Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, à Agência noticiosa TASS, 27 de dezembro de 2022
Pergunta: O acontecimento mais notável do ano que está a findar foi o início da operação militar especial na Ucrânia, bem como os desdobramentos subsequentes e uma deterioração sem precedentes nas relações com o Ocidente. Na sua opinião, poderia o conflito na Ucrânia arrastar-se por, digamos, cinco anos? Para que é que nos devemos preparar? É possível um confronto militar direto com os países que apoiam Kiev?
Serguei Lavrov: As ações dos países que compõem o "Ocidente coletivo" e de Vladimir Zelensky por eles controlado confirmam que a crise ucraniana atingiu uma dimensão global. Não é mais segredo para ninguém que o objetivo estratégico dos EUA e dos seus aliados da NATO é "vencer a Rússia no campo de batalha" como mecanismo para enfraquecer significativamente ou mesmo destruir o nosso país. Os nossos adversários estão dispostos a fazer muito para alcançar este objetivo.
O principal beneficiário do "conflito quente" são os EUA, que procuram tirar dele o maior proveito possível tanto em termos económicos como em termos estratégico-militares. Ao mesmo tempo, Washington procura resolver um importante problema geopolítico: quebrar os laços tradicionais entre a Rússia e a Europa e subjugar ainda mais os seus satélites europeus.
Os EUA estão a fazer tudo para prolongar o conflito e torná-lo mais violento. O Pentágono está a planear abertamente contratos a longo prazo para a indústria de guerra norte-americana, aumentando constantemente as quantias alocadas para a ajuda às forças armadas ucranianas e exigindo que os outros membros da aliança antirrussa façam o mesmo. Os ocidentais estão deliberadamente a encher o regime de Kiev de armas modernas, entre as quais protótipos de armas que ainda não foram adotados pelos exércitos ocidentais. A razão disso dever ser que desejar ver como estas armas funcionam em combates. Desde fevereiro passado, a ajuda militar ao regime ucraniano ultrapassou os 40 mil milhões de dólares, o que é comparável aos orçamentos militares de muitos países europeus. Sabemos também que os círculos políticos norte-americanos estão cada vez mais a pensar em fazer, por gancho ou por bandido, com que a Ucrânia adira à NATO. No entanto, os ocidentais declaram que desejam ficar "acima da contenda" e que não querem um confronto direto entre a NATO e a Rússia. É pura hipocrisia. Desde já, os países membros da Aliança são, de facto, parte no conflito: o lado ucraniano conta com empresas militares privadas e instrutores militares estrangeiros. Os norte-americanos transmitem dados de satélite e outros dados de inteligência ao comando ucraniano em quase tempo real, participando no planeamento e realização de operações militares.
Por sua vez, o regime de Kiev procura envolver ainda mais os norte-americanos e outros membros da NATO no conflito na expetativa de tornar inevitável a sua colisão frontal com o exército russo. Basta recordar o incidente com o míssil antiaéreo ucraniano que caiu na Polônia a 15 de novembro passado e que Vladimir Zelensky tentou fazer passar por ser russo. Ainda bem que Washington e Bruxelas tivessem bom senso para sucumbir a esta provocação. Todavia, aquele incidente mostrou que o regime ucraniano vai deter-se perante nada.
Não deixámos de avisar os nossos inimigos no Ocidente de que a sua política de escalada da crise ucraniana é perigosa. Com o pessoal que eles colocaram em Kiev, o risco de um desenvolvimento descontrolado da situação é muito elevado. É importante evitar uma catástrofe.
Quanto à duração do conflito, a bola está no campo do regime de Kiev e de Washington que está por detrás dele. Podem acabar com a resistência inútil a qualquer momento. As nossas propostas de desmilitarizar e desnazificar os territórios controlados pelo regime de Kiev, de eliminar as ameaças que dali provêm à segurança da Rússia e dos seus novos territórios: as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, as Regiões de Kherson e de Zaporojie, são bem conhecidas do nosso inimigo. Só há uma coisa a fazer: aceitá-las enquanto estão são e salvos. Caso contrário, será o exército russo que resolverá este problema.
Pergunta: Este ano, a questão da possibilidade do uso de armas nucleares foi levantada de forma especialmente dramática. Até pessoas que não se interessam normalmente pelas notícias políticas começaram a pronunciar-se sobre o assunto. Devemos esperar que a retórica "nuclear" se intensifique em 2023?
Serguei Lavrov: Deve dirigir esta pergunta diretamente aos ocidentais. Estamos muito preocupados ao registar uma bacanal propagandística em torno do tema das armas nucleares desencadeada nos EUA e no Ocidente em geral.
Por um lado, eles não param de afirmar irresponsavelmente que Rússia está prestes a utilizar armas nucleares contra a Ucrânia, citando declarações feitas alegadamente pela liderança política da Rússia. Todavia, na realidade, nada disso foi declarado.
O que dizemos na realidade é completamente diferente: a política do Ocidente de contenção total do nosso país é extremamente perigosa e acarreta riscos de deslize para um confronto armado direto entre potências nucleares. É disso que avisamos e repetimos constantemente que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada.
Por outro lado, os sinais em matéria nuclear vindos do Ocidente são de natureza conflitual. Os ocidentais parecem ter mandado todos os padrões de decência e bons costumes descansar. A célebre Liz Truss foi particularmente excelente por ter declarado, sem sombra de dúvida, durante os debates eleitorais, que estava preparada para ordenar um ataque nuclear. Contudo, os políticos de Washington foram ainda mais longe: alguns "funcionários anónimos" do Pentágono ameaçaram efetivamente desferir um "golpe de decapitação" contra o Kremlin. De facto, era uma ameaça de eliminar o Chefe de Estado da Rússia. Se alguém acalenta mesmo estas ideias, deve pensar muito bem sobre as eventuais consequências dos seus planos.
E isso é para não mencionar as provocações do regime de Kiev que estão fora das tabelas. Vladimir Zelensky chegou ao ponto de exigir ataques nucleares preventivos dos países da NATO contra a Rússia. Isto também ultrapassa os limites do admissível. No entanto, ouvimos coisas ainda piores do regime de Kiev.
Não podemos deixar de correlacionar estas invetivas com elementos desestabilizadores das diretrizes doutrinárias dos EUA. Afinal, os norte-americanos já "se permitiram "golpes de "desarmamento", entre outras coisas. Temos também em conta que Washington não limita a nada os seus critérios de uso de armas nucleares, falando de certos "interesses vitais" dos EUA que não são especificados, porém, na doutrina norte-americana e podem aparentemente, se necessário, ser extrapolados para praticamente qualquer terreno e circunstâncias.
Continuamos a apelar ao Ocidente para que exerça a máxima contenção nesta área extremamente sensível. Para minimizar os riscos nucleares, é importante que as partes se mantenham fiéis ao postulado de que uma guerra nuclear é inadmissível, postulado esse que foi reiterado pelos cinco países com poder nuclear na sua declaração conjunta de 3 de janeiro de 2022. A lógica do documento diz que qualquer confronto militar entre as potências nucleares deve ser evitado, pois acarreta um risco de catástrofe.
Chamámos a atenção para, entre outras coisas, estes axiomas básicos na nossa declaração, de 2 de novembro de 2022, sobre a prevenção de uma guerra nuclear, acentuando, em particular, que a Rússia defende a formação de uma arquitetura de segurança internacional mais atualizada, mais estável, baseada na previsibilidade e estabilidade estratégica global, bem como no respeito pelos princípios da igualdade, segurança indivisível e consideração mútua de interesses.
Pergunta: As relações do nosso país com a União Europeia encontram-se agora a um nível extremamente baixo. Existe a probabilidade de nos fecharmos definitivamente uns dos outros e rompermos todos os laços entre nós, tanto humanitários como económicos? Tencionamos ter um representante permanente da Rússia na UE?
Serguei Lavrov: É verdade que as nossas relações com a União Europeia se encontram agora no seu nível histórico mais baixo. As causas disso são bem conhecidas. Após o início da operação militar especial, Bruxelas, segundo o exemplo dos EUA e da NATO, declarou-nos, de facto, uma guerra híbrida. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, foi dos primeiros a dizer que a Rússia deveria ser derrotada no campo de batalha.
Podemos ver como os círculos governantes dos países da UE agem em detrimento dos interesses vitais e do bem-estar dos seus cidadãos, seguindo, de facto, submissos na esteira da política antirrussa do ditador ultramarino em quase todos os aspetos, tomando, por vezes, a dianteira. Os exemplos existem à vontade. Basta mencionar que os EUA proibiram os países europeus de dialogar com o nosso país no sector de energia, que durante décadas, proporcionou aos europeus uma prosperidade sem precedentes.
Naturalmente, não teremos mais "negócios como os de sempre" com estas contrapartes. Não temos a intenção de bater a uma porta fechada, nem lhes propor projetos conjuntos. Graças a Deus, o mundo não acaba com a União Europeia, temos muitos amigos e correligionários em outras regiões do mundo. Se e quando o lado europeu tiver uma grave ressaca após a atual bacanal russofóbica e retornar ao normal, tiver políticos sensatos fiéis aos interesses dos seus respetivos países, capazes de ver as vantagens de uma parceria igual e mutuamente benéfica com a Rússia, garanto-lhe que não haverá problemas da nossa parte. Por agora, temos o que temos. Somos realistas. Continuaremos a trabalhar com aqueles poucos europeus que prezam a amizade com a Rússia. Não iremos cooperar com os russófobos.
Quanto à questão sobre se teremos um novo Representante Permanente da Rússia na UE, este não é um processo rápido. O Chefe da Delegação da UE chegou à Rússia em setembro passado e já está em funções. Nestas circunstâncias, é necessário termos em conta o volume real de contactos mantidos no meio de cânticos rituais flagrantemente hostis dos líderes da UE sobre a necessidade de isolar e derrotar a Rússia.
Pergunta: O diálogo com os EUA representa agora uma série de acusações mútuas, e fica-se com a impressão de que os dois países não têm literalmente o que conversar. Será isto verdade? Estarão os norte-americanos a tentar negociar connosco nos bastidores a situação na Ucrânia, questões do desarmamento e outras?
Serguei Lavrov: As relações russo-norte-americanas estão realmente em muito mau estado e estão praticamente congeladas por culpa de Washington. A sua política antirrussa vêm-se tornando cada vez mais abrangente e mais agressiva. É objetivamente impossível mantermos uma comunicação normal com a administração Biden que declara como seu objetivo derrotar estrategicamente o nosso país.
Temos constantemente explicado aos norte-americanos que o agravamento deliberado das relações interestatais não é o nosso estilo. Contudo, ao construir um diálogo em qualquer circunstância, partimos do princípio da reciprocidade. Ou seja, como regra, agimos de acordo com o princípio "olho por olho", mas não necessariamente de forma simétrica.
Nesta fase, não vamos avançar nenhumas iniciativas. Isto diz, por exemplo, respeito às discussões sobre a possibilidade de um novo acordo ou acordos sobre armas ofensivas estratégicas e garantias de segurança recíprocas. A possibilidade de negociação sobre esta última questão foi rejeitada pelos próprios EUA sob o pretexto da crise ucraniana. Tomámos nota disso. Não obstante, continuamos comprometidos com o Tratado START, cujos princípios básicos estão a ser corroídos por Washington.
No nosso planeamento, temos em conta um princípio que funcionou durante a Guerra Fria, o princípio da coexistência pacífica entre Estados com diferentes sistemas políticos e socioeconómicos. Pode muito bem vir a ser útil nas novas condições geopolíticas.
Tendo em conta a responsabilidade especial da Rússia e dos EUA como duas superpotências nucleares pelo destino da humanidade, presumo que relações normais entre os nossos países seriam em benefício de todos. No entanto, dadas as ações notoriamente hostis de Washington, os negócios como os de sempre não são possíveis.
Neste momento, é-me difícil dizer algo sobre contactos bilaterais plenos através dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros dos nossos dois países. Salientámos repetidamente a diferentes níveis, incluindo os mais altos, que não estávamos a evitar um diálogo construtivo, devendo, contudo, haver condições necessários para isso. Também dissemos que as eventuais reuniões não deveriam ser realizadas só para marcar a presença. Para nós, elas deveriam ter um conteúdo concreto. Não recebemos dos norte-americanos nenhumas propostas mais ou menos construtivas a este respeito.
Da nossa parte, estamos prontos a discutir questões da segurança tanto no contexto do tema da Ucrânia como num contexto estratégico mais amplo. Vamos aguardar até que Washington se aperceba de que a sua política é defeituosa e que não há alternativa à política de construção de relações connosco numa base de respeito mútuo e igualdade, com o devido respeito pelos legítimos interesses russos.