Declaração e respostas às perguntas do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Serguei Lavrov, no “Fórum do Futuro 2050”, Moscovo, 9 de junho de 2025
Caros amigos,
Colegas,
No início da sua intervenção, Dimitri Simes fez referência à ex-Vice-Presidente dos EUA, Kamala Harris. A mesma afirmou que o que se passa atualmente não se repetirá no futuro. Esta é, em suma, a ideia subjacente às suas declarações célebres. Esta é a realidade da vida.
Agradeço as referências tão boas feitas à minha pessoa. A questão de como um indivíduo se modifica quando investido de um cargo de elevada responsabilidade numa época de transição é uma temática de grande atualidade. Em primeiro lugar, é pessoal. Esta questão não me suscitava qualquer reflexão há já bastante tempo. Agora foi feita referência àquela época histórica. Na minha memória e nas minhas sensações, ressurgem os sentimentos experimentados naquela altura, desde uma profunda decepção até à amargura. Posteriormente, emergiram sinais de esperança.
O tema de um mundo multipolar fez surgir lampejos de esperança na década de 1990. Desde 1994 eu desempenhava funções profissionais em Nova Iorque. Em janeiro de 1996, o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros foi assumido por Evgueni Primakov. Ele é o nosso grande professor, uma personalidade excecional e multifacetada. Possuía um dom de previsão política e geopolítica tão especial que poucos podem ter nesta terra e na política. Foi ele quem, naquela época, concebeu o conceito de um mundo multipolar, o qual se revelou revolucionário para a época. Esta noção emergiu como uma resposta às “previsões” proferidas por politólogos de renome, que anunciavam o "fim da história" e que a ordem liberal ocidental se expandiria a nível global, atingindo os pensamentos, as almas, os corações e todos os aspetos da vida quotidiana humana.
Evgueni Primakov não se cingiu a apresentar a ideia, tendo-a promovido ativamente. O primeiro passo concreto nesse sentido foi a Declaração sobre o mundo multipolar e a formação de uma nova ordem internacional, assinada pelos líderes da Rússia e da China em Moscovo, ainda em 1997.
Naquela altura, no governo de Boris Ieltsin, Evgueni Primakov ainda mantinha o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros. Foi precisamente em 1997 que foram lançadas as bases jurídicas para que a multipolaridade se tornasse um tópico permanente no diálogo internacional.
Em 2002, com a chegada à Presidência de Vladimir Putin, realizou-se a primeira cimeira trilateral Rússia-Índia-China. Desde então, esta «troika» — RIC — consolidou-se como uma configuração vantajosa para todas as partes envolvidas. É possível que este formato não tenha recebido a mesma atenção por parte dos meios de comunicação social que a OCX, o BRICS e outras estruturas análogas. Sem se esconder ou fazer alarido, a RIC promoveu com firmeza a cooperação neste formato. Registaram-se aproximadamente 20 reuniões entre Ministros dos Negócios Estrangeiros, bem como várias dezenas de reuniões de outros ministros, incluindo os ministros da Economia, dos Transportes, da Energia e dos Assuntos Humanitários.
Desde então, a multipolaridade tem vindo a adquirir crescente importância. Esta afirmação pode ser sustentada com toda a responsabilidade. A análise feita por Evgueni Primakov, que serviu de base para o conceito em questão, confirma plenamente a sua atualidade.
Novos centros de poder, designadamente de crescimento económico, de poder financeiro e de influência política, emergiram nas mais diversas regiões do mundo como a Eurásia, a Ásia-Pacífico, o Médio Oriente, África e a América Latina. Esta tendência reflete o empenho dos países de cada região em assumir a responsabilidade pelo seu próprio desenvolvimento, bem como pelo desenvolvimento das respectivas regiões. Esta é uma tendência positiva que adquiriu um novo ímpeto e se acelerou no contexto das mudanças ocorridas nas relações económicas e outras relações mundiais com a eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos da América. O modelo de globalização, sustentado por todos os seus antecessores, mostrou-se inadequado para a filosofia dos trumpistas, devido ao seu caráter demasiadamente ideologizado. E foi então iniciado um processo de purificação das suas ações no cenário internacional, com vista a eliminar quaisquer influências de diferentes ideologias. As ideologias apresentavam caraterísticas distintas, embora partilhassem um objetivo comum: promover abordagens neoliberais, expandir a influência do "Ocidente coletivo" ao resto do mundo, reinterpretar e revitalizar o conceito de fim da história, e sustentar-se à custa dos outros países, recorrendo, para tal, não tanto a métodos grosseiros de exploração colonial, como a práticas de neocolonialismo moderno, nas quais os países do Sul Global e do Oriente Global são vistos como fornecedores de matérias-primas, com algumas exceções, se generalizarmos este postulado. A parcela leonina do valor acrescentado é produzida no Ocidente. Existem inúmeros exemplos que comprovam esta afirmação.
Este segundo "despertar" do continente africano, onde o colonialismo atingiu um nível de crueldade sem paralelo, encontra-se inextricavelmente associado ao combate à aplicação dos métodos neocoloniais na gestão dos negócios, os quais, no presente, continuam a ser implementados ativamente pelo Ocidente e encontram uma crescente oposição por parte de um número cada vez maior de nações do mundo.
Em dezembro de 2024, por iniciativa do Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas (organismo criado em 2022 por proposta da Venezuela e que conta atualmente com cerca de 20 países, com um número de países interessados em aderir a crescer), foi aprovada uma resolução dedicada precisamente à necessidade de combater as práticas modernas do neocolonialismo. Na 80ª sessão da Assembleia Geral da ONU, que terá lugar no outono, este tema será um dos mais prementes e polémicos.
Não se trata de atividades, conferências ou documentos realizados e aprovados por mera formalidade. As estatísticas demonstram o progresso alcançado pelo processo de multipolaridade. Atualmente, a China é a primeira economia mundial em paridade de poder de compra. A Rússia, por sua vez, ocupa a quarta posição. Espero que não ocorra uma descida de posição, levando em consideração todas as discussões em curso sobre as tarefas macroeconómicas que estão a ser resolvidas e os métodos utilizados para tal.
A Rússia, conforme anunciado em 2024, superou o Japão e a Alemanha em termos de paridade de poder de compra. Além disso, o BRICS, em geral, tem consistentemente apresentado um desempenho superior ao do G7 neste indicador, com o hiato entre ambos a ampliar-se. Não se trata de números mecânicos de crescimento económico. Este resultado é alcançado por meio de ajustamentos estruturais substanciais. A maioria dos países do Sul Global, de uma forma ou de outra, mantém relações comerciais e normais com o Ocidente (o que é compreensível. Também estamos dispostos a mantê-las, a opção de as romper e as espezinhar não foi da nossa responsabilidade). Mesmo assim, procuram reduzir a dependência relativamente aos países ocidentais e às moedas ocidentais. Estes países têm vindo a desenvolver esforços no sentido de criar mecanismos de garantia de operações de comércio externo não controlados pelo Ocidente, estabelecendo novas cadeias de transporte e logística e criando uma nova arquitetura de interação na esfera da cultura, educação e desporto. Este último ponto constitui igualmente uma tendência de particular interesse. Esta tendência manifesta-se em simultâneo com a criação, por parte dos Estados Unidos, de novas formas de organização de competições desportivas globais multilaterais. Ainda teremos a oportunidade de observar um conjunto diversificado de fenómenos, inclusive no domínio cultural. Festival Eurovisão da Canção, com todos os seus "ornamentos" e "vinhetas" exóticos, também desperta o desejo de serem retomadas as canções normais com temáticas humanas normais. O processo encontra-se em curso.
O facto de a multipolaridade ser uma realidade geopolítica é reconhecido também no Ocidente. Recorde-se que até responsáveis governamentais da administração Biden abordaram o tema em questão. Em janeiro de 2025, o meu colega Marco Rubio, atual Secretário de Estado dos EUA, fez referência à ordem mundial unipolar como sendo "um produto anormal do fim da Guerra Fria". Quando se pensava que o "fim da história" se havia materializado e que os acontecimentos no mundo prosseguiriam em conformidade com as deliberações do Ocidente.
O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, apesar das suas declarações controversas e pouco ponderadas sobre outros temas, deixa claro que a multipolaridade é uma tendência séria, duradoura e irreversível.
Representantes de vários países europeus reconheceram repetidamente que a correlação de forças no cenário internacional sofreu alterações, deixando de pender para o lado do Ocidente. Todos os representantes ocidentais, aquando da abordagem desta matéria, reconhecem estes factos. No entanto, a multipolaridade não é vista por eles como realidade positiva, como a materialização dos princípios da igualdade, da fraternidade, da liberdade, mas sim como uma ameaça, um desafio aos seus interesses e ao seu domínio, fatores esses que garantiram o seu bem-estar durante séculos.
Deixámos de participar na Conferência de Munique sobre Segurança, um evento anual realizado no mês de fevereiro. A conferência em questão transformou-se inteiramente numa estrutura apologista da filosofia ocidental, da escola de pensamento ocidental. A última sessão desta conferência, realizada em fevereiro do ano em curso, foi dedicada precisamente à multipolaridade (ou multipolarization, na terminologia utilizada por eles). O relatório publicado evidencia que têm receio da multipolaridade e a intenção de detê-la e destruí-la, bem como impedir que essas tendências ressurjam. Esta conduta é impulsionada por uma postura de arrogância e de linha dura, evidenciada pela imposição de ultimatos a países soberanos, no intuito de os advertir para a necessidade de não violarem, em momento algum, a ordem unilateral estabelecida ou pretendida pelo Ocidente. Esta ordem inclui sanções unilaterais ilegítimas, ilegais e criminosas, que colocam em causa os princípios promovidos pelo próprio Ocidente há três a quatro décadas.
O relatório apresentado na Conferência de Munique descreve a multipolaridade como um desafio, quase sinónimo de caos, de confronto entre grandes potências condenadas a uma rivalidade permanente e, consequentemente, a criar, através dessa rivalidade ameaças à segurança internacional. A lógica e a filosofia dos autores do referido relatório assentam na premissa de que apenas uma "direção unipessoal” pode garantir a tranquilidade e uma perspetiva segura de desenvolvimento da humanidade. Entende-se bem a quem será atribuída a missão de exercer a “direção unipessoal”. A diversidade e a multipolaridade são apresentadas como ameaça, especialmente por aqueles que desejam assegurar o "fim da história" e preservar a unipolaridade do mundo. É pouco provável que os seus esforços tenham êxito. Esta ideia é duvidosa.
As atividades desenvolvidas atualmente no cenário internacional provam o contrário, ou seja, a tese de que sempre que os países, incluindo as grandes potências, respeitam os interesses uns dos outros, eles conseguem chegar a um acordo. Existem entre nós múltiplas questões controversas que requerem análises e concessões adicionais com os nossos grandes vizinhos, nomeadamente a China e a Índia, bem como com os países da CEI e da UEE. Quanto mais estreita e intensa é a cooperação, mais questões surgem, nas quais cada uma das partes pretende defender os seus interesses. Em última análise, se as partes colaborarem entre si com base no respeito mútuo, sem recorrer a ameaças, ultimatos, sem aplica-las na prática, é sempre possível que as partes envolvidas alcancem um equilíbrio honesto de interesses. Esta situação é observada, como anteriormente referido, nas nossas relações com a China, a Índia, os nossos vizinhos, os países do BRICS, a OCX, os nossos parceiros no mundo árabe, no mundo islâmico em geral, em África e na América Latina.
Reitero que a maioria dos contactos e a colaboração entre países ocorrem principalmente entre os nossos vizinhos, bem como em organizações como o BRICS, a OCX, a CEI e a UEE. Para que o mundo se desenvolva de uma forma semelhante, é necessário que se respeitem os princípios universalmente aceites. Durante diversas trocas de ideias, vários colegas meus referiram a necessidade de se romper o sistema de Yalta-Potsdam, sugerindo a criação de uma estrutura alternativa. Gostaria de chamar a atenção para os riscos associados a abordagens tão radicais. De facto, como é sabido, o regime jurídico aplicável não se coaduna com o modo como o Ocidente o aplica.
No que diz respeito aos fundamentos do direito internacional, o que há de errado com a Carta das Nações Unidas? O documento afirma, em primeiro lugar, que todas as atividades das Nações Unidas se baseiam no princípio da igualdade soberana dos Estados. Afirma também que não é admissível a interferência em assuntos de outros Estados, que as guerras e as ameaças de guerra devem ser erradicadas, sendo esta a principal missão da ONU. Contudo, os princípios supracitados não devem ser aplicados de forma seletiva, como se de opções num menu se tratasse. “Vou comer um bife, o peixe é para vocês”. Esta frase ilustra de forma elucidativa a atitude do Ocidente. Os ocidentais centraram a sua atenção no princípio da autodeterminação dos povos estipulado na primeira página do documento e “separaram” o Kosovo da Sérvia numa altura em que não havia guerras nem riscos de confronto militar, tendo afirmado que este processo foi evidente por si só, por se tratar da autodeterminação dos povos. Note-se que nenhuma consulta popular foi realizada e que a autodeterminação foi exercida unicamente pelo parlamento, o qual era suscetível de manipulação e controlado por indivíduos com antecedentes criminais, pertencentes ao "Exército de Libertação do Kosovo". Este fenómeno ocorreu em 2008.
Em 2014, como consequência de uma insurgência política contra os golpistas que tomaram o poder em Kiev através de um golpe de Estado sangrento, tendo espezinhado o acordo assinado na véspera sob a garantia da União Europeia com o então Presidente do país sobre a necessidade de realizar eleições antecipadas, e que se autoproclamaram "governo dos vencedores", os habitantes da Crimeia e do Donbass pediram que estes os deixassem em paz. No entanto, foram declarados terroristas pelos golpistas e atacados pelas tropas do exército regular, com aviões de combate a bombardear Lugansk. Como é sabido, ocorreram e continuam a ocorrer inúmeros acontecimentos trágicos naquelas regiões. Esta situação é constrangedora para o Ocidente, dado que há um número significativo de crimes que permanecem sem investigação, incluindo casos notórios, como o da morte de cerca de 50 pessoas queimadas vivas na Casa dos Sindicatos, em Odessa, em 2 de maio de 2014. Naquela altura, o Conselho da Europa ofereceu-se, embora de forma contida, para ajudar na investigação. Foi-lhe concedida a autorização. Posteriormente, aparentemente, disseram-lhe que devia seguir o seu próprio “caminho”. Que vergonha!
Gostaria igualmente de referir o caso de Bucha. Há pouco mais de três anos, dois dias após a retirada das tropas russas dos subúrbios de Kiev (permaneceu apenas a autoridade local), em sinal de boa vontade antes da assinatura do acordo, os jornalistas da BBC chegaram ao local "por acaso" e mostraram os corpos das vítimas mortais que, entretanto, não se encontravam em caves de edifícios locais, mas cuidadosamente dispostos na rua central da cidade. Em consequência, verificou-se uma manifestação generalizada de indignação nos órgãos de comunicação social internacionais, que descreveram a Rússia como bárbara e carniceira. A campanha resultou num novo pacote de sanções.
Desde então, enviámos vários pedidos oficiais às estruturas da ONU em que solicitámos a investigação de violações dos direitos humanos. O Conselho de Direitos Humanos estabeleceu uma comissão independente para os assuntos ucranianos sem nos convidar a participar. Enviámos três pedidos oficiais àquele organismo. A resposta foi o silêncio. Perguntei várias vezes publicamente, ao Secretário-Geral, António Guterres, nas reuniões do Conselho de Segurança da ONU se seria possível obtermos, através dos seus "bons ofícios", a lista das vítimas cujos cadáveres haviam sido apresentados pelos correspondentes da BBC, que, “por mero acaso” se encontravam no local. O responsável desviou sempre o olhar, demonstrando constrangimento. Nos últimos dois anos, tive a oportunidade de estar em Nova Iorque a participar nas sessões da Assembleia Geral da ONU. No final das sessões, realizo uma conferência de imprensa que reúne, normalmente, representantes de todos os meios de comunicação social internacionais. Aproveitei a oportunidade para exortar ao seu faro de jornalista, à sua perspicácia e ao seu brio. Perguntei-lhes se eles não tinham mesmo nenhum interesse em saber o que ali havia acontecido ou eles foram proibidos de tratar deste assunto. Como seria de esperar, não obtive qualquer resposta.
A Carta das Nações Unidas, para além da integridade territorial e do direito das nações à autodeterminação, estabelece um vasto conjunto de princípios adicionais. No ano de 1970, a Assembleia Geral aprovou uma extensa declaração sobre os princípios que deveriam reger as relações entre os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas. O documento pôs todos os pontos nos “is”. No que diz respeito ao princípio da autodeterminação e à sua relação com a integridade territorial, o documento assinala que todos são obrigados a respeitar a integridade territorial dos Estados cujos governos respeitam o princípio da autodeterminação dos povos e, por conseguinte, representam toda a população que vive nesse território. Em suma, o governo de um Estado cuja integridade territorial deve ser defendida tem a obrigação de representar toda a população que vive nesse território.
Após o golpe na Ucrânia, será que os racistas e nazis que ascenderam ao poder representavam a população de origem russa e russófona e muitos outros grupos étnicos que não desejavam esse governo de natureza criminosa?
Conforme disposto na Carta das Nações Unidas, mesmo antes de se consagrar o direito das nações à autodeterminação, encontra-se inscrito que é imperativo respeitar os direitos humanos, independentemente da raça, sexo, língua e religião. Ouviram alguma vez os países ocidentais patrocinadores do governo de Volodimir Zelenski afirmarem a necessidade de respeitar os direitos humanos? Em nenhum caso.
Seja qual for o país sobre o qual o Ocidente se pronuncia em público, seja a Rússia, a China, a Venezuela, o Irão, até mesmo a Hungria, a Eslováquia ou qualquer outro país, a questão dos direitos humanos surge invariavelmente no topo da lista de reclamações apresentadas. No entanto, no contexto ucraniano, esta problemática não se coloca. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o ex-Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, e todos os outros indivíduos semelhantes a Kaja Kallas declararam que era necessário continuar a fornecer apoio à Ucrânia para que esta conseguisse “vencer a Rússia”. Posteriormente, a frase foi alterada para "para que não perdesse para a Rússia". Atualmente, advoga-se a necessidade de uma "trégua para repor os stocks de munições". Todos afirmam em uníssono que a Ucrânia "merece o seu apoio" por "defender os valores europeus". As leis destinadas a eliminar a língua russa em todos os domínios, inclusive a mais recente destinada a extinguir a Igreja Ortodoxa Ucraniana canónica e contrária ao artigo da Carta das Nações Unidas anteriormente referido, são percebidas pela Europa “iluminada” como luta dos nazis ucranianos pelos “valores” europeus. De acordo com a comissária da União Europeia para o Alargamento, Marta Kos, a “Ucrânia cumpriu todas as condições prévias necessárias para dar início às negociações sobre a sua eventual adesão à União Europeia”.
O desejo de “enterrar” a multipolaridade e, em geral, qualquer dissidência, como foi o caso com a Roménia, como é atualmente com a Hungria, a Eslováquia e todos os que consideram os interesses nacionais. A multipolaridade apresenta-se como uma realidade distinta que se tem vindo a afirmar e que continuará a fazê-lo independentemente da conduta dos líderes europeus.
Há algum tempo, verificámos que existe uma grande diversidade de grupos de integração em todo o mundo, particularmente na Eurásia, África e América Latina. A África possui uma organização que congrega os Estados do continente africano, a União Africana. A América Latina e o Caribe possuem uma organização que congrega os países da região, a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Contudo, na Eurásia não se verifica a existência de qualquer organização semelhante, apesar de este continente ser o maior, o mais rico e, provavelmente, o mais bem-sucedido na perspetiva histórica previsível.
No contexto da segurança na Eurásia, as entidades predominantes, até recentemente, eram a OSCE (a NATO, evidentemente) e a União Europeia. De facto, estas organizações procuraram desempenhar o papel de "honest broker" ao tentarem atrair os países asiáticos para os seus mecanismos. No entanto, tanto a OSCE como a NATO foram estabelecidas com base no conceito euro-atlântico. Na fase preparatória da Cimeira de Helsínquia, em 1975, a noção predominante consistia em abranger o continente europeu a oeste dos Urais até Lisboa. No entanto, os europeus perseveraram em convidar os EUA e o Canadá.
O modelo euro-atlântico descredibilizou-se a si próprio. Esta afirmação aplica-se não só à OSCE, mas também à NATO, outra organização resultante dos conceitos euro-atlânticos. Atualmente, é possível afirmar com segurança que isso se aplica também à União Europeia, que se dedicava ao desenvolvimento económico, social e infraestrutural dos países membros, garantindo a conectividade dos mesmos. Há dois anos, no auge da operação militar especial, a União Europeia manifestou publicamente o seu ódio pela Rússia, retomou as ideias nazis no intuito de "infligir uma derrota estratégica à Rússia", exortou toda a Europa a preparar-se para a guerra, à semelhança do que foi feito por Napoleão e na Guerra da Crimeia, bem como durante a Primeira Guerra Mundial e, em especial, durante a Segunda Guerra Mundial (agora todas as pessoas sensatas que se deixaram iludir com estes apelos tiraram a venda dos olhos) e celebrou um acordo com a NATO, no qual cedeu parte do seu território para o transporte de armamento até às fronteiras da Federação da Rússia, tendo aderido desta forma ao euro-atlantismo.
O mais relevante é que tais estruturas já não podem aspirar, sequer, a preencher alguma lacuna de fórum pan-continental. A OSCE encontra-se, presentemente, totalmente desmantelada. O princípio do consenso foi espezinhado. Atualmente, a Finlândia, na qualidade de presidente em exercício, encontra-se a preparar a 50.ª sessão do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da OSCE. Os responsáveis pela organização do evento deliberaram que seria mais apropriado não convidar todos os participantes, a fim de não estragar a atmosfera festiva. A NATO está a enfrentar uma crise de proporções graves. Seria curioso ver como as reformas, nomeadamente a proposta de aumento da despesa dos países-membros em defesa para 5% do seu PIB, que atualmente geram uma acentuada polémica, impactarão na NATO. Seria curioso ver como a NATO será afetada pelo evidente interesse de Washington, sob a administração de Donald Trump, em dedicar maior atenção aos assuntos do Extremo Oriente, designado pela administração norte-americana como "Região Indo-Pacífico", e delegar à Europa a responsabilidade pelos seus próprios assuntos, conforme a expressão francesa.
Neste sentido, torna-se imperativo criar um formato pan-continental. Tivemos relações com a União Europeia, tivemos dezenas de mecanismos. Tivemos o Conselho Rússia-NATO. Esta estrutura também teve diversos programas, entre os quais os de combate ao terrorismo, de cooperação no Afeganistão e muitos outros. Até ao momento presente, não existe um mecanismo pan-continental.
Durante a primeira Cimeira Rússia-ASEAN, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, propôs que os esforços não fossem canalizados para a “criação de algo novo”, mas para a adaptação às realidades existentes. Temos a UEE. Esta organização possui laços com a OCX. Cada uma destas organizações mantém relações com a ASEAN. Existem relações entre a UEE e os projetos no âmbito do conceito chinês "Uma Faixa, Uma Rota”.
Se reunirmos aqueles que planeiam continuar a atuar em cada uma destas áreas e harmonizar os respetivos planos, teremos um processo que foi qualificado pelo Presidente Vladimir Putin como formação de uma Grande Parceria Eurasiática. Esta não se limita apenas às estruturas anteriormente mencionadas. Inclui igualmente o Conselho de Cooperação do Golfo, com a qual mantemos relações muito estreitas, o Conselho de Desenvolvimento do Sul da Ásia, o G5 da Ásia Central e uma série de outros organismos.
Queremos desenvolver a Grande Parceria Eurasiática com base na abertura a todos os países do continente, sem exceção, o que confere aos países localizados no continente vantagens competitivas substanciais, das quais o Ocidente atualmente demonstra o desejo de abdicar.
O chanceler da Alemanha, Friedrich Merz, receoso provavelmente de os norte-americanos quererem reconstruir os gasodutos "Nord Stream", declarou que os "Nord Stream" estão sob sanções, o que significa que é proibido reconstruí-los. Ao mesmo tempo, afirma que os alemães comuns sofrem com as guerras tarifárias. Parabéns!
Se a Grande Parceria Eurasiática se desenvolver naturalmente, poderá muito bem ser a base material para a arquitetura da segurança eurasiática. Estamos a tratar disso agora, principalmente com os nossos amigos bielorrussos. Este ano, eles realizarão a terceira conferência sobre a segurança eurasiática.
O meu colega bielorrusso Maksim Rijenkov, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Bielorrússia, deslocar-se-á em breve a Moscovo. Lançámos conjuntamente, a título de uma iniciativa para discussão, a proposta de Carta Eurasiática da Diversidade e Multipolaridade. O processo está em andamento, despertando interesse. As conferências de Minsk também registaram a participação de representantes dos países da NATO e da União Europeia, designadamente da Hungria, Eslováquia e Sérvia. O processo está aberto a todos os países do continente.
Há cerca de uma semana, o partido no poder, o "Rússia Unida", em colaboração com representantes de outros partidos com assentos na Duma de Estado, promoveu, na cidade de Perm, um ciclo de audições públicas sobre este tema. A iniciativa contou com a presença de líderes de partidos de vários países asiáticos, incluindo o Japão, a Coreia do Sul, a Tailândia e a China. Trata-se dos partidos que integram a Conferência Internacional de Partidos Políticos Asiáticos.
Pergunta: A minha pergunta é sobre a administração norte-americana. Eles já estão no poder há cinco meses. Durante este período, foram proferidas numerosas declarações e feitas diversas nomeações. Todavia, alguns dos novos titulares de cargo já foram destituídos. Qual é a sua perspetiva quanto às relações entre a Rússia e a nova administração liderada por Donald Trump? Em que ponto nos encontramos? Para onde tudo isso vai levar?
Serguei Lavrov: Considero que a atual situação é mais favorável e mais normal do que a que se verificava nas relações com a administração Biden, que, após as negociações promissoras entre o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o Presidente dos EUA, Joe Biden, em Genebra, a 16 de junho de 2021, viraram 180 graus e, infelizmente, não 360 graus, como aconselhou Annalena Baerbock. Todos os canais de comunicação foram bloqueados. A reunião realizada em Genebra foi boa. No início da reunião (em formato reduzido), Joe Biden disse, sem consultar as suas anotações, o seguinte: Os EUA e a Rússia são duas grandes potências. Cada potência possui a sua própria história. É preciso respeitar a história da outra parte e de todos os países. Os EUA constituíram-se como caldeirão de raças onde todos os migrantes se submergiam e emergiam com a inscrição “direitos humanos” e “somos todos norte-americanos” na testa.
O Império Russo desenvolveu-se de forma distinta, anexando territórios onde populações sedentárias habitavam havia séculos. As populações destes territórios não foram submetidas a um processo de miscigenação de raças, tendo as suas tradições, história, cultura e religião sido respeitadas. O Império Russo adotava a prática de conceder estatutos distintos às suas regiões, com a intenção de respeitar e considerar a sua diversidade. Consequentemente, esta constitui uma formação inteiramente distinta, civilizacional em múltiplas acepções do conceito. Os EUA não têm interesse em alterar a referida monoliticidade, ou seja, a unidade vigente. Após a sua tomada de posse em 2000, Vladimir Putin implementou diversas medidas. O país fortaleceu-se, o que foi muito útil para os EUA. Sentimo-nos seguros quando as armas nucleares na Rússia estão sob o controlo.
O Presidente do Brasil, Lula da Silva, declarou recentemente que, aquando da presidência de Joe Biden, este lhe havia afirmado que a Rússia deveria ser destruída. A sensação é a de se tratar de duas pessoas distintas. Naquela altura, a maior preocupação de Joe Biden era fazer com que a Rússia não perdesse o controlo sobre o seu poderio militar. Posteriormente, o seu objetivo principal passou a ser a destruição da Rússia.
Posteriormente, ocorreu uma rutura. Fomos visitados pelo diretor da CIA, William Burns. De acordo com a versão norte-americana, o objetivo da sua viagem foi dissuadir-nos de tomar a decisão "irrevogável" de atacar a Ucrânia. Foi comunicado aos norte-americanos que a nossa preocupação não se centrava em atacar ninguém, mas sim em proteger os nossos legítimos interesses de segurança. Apresentamos-lhes duas propostas de acordos, designadamente a de acordo entre a Rússia e a NATO e a de tratado entre a Rússia e os EUA. Nos dois documentos, os interesses de segurança da Rússia encontravam-se claramente definidos, sem que tal implicasse qualquer risco para a segurança dos países vizinhos. Em janeiro de 2022, tive dois encontros em Genebra com o então Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, para discutir os dois documentos. As nossas preocupações foram, de facto, menosprezadas. As tarefas apresentadas e que agora estamos a resolver no âmbito da operação militar especial foram consideradas inaceitáveis. Não nos foram concedidas garantias de que a Ucrânia não aderisse à NATO. Esta hipótese foi rejeitada.
O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, informou-me que o máximo que poderíamos fazer era criarmos mísseis terrestres de médio e curto alcance. Esta era uma classe de mísseis que foi proibida pelo Tratado INF, do qual os EUA se retiraram. Eles não responderam, nem responderão ao nosso apelo para celebrar duas moratórias paralelas e independentes, na ausência de um tratado. Antony Blinken propôs concluir um acordo, segundo o qual os EUA instalariam uma determinada quantidade de mísseis terrestres de curto e médio alcance na Ucrânia. Já a Rússia deveria assumir um compromisso semelhante nas proximidades da fronteira ucraniana. Seria estabelecido um "limite máximo". Decorrida uma semana, na Conferência de Munique sobre Segurança, Volodimir Zelenski gritou histericamente que ninguém poderia proibir a Ucrânia de entrar para a NATO. Foi então aplaudido. Decorridos mais sete dias, em flagrante violação dos acordos de Minsk, a intensidade de bombardeamentos do Donbass aumentou 10 a 15 vezes. Quando o "plano B", que visava pôr termo à guerra mediante a conquista violenta de pequenos territórios das Repúblicas de Donetsk e de Lugansk, que não se encontravam sob o controlo de Kiev, e não por meio dos acordos de Minsk, não nos restava outra alternativa.
Nunca devemos entregar-nos a ilusões. No final de fevereiro do presente ano, em Riade, tive uma reunião com o Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio. Os norte-americanos, por iniciativa dos quais o encontro fora convocado, iniciaram a conversa, declarando que a política externa do Presidente dos EUA, Donald Trump, e da sua administração assentava firmemente nos interesses nacionais. Eles reconheciam que outras nações também possuíam interesses nacionais, especialmente no que dizia respeito a grandes potências, como os EUA e a Federação da Rússia. Por conseguinte, desejosos de evitar surpresas e mal-entendidos, eles partiam do princípio de que, na maioria dos casos, os interesses dos grandes países não seriam coincidentes. Todavia, quando os interesses nacionais de países como a Rússia e os EUA coincidiam, seria um erro colossal não aproveitar essa coincidência para concretizar projetos mutuamente vantajosos nas áreas da economia, energia, transportes, espaço, Ártico, entre outras.
Em circunstâncias em que os seus interesses não são coincidentes, o que se verifica na maioria dos casos, cabe às grandes potências atuar de forma a impedir que a divergência se agrave e resulte num confronto e muito menos num confronto militar. Apoio sem reservas esta posição. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, partiu sempre desse princípio ao formular a sua política externa. Estamos disponíveis para dialogar com todos de forma aberta e transparente, sem abdicar dos nossos interesses nacionais fundamentais e legítimos, e sem exigir o mesmo dos nossos parceiros. Pode-se sempre chegar a acordo. O termo "equilíbrio de interesses" e o termo "compromissos" foram repetidos várias vezes pelo Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, quando inquirido sobre a existência de alguém com quem fosse possível alcançar um acordo.
Eu não alimentaria ilusões. Não sabemos como a situação se desenrolará dentro da administração Trump. Considero que as relações estabelecidas entre os dois Presidentes no início do primeiro mandato de Donald Trump são de natureza prática. Durante as suas comunicações telefónicas regulares, ambos abordam a raiz do assunto sem introduções ou preâmbulos. Esta metodologia é ótima para o trabalho. A exposição direta da posição é a forma mais eficaz de trabalhar. Esta abordagem permite evitar ilusões e expectativas frustradas. Acho que o Presidente dos EUA, Donald Trump, o seu Secretário de Estado e o Vice-Presidente são políticos que pretendem desempenhar as suas funções de acordo com este modelo de atuação.
Pergunta (traduzida do inglês): Que problemas e desafios são identificados durante a transição da Rússia da operação militar especial para uma operação antiterrorista?
Serguei Lavrov: Esta questão suscita-nos preocupação não só em virtude dos eventos ocorridos no início de junho deste ano, mas também porque esses métodos, de uma forma ou de outra (menos evidentes do que os que foram utilizados nas Regiões de Briansk e de Kursk), estão presentes no regime de Kiev desde o início. Podemos citar qualquer território onde ocorreram os combates, o resultado será o mesmo. Considero que o exemplo mais ilustrativo é a Região de Kursk. As nossas Forças Armadas fornecem informações detalhadas sobre os alvos que são atacados no território ucraniano. Em geral, trata-se de instalações militares, unidades militares, locais de concentração de material de guerra ou antigas instalações civis que são atualmente utilizadas para fins militares pelas forças armadas ou pelos serviços de segurança da Ucrânia.
Relativamente à Região de Kursk, todos testemunhámos as atrocidades cometidas ali pelos nazis ucranianos. A Região não dispõe de uma única instalação que possa ser apresentada ao "telespectador" como alvo relacionado com a realização de operações militares. Consequentemente, este facto não é de estranhar. Na reunião mais recente com responsáveis governamentais, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, expôs de forma inequívoca a conclusão a que havíamos chegado.
Esta ameaça é bastante séria. É evidente que todas as ações são realizadas pelo lado ucraniano. Contudo, este seria incapaz de agir sem o apoio dos anglo-saxões, ou melhor dito, atualmente, sem o apoio dos ingleses. Os saxões retiraram-se, embora, possivelmente por inércia, os serviços secretos dos EUA permaneçam envolvidos. Os britânicos encontram-se inteiramente imersos neste contexto. Torna-se imprescindível a implementação de medidas apropriadas, não só pelo Serviço Federal de Segurança, que enfrenta uma carga de trabalho significativa, mas também pelo Ministério do Interior da Rússia, pela Guarda Nacional Russa e por outros serviços especiais. Outro aspeto relevante é aquilo a que anteriormente se chamava " aumento da vigilância da população ". As medidas nesse sentido estão a ser tomadas. O senhor tem razão ao dizer que os riscos de aumento da ameaça terrorista existem. Estamos a vê-los. Serão implementadas todas as medidas necessárias para suprimir a referida ameaça e evitar danos para os nossos cidadãos.
Pergunta: No Conceito de Política Externa da Federação da Rússia de 2023, o seu país é designado como Estado-civilização. O texto salienta a sua autoidentificação com base nas tradições civilizacionais eurasiáticas, distintas do liberalismo ocidental. Qual será a influência dessa identificação, dedicada à soberania cultural e civilizacional, sobre as futuras relações da Rússia com a Europa e os EUA? Os Estados-civilizações, como a Rússia e a China, assumem um papel preponderante na arquitetura da multipolaridade. A sua legitimidade civilizacional, particularmente o anseio de transcender a lógica ocidental, evidenciada pelo princípio "dividir para reinar” e de "jogo de soma zero", promove uma cooperação mais eficaz entre os indivíduos. Qual é a sua opinião sobre a sinergia entre a economia da China e a UEE? Qual será a sua influência na região e no exterior? A criação de uma organização pan-eurasiática é uma possibilidade viável? Poderão a Rússia e a China lançar os fundamentos para a sua criação?
Serguei Lavrov: O continente eurasiático apresenta uma singularidade intrínseca, na medida em que foi o local de surgimento e evolução, ao longo de milénios, não só de duas civilizações distintas. As civilizações que outrora existiram neste continente são consideravelmente mais numerosas. Existem a civilização a indiana e a otomana. Existiram outras civilizações que foram outrora consideradas "Império Romano". Atualmente, ainda é possível identificar alguns vestígios destas tradições. Em outros continentes, nomeadamente na África e na América Latina, também se observam raízes civilizacionais, sobretudo dos povos indígenas. Contudo, estas não se encontram claramente expressas em símbolos civilizacionais, como a cultura, as tradições e os costumes. Até na Groenlândia não se observam tradições semelhantes.
Na minha intervenção inicial procurei transmitir a ideia de que todos os indivíduos são diferentes, tal como as civilizações e as diversas religiões são diferentes umas das outras. Na Eurásia, podemos encontrar uma linguagem comum com os nossos vizinhos e com as principais potências. Estou plenamente de acordo com o senhor quando diz que é precisamente através do diálogo entre civilizações que este processo pode adquirir uma dimensão continental e que a Rússia e a China podem e devem desempenhar um papel de liderança neste processo pan-continental. Espero que, como primeiro passo, possamos reativar a “troika” RIC (Rússia, Índia, China). Nos últimos dois anos, não tivemos reuniões a nível de Ministros dos Negócios Estrangeiros. Estou a debater esta questão tanto com o meu colega chinês como com o Ministro dos Negócios Estrangeiros indiano. Espero que, após a diminuição das tensões na fronteira entre a Índia e a China e subsequente estabilização da situação, ocorra um diálogo entre Nova Deli e Pequim, permitindo a reativação da "troika" RIC. Este facto representará um avanço significativo para o progresso dos processos continentais.
Pergunta (traduzida do inglês): Como é possível mudar a visão do Ocidente em relação à Rússia?
Serguei Lavrov: Muitos cidadãos russos e representantes de outros povos da URSS viveram um momento de felicidade, semelhante ao do "Encontro do Elba", quando derrotaram um inimigo formidável, quando, apesar de todas as manobras diplomáticas que observámos por parte do Ocidente nos primeiros dias, meses e anos da guerra, receberam ajuda (embora não gratuita), em conformidade com a lei do Lend-Lease. Os britânicos optaram por aguardar para ver de que lado iriam entrar na guerra. A desconfiança foi-se acumulando. A realização de múltiplas reuniões entre representantes de alto nível da Rússia, dos Estados Unidos e do Reino Unido permitiu alcançar acordos de natureza geopolítica. Estes acordos foram baseados num cálculo frio e num equilíbrio de interesses. Não vi uma manifestação de felicidade maior do que aquela patente nas imagens da crónica do encontro no Elba. Posteriormente, todo este edifício foi demolido. Ainda antes do término da Segunda Guerra Mundial, os nossos aliados, por iniciativa do Reino Unido, já se encontravam a preparar a operação "Impensável". Felizmente, os seus idealizadores compreenderam que um ataque à URSS era uma opção impraticável. No entanto, a orientação dos pensamentos encontrava-se delineada. Posteriormente, em Fulton, Winston Churchill proferiu um discurso, o qual foi seguido pelo início da "guerra fria" e da "cortina de ferro".
A feliz comunhão de pessoas de diferentes países e culturas que partilham os mesmos sentimentos, vencendo o mal, é o aspecto mais importante. Atualmente, assiste-se também a um conflito entre forças do bem e forças do mal. O senhor tem razão ao afirmar que o Ocidente, nomeadamente a Europa e o seu núcleo agressivo, liderado por Starmer, Merz e Macron, não só se encontra em conflito com o nosso país, ao fornecer armamento de alta precisão à Ucrânia (os ucranianos não sabem como manejar os armamentos fornecidos. Os armamentos em questão são manuseados por nacionais dos países responsáveis pelo seu fornecimento à Ucrânia) como também pretende demonstrar que o nosso país se encontra isolado, ao proibir os seus cidadãos de visitá-lo.
Um eurodeputado veio à Rússia para celebrar o 80.º aniversário da Vitória. Como punição, ele foi expulso da sua facção parlamentar, foi impedido de participar em reuniões parlamentares. Vergonha. Fascismo. Ditadura. Já mencionei o que fizeram com a Roménia.
Todos estes países possuem embaixadores em Moscovo. Alguns destes países possuem consulados gerais em Moscovo e São Petersburgo. O embaixador tem como função transmitir a verdade ao seu governo. O governo anunciou a intenção de infligir uma "derrota estratégica" à Rússia. Os embaixadores têm a responsabilidade de informar os respetivos governos sobre a forma como a missão está a ser executada no terreno, ou seja, no território da Federação da Rússia, contra a qual foi declarada uma guerra para a derrotar. Não temos conhecimento dos relatos enviados pelos embaixadores aos seus governos, contudo, podemos fornecer alguns dados.
Gostaria de citar um exemplo ilustrativo. Há um ano, em maio de 2024, após uma discussão no nosso Ministério, deliberámos não responder com rudeza às medidas adotadas pelos países anfitriões em relação aos nossos embaixadores na Europa. Os nossos representantes diplomáticos viram-se confrontados com a recusa da maioria das audiências solicitadas, sendo convocados apenas em circunstâncias pontuais, nomeadamente quando a parte anfitriã pretendia manifestar um protesto.
Antes do início da operação militar especial, eram realizados, duas vezes por ano, encontros com todos os embaixadores da União Europeia, alternadamente na sede do Ministério e na dos representantes diplomáticos, com o propósito de discutir, durante um almoço de trabalho, todas as questões de interesse comum.
Em maio de 2024, decidimos convidá-los, sem aviso prévio (uma questão que atualmente não tem nenhuma relevância), para lhes perguntar sobre o que lhes era opaco no contexto dos acontecimentos em curso. Os governos dos seus países não aparentavam estar cientes do que estava a acontecer nem do resultado da sua agressão contra a Rússia, do efeito que isso teve e continuava a ter sobre o governo russo e o povo russo. Foi enviado um convite a todos os embaixadores, incluindo o chefe da representação da União Europeia, com a marcação da data e da hora do encontro. Alguns dias antes da data prevista para a realização do evento, recebemos uma comunicação por parte dos embaixadores, na qual informavam que haviam recebido orientações dos respetivos governos para recusar o convite. Em suma, a Europa mostrou-se indiferente ao resultado da sua política belicosa e agressiva. Os governos europeus proibiram os seus embaixadores de "agir".
Citei este episódio publicamente. Posteriormente, tomámos conhecimento de que eles se reuniram com o representante da Comissão Europeia e decidiram responder à minha crítica pública, redigindo um comunicado para subsequente publicação. No comunicado emitido, alegava-se que as minhas afirmações eram falsas e que não foi possível aceitar o convite do Ministro dos Negócios Estrangeiros de um país que invadira a Ucrânia e que, segundo a sua opinião, envenenara Aleksei Navalny.
Neste contexto, gostaria de lembrar que não conseguimos obter igualmente esclarecimentos sobre as identidades das vítimas cujos corpos foram exibidos em Bucha, nem do Secretário-Geral, António Guterres, nem do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, nem dos jornalistas que, como se verifica, possuem informações detalhadas sobre Jeffrey Epstein e não têm nenhuma informação sobre o incidente de Bucha.
No que diz respeito ao caso de Aleksei Navalny, entendo que a especulação sobre a sua vida constitui uma profanação, independentemente das opiniões pessoais sobre o mesmo. Aleksei Navalny foi transportado de Omsk para a Alemanha, numa aeronave que transportava passageiros sem vistos ou passaportes, sem que fossem emitidos quaisquer documentos indispensáveis que devem ser emitidos em circunstâncias semelhantes. No Hospital Civil «Charité», onde Navalny foi internado, não se detetaram quaisquer anomalias no seu organismo. Então o sujeito foi transferido para a clínica da Bundeswehr, onde foi detetada a presença de "alguma coisa". Enviámos uma nota na qual explicámos que Navalny era nacional da Rússia e solicitámos a permissão para ver quais substâncias que foram detectadas no seu organismo, uma vez que era crucial para nós compreender a situação. Foi-nos comunicado que o nosso pedido foi recusado, porque se a informação pretendida, referente aos resultados das análises de Aleksei Navalny, fosse disponibilizada, identificaríamos a fase em que se encontrava o seu programa biológico. Foi-nos comunicado que todas as análises seriam remetidas à Organização para a Proibição de Armas Químicas. Interpelámos o organismo em questão. Contudo, esta organização, que se encontra há muito privatizada pelo Ocidente, declarou que os alemães lhes entregaram as análises, mas solicitaram que estas não fossem mostradas ao lado russo. Não estou a brincar. Não sabemos como o paciente foi tratado nem quais os tratamentos que ele recebeu na clínica da Bundeswehr. Além disso, não era possível determinar o efeito que esses medicamentos poderiam ter após um ano, um ano e meio, dois, três anos. Esta conversa assenta na recusa em fornecer dados factuais.
Esta situação é análoga ao caso do avião Boeing da Malásia. Não nos foram apresentados factos concretos. Conforme demonstrado pelos registos oficiais, foram apresentadas treze declarações de testemunhas. Apenas uma dessas declarações foi feita pessoalmente, enquanto as restantes foram dadas anonimamente. Recentemente, foi realizado um julgamento nos Países Baixos. Os EUA forneceram dados obtidos por meio de satélites. Foi apenas mencionado que estes dados foram apresentados ao tribunal. Não temos certeza se foram mesmo apresentados. No entanto, o tribunal confia na afirmação dos EUA de que os dados foram apresentados e não precisa de outras provas.
Esta constitui mais uma manifestação de impunidade e confiança irremediável na justeza da sua conduta, que serve como principal motor para aqueles que pretendem minar, inclusive por meios militares, o processo de multipolaridade. Nesta situação, é tentador afirmar que a verdade está do nosso lado e que a multipolaridade será alcançada.
Pergunta (traduzida do inglês): Sou meio escocês, meio irlandês. Por conseguinte, gostaria de aproveitar esta oportunidade para me isentar de qualquer responsabilidade pelos crimes históricos dos anglo-saxões.
O Presidente Donald Trump encontra-se no exercício das suas funções. Contudo, a questão é saber se ele realmente tem o poder. Nos últimos dias de intensa agitação em Washington, ficou evidente a capacidade do Presidente Donald Trump de demonstrar uma capacidade não inferior à de Annalena Baerbock de “girar” 360 e 180 graus. É possível que esta seja uma característica do seu caráter.
Nos Estados Unidos assiste-se a uma dualidade de poder. Na minha opinião, o Presidente Donald Trump não possuía conhecimento dos ataques terroristas perpetrados na semana passada contra aeródromos militares na Rússia. Esta ação foi implementada de forma expedita pelos indivíduos que atuaram a mando da administração anterior. Acha que há razões para considerar que nos EUA existem forças empenhadas em obstruir quaisquer iniciativas favoráveis de Donald Trump?
Serguei Lavrov: Acredito que, em qualquer sociedade, especialmente naquela que se desenvolveu durante décadas no seio do seu sistema político, seguindo o caminho batido, a chegada de uma figura excepcional e extraordinária causa sempre processos destinados a manter o status quo, ou seja, viver a crédito e propagar a sua ideologia. Na minha opinião, esta situação é típica não só dos EUA.
Reafirmámos esta posição em diversas ocasiões nos últimos dois ou três anos. Na nossa sociedade, também havia pessoas que alimentavam a expetativa de que tudo voltasse ao seu eixo, que os que fugiram (refiro-me às empresas ocidentais) regressassem e fossem recebidos de braços abertos, que as viagens à Côte d'Azur e à Sardenha voltassem a ser uma realidade, a vida voltasse à normalidade em que o consumo era garantido, em grande parte, pelas importações.
O Presidente Vladimir Putin falou claramente sobre estas pessoas, que não são designadas na Rússia como "Estado profundo", mas por outra denominação, embora o significado seja essencialmente semelhante. A experiência da Rússia em congregar este tipo de "personagens" não é tão vasta como a dos EUA. Contudo, o Presidente Vladimir Putin foi claro ao abordar a possibilidade de retorno das empresas, declarando que não há oposição da parte do governo, mas que os procedimentos serão realizados de forma justa. Se uma empresa fugiu do país, abandonando os seus funcionários, é provável que o seu nicho já se encontre ocupado. Lamentamos, mas neste caso deve apresentar uma proposta que consideramos ser aceitável.
Contudo, o aspeto mais relevante é que, imediatamente após o início da operação militar especial, ao referir-se ao futuro do mundo, o Presidente declarou que para a Rússia, para o povo russo, as coisas nunca seriam como dantes de fevereiro de 2022. Em suma, esperava até ao último momento que as propostas de acordo entre a Rússia e a NATO e entre a Rússia e os EUA, que, em 2021, foram submetidas aos nossos colegas, fossem objeto de uma consideração séria e que o bom senso prevalecesse. Contudo, tal não aconteceu, eles não acreditaram em nós.
O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, deu recentemente uma entrevista. O jornalista perguntou-lhe diretamente: isto significa que ele foi ingénuo? O Presidente respondeu de forma afirmativa, admitindo ter sido ingénuo naquela altura. Ficámos iludidos com as declarações amistosas sobre um espaço comum "da Atlântica ao Pacífico" e "espaços comuns com a União Europeia" destinados a abranger quatro áreas: segurança, economia, infraestrutura e questões humanitárias, espaços comuns da costa atlântica à costa pacífica, dezenas de áreas de colaboração, projetos conjuntos, duas cimeiras anuais, reuniões de ministros, representantes permanentes, o Conselho Rússia-União Europeia, o Conselho Rússia-NATO e muitas outras iniciativas. Adicionalmente, foram proferidas declarações solenes de alto nível, devidamente assinadas na OSCE, que proclamavam que a segurança era indivisível e que não era possível reforçar a segurança de um Estado à custa dos outros. Em suma, este conjunto de iniciativas foi-se acumulando por inércia. Todavia, o Ocidente revelou-se, repetidamente, um parceiro inapropriado para a procura de um consenso. Verificou-se que as suas retóricas eloquentes tinham como único propósito a preparação para um novo conflito de extermínio contra a Rússia, tal como ocorreu nos séculos anteriores.
Todavia, não desejávamos acreditar e, até ao derradeiro momento, tentámos promover, nos contactos com a Alemanha, a França e Londres, a ideia de que tínhamos chegado a um acordo. Enquanto isso, eles violaram passo a passo os acordos em questão. Posteriormente, a ex-subsecretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, admitiu que foram investidos cinco mil milhões de dólares na Ucrânia, com o objetivo de a transformar num país "anti-Rússia".
Peço desculpa por ter desviado da agenda norte-americana para a nossa, mas o conceito de “Estado profundo” não é exclusivo dos EUA. Já tive a oportunidade de referir a Comissão Europeia, um organismo não eleito, cuja composição é decidida em "negociações secretas" que são realizadas na base de troca de favores. Os “personagens” que integram a Comissão em questão também executam as suas manobras à semelhança do “Estado profundo” no intuito de "subjugar" o "Estado profundo". Sempre que num país a primeira volta das eleições é vencida por um candidato que não integra a “nomenclatura vigente” e que coloca as necessidades do seu povo acima de quaisquer outras considerações (esta é uma responsabilidade inerente a qualquer político), mesmo que não simpatize com o nosso país, são ativados os mecanismos semelhantes aos do "Estado profundo", e tudo volta ao seu eixo.
Espero sinceramente que as normas constitucionais prevaleçam nos Estados Unidos, que o Presidente Donald Trump não seja impedido de exercer os seus poderes constitucionais, que não o atrapalhem e que ele receba todas as informações.
Não sei qual é a situação em termos de fornecimento de informações ao Presidente dos EUA sobre as operações realizadas pelo regime ucraniano contra o nosso país. A presença de um elevado número de assessores norte-americanos na sede dos serviços de segurança da Ucrânia é um facto comprovado. Ninguém os mandou sair de lá. A presença de formadores militares de países que fornecem armamento ao regime ucraniano é também um facto comprovado. Além disso, sabemos que fornecem assessoria às forças armadas ucranianas no planeamento de operações estratégicas, na implantação de unidades de infraestrutura militar e na camuflagem de instalações militares. Como referi anteriormente, o fornecimento de armamento moderno às forças armadas ucranianas requer a participação direta de militares dos países fornecedores de armas, uma vez que a sua utilização sem esta intervenção é inviável.
Durante a sua viagem aérea, o Presidente Donald Trump foi solicitado a dar a sua opinião sobre os mais recentes ataques terroristas. Este afirmou que, quando ouviu falar disso, inferiu de imediato que os ucranianos seriam alvo de represálias e que o seu país seria alvo de bombardeamento. Só posso perceber e comentar o que me é dado ouvir. Qual é a situação em termos de fornecimento de informações ao Presidente dos EUA pelos serviços secretos? Confesso que não sei. O nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros não se intromete nos segredos alheios.
Pergunta (traduzida do inglês): Qual é o futuro da diplomacia nas condições e circunstâncias de um mundo multicultural, multipolar e interligado?
Serguei Lavrov: Considero que a diplomacia, em quaisquer sistemas e formatos de ordem mundial, não desaparecerá.
Como referi anteriormente, a diplomacia é a profissão mais antiga, uma vez que todas as coisas são resolvidas por meio de negociações. Sem a diplomacia não se consegue nada.
Ao discorrer sobre a percepção ingénua do período pós-soviético "cor-de-rosa" em que éramos "galanteados" por todos, centenas de especialistas trabalhavam nas nossas instituições do poder estatal, especialmente nas estruturas financeiras. A sensação predominante era a de que tínhamos finalmente alcançado o "fim da história" e que nos havíamos tornado parte integrante do mundo civilizado. A decepção manifestou-se de forma quase imediata. No decurso do período em apreço, a nossa linguagem no domínio da política externa incorporou uma fórmula, registada em vários documentos analíticos, segundo a qual a nova época pós-soviética, subsequente à «guerra fria», se caracterizava fundamentalmente pela diminuição do fator força nas relações internacionais. Atualmente, este postulado suscita hilaridade. Num momento em que um país é persuadido a reduzir o fator força, aquele que o persuadiu emprega esse fator na sua totalidade.
Atualmente, não encaramos de forma ingénua estas promessas e "cânticos". Contudo, a diplomacia continua a ser uma ferramenta necessária, inclusive para evitar que a corrida aos armamentos, especialmente aquela aos armamentos nucleares, atinja um nível em que o irreparável pode ocorrer. Além disso, emerge um risco de maior magnitude relacionado com a inteligência artificial. Quem sabe o que esta irá fazer quando compreender como um país é governado. Atualmente, há muitas pessoas a trabalhar nesta área.
A administração Trump manifesta o desejo de retomar o diálogo estratégico. Partimos do princípio de que, após o alinhamento dos componentes básicos das nossas relações, nos quais estas se baseiam, com os princípios de negociações equitativas sobre estabilidade estratégica, estaremos prontos para retomar as negociações. Até ao momento presente, é necessário envidar esforços adicionais.
Outro exemplo em que a diplomacia se revela verdadeiramente imprescindível é a “situação” ucraniana. Atualmente, os nossos melhores diplomatas são, indubitavelmente, combatentes da linha da frente, da linha de contacto, defendendo a verdade, a honra e a dignidade das pessoas.
O Chanceler alemão, Friedrich Merz, exortou recentemente num tom exaltado a “fazer parar a Rússia”, afirmando que eles tornarão novamente a Alemanha na potência militar número um na Europa. Não sei se este compreendia o significado da palavra "novamente" neste contexto. Posteriormente acrescentou que a Rússia não se ficará pela Ucrânia e conquistará toda a Europa. O sujeito é movido pelo seu código de valores, mantendo uma mentalidade que evoca a da Alemanha hitleriana, na qual a expansão territorial era imperativa para se obter acesso a recursos naturais, resultando na aniquilação de populações pertencentes a determinadas etnias. O sujeito tenta elaborar um juízo sobre nós com base nas suas avaliações e planos genéticos instintivos.
A nossa operação militar especial não tem como objetivo a conquista de territórios, mas sim a proteção das pessoas cujos antepassados habitaram essas terras ao longo de séculos, construindo cidades, portos, fábricas, estradas, semeando trigo e produzindo outros bens materiais. Estas pessoas foram qualificadas de "desumanos" pelos primeiros líderes ucranianos que ascenderam ao poder no golpe de Estado de 2014. Em setembro de 2021, Volodimir Zelensky, quando questionado sobre as suas opiniões relativamente às pessoas do outro lado do Donbass, afirmou que existem seres humanos e existem “criaturas", aconselhando aqueles que residiam na Ucrânia e se identificavam com a cultura russa a mandarem-se para a Rússia para garantir a segurança e felicidade dos seus descendentes. De facto, estas populações seguiram a orientação fornecida, tendo realizado um referendo e, como Zelesnky afirmou, "se mandaram" para a Rússia.
É disso que se trata.
Quando na cidade russa de Odessa, o regime nazi de Kiev derruba o monumento à fundadora da cidade, a imperatriz Catarina, a Grande, ignorando os protestos dos habitantes locais e, decorrida uma semana, a UNESCO declara a parte histórica de Odessa, onde o monumento se encontrava, património cultural mundial, o que devemos pensar sobre esta organização chefiada pela francesa Audrey Azoulay? Como é possível desonrar-se desta forma e fazer com que ninguém no Ocidente mencionasse tal facto? Apesar de esta realidade ser manifesta.
Recentemente, decorreram negociações em Istambul. A nossa operação prosseguirá. O Presidente Vladimir Putin explanou esta questão de forma clara. Contudo, em simultâneo, estamos dispostos a contribuir com os esforços da diplomacia convencional para o alcance dos objetivos da operação militar especial, sobretudo para a resolução de questões de caráter humanitário, entre as quais a troca de prisioneiros de guerra, a devolução dos jovens ucranianos que foram capturados e lançados para a guerra pelos centros de recrutamento territoriais ucranianos, de feridos, doentes e corpos de falecidos.
A recusa de Volodimir Zelensky em recolher os corpos dos seus militares já foi extensamente comentada, pelo que não me parece oportuno abordar novamente este tema profano. No entanto, gostaria de repetir: os resultados obtidos no terreno serão, em quaisquer circunstâncias, formalizados em documentos jurídicos e legais. Esta formalização será executada em colaboração com os militares, mas sobretudo pelos diplomatas. A nossa posição é clara, possuímos plena consciência dos objetivos pelos quais estamos a pugnar nos campos de batalha, nas vertentes diplomática e económica, bem como na relacionada com a educação dos nossos descendentes.
Pergunta (traduzida do inglês): Sei que o senhor advoga firmemente em prol das Nações Unidas e de outras organizações internacionais, onde deu início à sua carreira diplomática. A minha pergunta é sobre o estatuto geográfico dessas organizações, cujas delegações se encontram atualmente em "países neutros", como a Suíça e a Áustria, embora, como é sabido, nos últimos três anos tenham deixado de ser neutros. Na minha opinião, num mundo multipolar, é necessário proceder a uma relocalização. Por exemplo, seria possível considerar a possibilidade de a OPEP mudar-se para Istambul, ou a de alguns organismos da ONU sediados em Genebra se mudarem para a Índia ou para o continente africano.
Serguei Lavrov: A opção mais adequada seria a transferência da ONU para Sochi. Esta proposta, aliás, foi apresentada, em tempos, por Josef Stalin com seriedade. Posteriormente, aceitou a proposta de Franklin Roosevelt, cuja preferência recaía sobre a localização da sede da ONU em Long Island, depois na cidade de Nova Iorque e na ilha de Manhattan.
Atualmente, todas estas estruturas encontram-se profundamente enraizadas. Esta afirmação não se prende apenas com a presença física, manifestada em edifícios e bens imóveis, mas também com a presença humana. Esta situação consolidou-se ainda mais após a adoção generalizada de contratos permanentes. Os funcionários com contratos permanentes começaram a adquirir apartamentos e casas. Se fizermos a transferência hipotética de todos os elementos mencionados, veremos uma mudança tão grande que até assusta pensar nisso.
Considero que neste contexto é necessário aplicar o mesmo princípio que se aplica à Carta das Nações Unidas, na qual não há nenhum princípio que seja atualmente irrelevante ou injusto. A única falha reside no facto de estes não serem cumpridos. Como se costumava dizer no Império Russo, a rigidez das leis russas é contrabalançada pela não obrigatoriedade do seu cumprimento.
Este postulado estende-se igualmente à Carta das Nações Unidas, sendo aplicável aos países que foram mencionados e que dão espaço às sedes (EUA, Áustria e Suíça). Se a Carta da ONU fosse cumprida, é provável que todos os problemas mundiais fossem resolvidos de forma muito mais eficaz. Basta mencionar o princípio da igualdade soberana dos Estados. Cumpram-no. É difícil, mas é possível.
Este princípio é igualmente aplicável no caso de mudança. Cada cidade que acolhe as estruturas da ONU tem obrigações estabelecidas nos acordos entre a ONU e o país anfitrião. Estas obrigações exigem, de forma inequívoca, que sejam evitados atrasos na emissão de vistos por um prazo de um ou dois anos e que não seja restrita a locomoção de diplomatas que exercem funções em representações junto de organizações internacionais.
Por conseguinte, foi criado em Nova Iorque o Comité das Nações Unidas para as Relações com o País Anfitrião, no âmbito do qual, mesmo durante a administração Biden, registámos a disposição sobre a necessidade dos EUA, na qualidade de anfitriões da sede, cumprirem as suas funções. Isso é importante não só porque isso é mais barato do que a mudança, isso é importante por princípio, demonstrando que vocês não são coniventes com a grosseira violação dos compromissos anteriormente estabelecidos.
Aqueles que exigem o cumprimento dos acordos estabelecidos têm sempre razão. A Rússia é um país que honra sempre os seus compromissos. Reiteramos este postulado durante as negociações no âmbito da operação militar especial.