote de Medidas para a Implementação dos Acordos de Minsk, aprovado pela Resolução 2202 (2015) do Conselho de Segurança da ONU previa "uma reforma constitucional na Ucrânia e a entrada em vigor, até ao final de 2015, de uma nova constituição que pressupunha a descentralização como elemento-chave", bem como a "aprovação de uma lei sobre o estatuto especial de alguns territórios das Regiões de Donetsk e de Lugansk" que deveria prever, inter alia, a autodeterminação linguística, a participação do governo local na nomeação dos chefes dos órgãos da Procuradoria e tribunais destas regiões, a promoção da cooperação destas regiões com a Rússia por parte do governo central. A população destas regiões desejou-o durante muitos anos. Se a Ucrânia tivesse cumprido as suas obrigações ao abrigo do Pacote de Medidas acima mencionadas, poderia ter sido possível dizer que as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk tinham condições para exercer o seu direito à autodeterminação dentro do Estado do qual faziam parte na altura. Isto, contudo, não aconteceu devido à sabotagem do Pacote de Medidas por parte do regime de Kiev e à sua política de acabar militarmente com os direitos dos habitantes do Donbass.
A liderança da Ucrânia não fez segredo da falta de intenção de aderir aos acordos de Minsk: o ex-Presidente do país, Petro Poroshenko, declarou repetidamente que tinha autorizado a assinatura do Pacote de Medidas com o único objetivo de ganhar tempo para reforçar o exército do seu país (entrevista de Poroshenko à Gazeta Wyborcza publicada no website do Partido Solidariedade Europeia, a 15 de fevereiro de 2020). Este homem assinou os acordos de Minsk. O contexto trágico é também o facto de o regime de Kiev, com a aprovação do Ocidente, ter imposto um bloqueio ao Donbass, ter deixado de pagar pensões e subsídios, impossibilitado a realização de atividades económicas normais e impedido a prestação de ajuda humanitária, criando assim para a população local condições de vida insuportáveis e incompatíveis com a possibilidade do exercício do direito à autodeterminação dentro da Ucrânia com o regime de Kiev à frente.
Do mesmo modo, em 2022, a população das Regiões de Zaporojie e de Kherson também não tiveram nenhuma perspetiva de autodeterminação dentro da Ucrânia, em resultado das medidas militares tomadas contra eles pelo regime de Kiev (incluindo ataques de foguetes, destruição de infraestruturas civis, etc.) e de concretização dos seus direitos básicos, incluindo o direito à vida.
Como sabem, as questões submetidas aos referendos nas Regiões de Zaporojie e de Kherson foram formuladas da seguinte forma: "É a favor da secessão da Região de Zaporojie/Kherson da Ucrânia, da criação de Estado independente na Região de Zaporojie/Kherson e da sua incorporação na Federação da Rússia como unidade da Federação da Rússia?"
Assim, a respetiva unidade adquire, com base num referendo e no exercício do seu direito à autodeterminação, personalidade jurídica internacional e, além disso, no exercício dos seus direitos soberanos, toma a iniciativa de se tornar parte da Federação da Rússia. Não se deixem iludir com a simplicidade das fórmulas. O Ocidente adora estes memes, clichés, teses simplificadas tanto quanto possível para manipulá-los. Esta é a parte jurídica internacional. Se falarmos em termos de lógica de tweets, memes, imagens engraçadas, é provavelmente possível reduzir tudo a absurdo. Então não devemos ficar surpreendidos que isso dê problemas.
Pergunta: Não posso deixar de perguntar. Após o briefing ter começado, há menos de uma hora, noticiou-se que a Rússia retoma o acordo de exportações de cereais. O anúncio foi feito pelo Presidente turco, Recep Erdogan, e confirmado pelo Ministério da Defesa da Rússia. Queria saber se o Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha algum comentário sobre este assunto.
Maria Zakharova: Confiamos plenamente no Ministério da Defesa da Rússia e nos seus comentários feitos pelo meu colega Igor Konashenkov.
Toda a informação sobre o assunto foi fornecida pelo Ministério da Defesa da Rússia. Se tiver mais alguma pergunta, por favor envie-a. Nós, da nossa parte, responder-lhes-emos, se tivermos maiores informações.
Pergunta: A senhora começou a apresentação inicial por dizer que a embaixadora britânica será convocada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia. A minha pergunta é sobre as acusações feitas contra o Reino Unido no sentido de este ter atacado a cidade de Sebastopol e os Nord Streams. Eu gostaria de perguntar se a Rússia está a elaborar medidas de retaliação contra o Reino Unido, para além de convocar a sua embaixadora. Se estas medidas já estão a ser elaboradas, o que poderiam elas significar potencialmente? Gostaria de saber se o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia tem provas da implicação do Reino Unido nas referidas emergências (ou ataques terroristas, como são chamadas na Rússia) e se estas provas serão apresentadas ao público?
Maria Zakharova: Não há dúvida de que o envolvimento dos serviços secretos britânicos no ataque terrorista à base da Frota do Mar Negro em Sebastopol a 29 de outubro deste ano e os atos de sabotagem contra os Nord Streams não passarão sem resposta. Falámos sobre isto publicamente e na reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como eu já disse, a embaixadora britânica será convocada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia onde lhe serão apresentados os respetivos materiais probatórios. Estes materiais serão entregues como prova ao lado britânico e levados ao conhecimento do público. Permita-nos observar certas questões processuais neste caso. Assim que a reunião com a embaixadora britânica tiver lugar, iremos informar-vos. As respetivas informações serão publicadas no website do MNE e nas contas do Ministério nas redes sociais. Não deixámos passar despercebida a reação imediata do Ministério da Defesa britânico. Eles tentaram negar a sua responsabilidade pelo ataque terrorista, dizendo que não faziam a mínima ideia. É uma reação estranha. Têm contactos (e sempre os tiveram) com o Ministério da Defesa russo. Poderiam ter pedido explicações (ou sabem a resposta a todas as questões a priori, o que é estranho). Que este foi um ataque não causa dúvida a ninguém. É um facto confirmado, registado, dado que a região está repleta de dispositivos norte-americanos e britânicos, entre os quais drones, satélites e outro equipamento. Eles sabem tudo muito bem e não negam o facto do ataque em si. Os britânicos disseram que nada tiveram a ver com isso. Por isso, talvez devessem ter perguntado que factos temos. Mas uma vez que se comprometeram com uma declaração tão ardente e instantânea sobre a sua inocência, penso que esta pode ser colocada no "porquinho mealheiro" das provas de autorrevelação dos britânicos.
Somos "pessoas educadas". É por isso que entregaremos ao lado britânico os materiais que comprovam diretamente o envolvimento de especialistas britânicos na preparação e implementação deste ataque terrorista. Também terão a oportunidade de conhecê-los.
O ponto importante é que muitos falam desta situação como o senhor, descrevendo-a como "chamado ataque terrorista". Na realidade, trata-se de uma área de operação humanitária. Mesmo que fosse simplesmente um programa comercial, ou uma infraestrutura civil, este incidente não deixaria de ser qualificado como ataque com estes meios. Neste caso, a situação é ainda mais terrível. Esta é uma zona de uma operação humanitária que prende a atenção de todo o mundo e de cujo garante são as Nações Unidas.
Ficámos extremamente indignados (o nosso Representante Permanente na ONU, Vassili Nebenzia, falou sobre isto) com a falta de reação dos dirigentes da ONU. É importante lembrar que não é uma simples infraestrutura civil, não é uma simples carga comercial, é uma missão humanitária, uma operação tão solicitada, em tempos, pelo Ocidente e Londres. Nós, da nossa parte, demos as nossas garantias para viabilizar este acordo e garantimos a sua concretização, enquanto as forças armadas ucranianas fizeram tudo para destruir (falharam, mas tentaram) toda a cadeia infraestrutural deste projeto humanitário, efetuando um ataque com os meios técnicos mencionados pela liderança russa.
Pergunta: Os inspetores da AIEA iniciaram, a pedido de Kiev, uma inspeção a duas instalações na Ucrânia, devendo, em breve, terminá-la. O diretor-geral da agência, Rafael Grossi, pretende apresentar os resultados da inspeção no final desta semana. Aceitará Moscovo as suas conclusões?
Maria Zakharova: Aguardamos ansiosamente os resultados da visita dos inspetores da AIEA às instalações ucranianas. Teremos de as estudar primeiro. Depois faremos as nossas próprias avaliações e daremos a nossa opinião. Estamos habituados a lidar com factos, materiais, e a comentá-los. Gostaria de salientar mais uma vez que a ameaça do terrorismo nuclear por parte do regime de Kiev é real e extremamente perigosa.
Pergunta: Na sequência do seu encontro com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, o Primeiro-Ministro da Arménia, Nikol Pashinian, disse que Erevan está pronta a estabelecer relações interestatais com Baku com base nos princípios propostos pela Rússia. De que propostas russas se trata? Os Ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Azerbaijão e Arménia reuniram-se à parte em Sochi. Que questões foram discutidas pelos Ministros? Existe algum acordo entre eles?
Maria Zakharova: Relativamente à primeira pergunta, gostaria de chamar a sua atenção para as palavras do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, de que a discussão ira continuar. Consideramos inapropriado tornar públicas algumas questões muito sensíveis, uma vez que isto poderia dificultar o processo de negociação.
Quanto à reunião dos três Ministros à margem da reunião de Sochi dos Chefes de Estado da Rússia, Azerbaijão e Arménia, foi uma reunião cara a cara realizada no âmbito das negociações mantidas entre os líderes dos nossos países.
Pergunta: O Ministério da Defesa da Rússia confirmou que as garantias por escrito dadas pelo regime de Kiev são suficientes para retomar a nossa participação no acordo de exportação de cereais ucranianos. No entanto, há que pensar na sua renovação, pois o acordo expira a 19 de novembro. A senhora poderia dizer em que condições a Rússia poderia concordar em renová-lo e está a ser feito algum trabalho agora?
Maria Zakharova: Houve uma crise causada pelo ataque terrorista a este projeto humanitário. Exigimos que o lado ucraniano nos desse garantias de segurança claramente articuladas que eram necessárias para continuarmos a participar no acordo. O Ministério da Defesa da Rússia declarou hoje ter recebido tais garantias. Como resultado, a Rússia anunciou que volta a participar no acordo. Quanto à renovação do acordo, já comentámos este assunto no briefing anterior. Dissemos que iríamos analisar a situação de forma abrangente. Continuaremos a acompanhar este assunto. Acho que devemos evitar misturar estes dois assuntos para evitar confusão no espaço mediático.
Pergunta: A liderança russa, incluindo o Presidente Vladimir Putin, continua pronta para as conversações sobre a Ucrânia. O anúncio foi feito pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov. Ele disse o seguinte: "Estamos prontos a falar com o Ocidente para diminuir a tensão, desde que haja propostas realistas, formuladas em pé de igualdade". Isto significa que a Rússia só se prontifica a dialogar com os países da UE e os EUA, e não com a Ucrânia? De que tipo de propostas pode tratar-se e o que poderia facilitar o reatamento do diálogo?
Maria Zakharova: O senhor não pode deixar de ver as declarações feitas pelo regime de Kiev, Vladimir Zelensky. Já legislaram a impossibilidade de realizar conversações com o atual Presidente da Federação da Rússia. Este tópico foi bloqueado pelo regime de Kiev. Legislaram a proibição de negociar. É melhor perguntar a eles sobre como irão resolver esta situação. Gostaria de recordar que a atual crise grave no domínio da segurança europeia é uma consequência direta da incapacidade do "Ocidente coletivo" de negociar, o que observamos há muitos anos. Após o fim da Guerra Fria, os nossos colegas trocaram os métodos de diplomacia tradicional que pressupõe a busca de compromissos por métodos de força, pressão, chantagem, ameaças e sanções. Tornaram-se desdenhosos para com a opinião de outras pessoas, firmemente convictos do seu excecionalismo e impecabilidade. Por alguma razão, reservaram-se o direito de decidir, em nome dos outros, o destino do mundo. O ponto culminante foi a recusa arrogante dos ocidentais em discutir as nossas propostas sobre garantias de segurança, anunciadas pelo lado russo no final de 2021.
Compreendemos que existem outras leis do género. A diplomacia não gosta que o vazio dure muito tempo. Num futuro previsível, o mundo acabará por retomar a prática de negociações, os métodos tradicionais de elaboração de novas regras de coexistência em pé de respeito mútuo e igualdade de direitos, de acordo com os objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas.
Temos dito repetidamente: se todos querem uma mesma coisa, nomeadamente, evitar uma catástrofe global, uma grande guerra (a Rússia tenta evitar medidas extremas ao defender o seu espaço vital. Temos reiterado repetidamente a nossa disponibilidade para um diálogo, defendendo, ao mesmo tempo, os nossos interesses nacionais), se todos (como ouvimos) são a favor de uma mesma coisa, da paz mundial, da coexistência pacífica, então têm de aprender novamente a ouvir, a compreender e a considerar os interesses de cada lado, mesmo que não gostemos uns dos outros.
A 31 de outubro, ao referir-se à hipótese de diálogo russo-ucraniano, o Conselheiro do Chefe do Gabinete do Presidente da Ucrânia, Mikhail Podoliak, disse que a "Rússia perdeu a oportunidade de entabular conversações de paz com o "mundo civilizado", não tem a possibilidade de regressar a janeiro de 2022. A única opção que a espera é o tribunal".
Que mundo "civilizado"? Lá estão eles outras vez com as suas teses sobre o "jardim" e a "selva"? Quais países não são civilizados na sua opinião? A China, a Índia, África, Ásia? Os seus vizinhos na CEI que compunham outrora uma nação única? Temos bons contactos estáveis com todos eles em todas as áreas, temos parceria com alguns e alianças com outros. A quem chamam "civilizado"? Àqueles que não honram os seus compromissos? Àqueles que dividem o mundo em países "bons" e "maus"? Àqueles que distorcem os melhores conceitos e princípios elaborados pela humanidade ao longo dos séculos? Àqueles que cometem atos terroristas para destruir infraestruturas civis, como aconteceu com os Nord Streams e a operação humanitária no Mar Negro? Chamam "civilizados" aos países e regimes que destruíram vários Estados do Médio Oriente e do Norte de África? Para eles, os países "civilizados" são aqueles que lançaram bombas de urânio empobrecido sobre um país europeu, a Jugoslávia? Aqueles que afundaram navios com migrantes que seguiam para os países europeus apenas porque esses mesmos países destruíram o seu modo de vida tradicional? Aqueles que, durante décadas, "trocaram" chefes de Estado, assassinaram-nos nos seus interesses políticos ou comerciais, envenenaram-nos, bombardearam-nos, etc. Aqueles que patrocinaram o terrorismo no Norte do Cáucaso durante anos? Chamam "civilizados" àqueles (extremistas e terroristas) que mataram crianças nas escolas, teatros e casas? É a eles que chamam "civilizados"? Não os consideramos que eles o são. Para nós, as pessoas civilizadas são aquelas que observam as normas jurídicas internacionais, da convivência de acordo com os princípios do respeito mútuo e consideração dos interesses uns dos outros, para nós, isso, sim, é que é civilização. Consideramos civilizadas as pessoas que não se traem a si próprias nem aqueles a quem prometeram e a quem "cativaram". A realização suprema dos "países civilizados" é, a meu ver, a situação no Afeganistão. Durante 20 anos, os países da NATO liderados pelos norte-americanos arruinaram o país, expandiram as culturas de droga e acumularam uma enorme riqueza, envenenando e matando pessoas com drogas. Depois, num dia abandonaram o país, deixando tudo e todos os que os serviram e que se agarravam aos seus aviões na esperança de fugir. Mais do que isso, roubaram o dinheiro do povo afegão, alocando agora somas miseráveis para a criação de fundos como Fundo de Apoio ao Afeganistão. Este é o cúmulo do comportamento anticivilizado. Para falar sobre estes tópicos, é necessário conhecer o contexto histórico. Para começar, basta analisar os acontecimentos ocorridos durante umas duas décadas ou melhor umas duas centúrias passadas.
Em fevereiro passado, a Ucrânia avançou a iniciativa de negociações e manifestou a sua disponibilidade para o compromisso. Todavia, os anglo-saxões censuraram-na e ordenaram que se retirasse das negociações com a Rússia. Ou esta foi uma tática coordenada. Esperamos sinais claros e inequívocos de Kiev sobre o seu desejo de retomar o processo de negociação, tendo em conta as novas realidades territoriais e a situação "no terreno". Acreditamos que seria errado falar sobre posições dos lados. Eles devem decidir se participam ou não nas negociações. Vamos esperar que coordenem a sua posição com Bruxelas, Washington e Londres.
Estamos entediados ao ouvir os intermináveis lamentos do Departamento de Estado dos EUA de que a Rússia não está supostamente pronta para negociar. Temos a impressão de que os norte-americanos não sabem que o regime de Kiev legislou a impossibilidade de negociar connosco. Quanto à colaboração com os EUA ou a UE, os seus métodos são bem conhecidos: duplicidade de critérios, engano, hipocrisia, falsificação, chantagem, e não cumprimento dos compromissos assumidos. A dada altura, eles violaram as suas promessas de não expandir a NATO, não reforçar a segurança à custa da segurança dos outros, rejeitaram as propostas da Rússia sobre as garantias de segurança.
Atualmente, os EUA estão a chantagear grosseiramente países da Ásia, África, Médio Oriente e América Latina, forçando-os a aderir às sanções ilegais contra o nosso país. Washington e os seus aliados da NATO continuam a encher a Ucrânia de armas, gastando dezenas de milhares de milhões dólares, prolongando o conflito e tornando-o tão sangrento quanto possível. Pode tudo isso confirmar que eles desejam negociar connosco? Não, claro que não. Mais uma vez, a liderança russa esteve sempre empenhada em resolver conflitos de forma diplomática. E hoje estamos prontos para isso também. Mas não podemos deixar de ver a realidade nem de reagir.