Discurso e respostas a perguntas da mídia do Ministro Interino dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Serguei Lavrov, durante a coletiva de imprensa dedicada à atividade da diplomacia russa em 2019, Moscou, 17 de janeiro de 2020
Prezados colegas,
O Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, tem comentado muitas vezes a nossa atitude para com a agenda internacional, inclusive no âmbito da grande coletiva de imprensa em dezembro do ano passado e também há uns dias, na sua Mensagem à Assembleia Federal da Federação da Rússia.
No meu discurso introdutório, quero constatar que a situação no mundo continua em estado febril e isso é evidente. O fator-chave da desestabilização permanece o mesmo: a política agressiva de vários países do Ocidente, e antes de tudo, de nossos colegas estadunidenses que visa destruir a arquitetura de segurança baseada no direito internacional, a substituição do direito internacional por uma invenção sua, designada de “ordem baseada em regras”. Fazem parte desta política a destruição por Washington do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, o “enlaçamento” das perspectivas do Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START III), a criação de tensão artificial na zona do Golfo Pérsico, as tentativas de rever os fundamentos da normalização da situação no Oriente Médio reconhecidos mundialmente, o reforço da atividade militar da OTAN nas proximidades das fronteiras russas e as tentativas de privatizar os mecanismos multilaterais de controle da não proliferação de armas de destruição em massa.
A falta de confiança na política e economia mundiais agravam-se pelo uso de métodos de concorrência desleal, como as sanções unilaterais, o protecionismo, as guerras comerciais. Um dos exemplos mais recentes são as tentativas dos EUA de impedir o projeto Corrente Norte 2, apesar das posturas contrárias dos principais países da União Europeia.
Washington começa a abusar abertamente do privilégio de os EUA serem o país anfitrião da sede da ONU. Arbitrariamente, violando o direito internacional, eles recusam aos representantes dos países “não desejados” a participarem de eventos que se realizam sob auspícios da ONU. Isso deve ser uma das aplicações dessas regras novas.
A diplomacia russa mantém um curso independente e de vários vetores, que o Presidente do nosso país definiu, e também tem envidado esforços para favorecer a diminuição da escalada da tensão internacional, a reforçar as bases jurídicas, democráticas da comunicação interestatal. Tencionamos facilitar a manutenção da segurança global e regional em todas as dimensões.
Está entre as nossas prioridades a luta contra o terrorismo internacional, inclusive na Síria, a promoção do processo político neste país, a solução de importantes problemas humanitários do povo sírio. Um dos maiores êxitos do ano passado é a instituição do Comitê Constitucional sírio graças à cooperação dos Estados garantes do formato de Astana. Agora estão no primeiro plano as questões de recuperação pós-conflito da República Árabe Síria, da sua reintegração à “família árabe”. Vamos favorecer isso tudo de maneira ativa.
Contribuímos também para a superação de outras crises no Oriente Médio e no Norte da África, inclusive na Líbia, no Iêmen. A implementação da Concepção de Segurança Coletiva proposta pela Rússia para a zona do Golfo Pérsico poderia ser um passo importante para toda a região. Apresentamos a nova versão desta Concepção no verão do ano passado no âmbito de um seminário científico do qual participaram cientistas e especialistas de todos os países da região.
Tem sido a prioridade tradicional da Rússia fortalecer a cooperação com os parceiros no espaço eurasiático, antes de tudo, no âmbito da OTSC, da União Estatal, da CEI, da UEE. Destaco particularmente os êxitos na integração eurasiática, inclusive a ampliação das ligações externas da União. Vocês sabem que já havia acordos de livre comércio com o Vietnã (2016), e no ano passado foram assinados acordos com Singapura e com a Sérvia. No ano passado, entraram em vigor os acordos de cooperação comercial e econômica entre a UEE e a China, um Acordo Temporário com o Irã. Continuam negociações intensas com Israel e com o Egito. Foi aceite a decisão de iniciar negociações com a Índia. Todas estas ações se enquadram na iniciativa do Presidente da Rússia de formação da Grande Parceria Eurasiática, aberta para todos os países da Eurásia, nosso continente comum.
Ampliavam-se as relações russo-chinesas de parceria abrangente e cooperação estratégica. No âmbito da visita estatal à Rússia do Presidente da China, Xi Jinping, em junho do ano passado, foi anunciada uma nova época destas relações. A coordenação da política externa de Moscou e Pequim teve influência estabilizadora importante na situação mundial.
Fortalecia-se também a parceria estratégica especialmente privilegiada com a Índia, as diversas relações com os países da ASEAN e outros países da Ásia, com a América Latina. A cooperação da Federação da Rússia com o continente africano teve um impulso substancial. Como se sabe, em outubro do ano passado teve lugar pela primeira vez na história a cúpula Rússia-África, cujo resultado promove o diálogo russo-africano para um novo nível de qualidade.
Conseguiu-se certo progresso no processo pacífico da crise interna na Ucrânia. Após uma pausa de três anos, o formato de Normandia voltou a funcionar com uma cúpula, quando Kiev conseguiu, por fim, dar passos para cumprir as decisões das duas cúpulas anteriores. Esperamos que as decisões tomadas em dezembro em Paris permitam progredir no cumprimento das medidas de Minsk. Claro está que estas decisões não devem ficar no papel, como durante o regime de Pyotr Poroshenko.
Neste ano que se iniciou, vamos manter a segurança global e a estabilidade estratégica, inclusive esforçar-nos-emos por prevenir a corrida armamentista no espaço e a não permitir a “weaponização” do espaço cibernético. Usaremos plenamente o potencial da ONU, do Grupo dos Vinte, da CEI, UEEA, as possibilidades da nossa presidência rotativa no BRICS e na OCX. Enfocaremos a atividade no âmbito do “quinteto” dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, especialmente a manutenção e o fortalecimento do papel coordenador central das Nações Unidas nos assuntos internacionais, a firmeza dos princípios da vida internacional formulados nos seus Estatutos. A esmagadora maioria dos Estados solidarizam-se conosco nestes esforços.
Para terminar, vou sublinhar que o ano corrente é um ano de dois grandes Aniversários: o 75o aniversário da Vitória na Segunda Guerra Mundial e na Grande Guerra Patriótica e também o 75o aniversário da Organização das Nações Unidas. Continuaremos fazendo tudo para lutar contra a falsificação da história, para eternizar o bom nome dos soldados libertadores, para não permitir a revisão dos resultados internacionalmente reconhecidos da derrota do nazismo. Muitos Estados responsáveis solidarizam-se conosco em defesa da memória histórica. Destacaria também uma imensa contribuição que fizeram para este trabalho nossos compatriotas residentes no estrangeiro. Aguardamos os parceiros estrangeiros para as solenidades de 9 de maio em Moscou.
Obrigado. Estou à sua disposição para responder a suas perguntas.
Pergunta: Sabemos que a Rússia e a China vão celebrar, este ano, o 75o aniversário da Vitória na Segunda Guerra Mundial em conjunto. Os nossos países fizeram muito para construir a ordem mundial pós-guerra. Que papel desempenham hoje na manutenção da estabilidade global? Como é a cooperação russo-chinesa neste sentido?
Serguei Lavrov: Eu já comentei as nossas relações estratégicas com a China. As nossas atitudes coincidem para com todos os essenciais problemas da vida contemporânea. As nossas avaliações e visões do desenvolvimento do mundo contemporâneo estão refletidas em todo um leque de documentos conjuntos, assinados por Vladimir Putin e Xi Jinping, inclusive a Declaração Conjunta da Federação da Rússia e da República Popular da China sobre o desenvolvimento das relações de parceria abrangente e cooperação estratégica que entram para uma nova época, assinada em junho do ano passado no âmbito da visita do líder chinês à Rússia, que elevou as nossas relações estratégicas a um novo nível de qualidade.
Coordenamos de maneira muito estreita a nossa atividade no âmbito da ONU. Sempre tentamos prestar apoio mútuo e defender os princípios da Carta da ONU, que é um fundamento da mesma. Prestamos apoio mútuo no Conselho de Segurança da ONU na consideração de assuntos ligados à necessidade de defender estes princípios em cada crise concreta, como foi recentemente, durante o exame do problema da ajuda humanitária à Síria. Votamos de maneira simultânea e sempre defendemos a justiça, tentamos sempre acompanhar as soluções que os nossos colegas ocidentais tentam frequentemente promover para insistir na sua agenda unilateral sem levar em conta a necessidade de consenso.
Eu mencionei a decisão, que enfim foi aceite em conformidade com a postura da Rússia e China, sobre o prolongamento do mecanismo da ajuda humanitária transfronteiriça. Nossos parceiros ocidentais tudo fizeram para que constasse no documento final um ponto de passagem na fronteira ente o Iraque e a Síria, chamado al-Yarubiyah. Eles choravam literalmente, insistindo que sem este ponto de passagem, os sírios residentes no Nordeste ficassem na miséria, que uma catástrofe humanitária estaria por vir. Nós sabíamos que não era assim. Nossos colegas do Ocidente precisavam desta passagem em al-Yarubiyah exclusivamente para legitimar a presença ilegal das forças armadas dos EUA e da sua coalizão na costa oriental do rio Eufrates. Se analisarmos objetiva e honestamente a situação com o fornecimento da ajuda humanitária à costa oriental do rio Eufrates, esta é a estatística: em dois meses (outubro e novembro do ano passado), a ONU com a ajuda do governo sírio, enviou de Damasco e de Qamisli para o Nordeste mais de 420 caminhões com 162 toneladas de equipamento e dispositivos médicos e remédios; já através do ponto de passagem em al-Yarubiyah um pouco mais de cem caminhões passaram em 20 meses. A importância desta passagem era muito menor daquilo que faz o governo da Síria e o Crescente Vermelho Árabe Sírio.
É um dos exemplos de como nós, com nossos parceiros estratégicos chineses, nos vemos obrigados a defender coisas elementares e não permitimos ao Conselho de Segurança da ONU que suas decisões sejam uma ferramenta de pressão unilateral contra regimes incômodos.
Pergunta: Em que fase estaria a crise síria agora? O que impede resolvê-la? Será que possamos neste ano ver a Síria restaurar as relações com a Turquia, a União Europeia e o mundo árabe?
Serguei Lavrov: Eu diria que a crise síria estivesse em uma fase adiantada de pacificação. Tem havido progressos em quase todos os sentidos – o político-militar, o diplomático, o humanitário. A recuperação econômica parece ter menos êxito, já que os nossos parceiros ocidentais, alguns países da região impõem condições prévias. Estas condições variam de acordo com acontecimentos na vida real. Primeiro, eles diziam que quando o processo político iniciasse, eles iriam levantar as restrições ao apoio à Síria para a volta dos refugiados, a recuperação da economia. O processo político começou. E agora afirmam – é mister esperar resultados. E este limite irá crescer gradualmente, as condições vão mudar. Isso, claro, não ajuda muito a alcançar resultados.
O mais importante é que foi alcançada a vitória decisiva no combate ao terrorismo. As diminutas ilhas de resistência do “Estado Islâmico” e Frente al-Nusra estão principalmente na zona de desescalada de Idlib e na costa oriental, onde, se não me engano, há cerca de 10 mil homens do “Estado Islâmico”. A maioria deles está nos campos controlados por assim chamadas Forças Democráticas da Síria. São compostas principalmente por unidades curdas. Há certas informações preocupantes que estamos examinando, dizendo que, por uma certa quantia de dinheiro, as Forças Democráticas da Síria deixariam em liberdade os bandidos que começam a espalhar-se pelo resto do território sírio. Estas informações não deixam de nos preocupar. Temos informado há muito aos nossos parceiros estadunidenses, que têm influência nas Forças Democráticas da Síria, que os militantes presos nos campos não deviam sair dali. Infelizmente, este perigo persiste.
Eu já falei de como o governo da Síria coopera com a ONU. Deu um exemplo de que já não resta causa nenhuma que justificaria conservar o mecanismo de fornecimento de ajuda humanitária transfronteiriça sem consultas com o governo da Síria. A cooperação humanitária ajuda realmente a criar condições para a volta dos refugiados.
Fazemos muito também como Nação – estou falando não somente em contribuições para os fundos correspondentes da ONU destinados à ajuda ao povo sírio e outros povos da região, mas também no plano bilateral, inclusive de nossos militares que estão ali presentes – a polícia militar e outras unidades, ajudando a recuperar os sistemas vitais: o abastecimento de água, eletricidade, a criação de condições mínimas necessárias para o funcionamento do sistema de educação e saúde. Apelamos a todos os países a seguirem este exemplo e a não tentarem politizar e a não sujeitarem a ajuda humanitária a condições geopolíticas.
Como eu já disse, no sentido político, o resultado é a criação do Comitê Constitucional, que acabou por formar a comissão de revisão, adotou regras de procedimento. Ocorreram duas sessões e a terceira está em vias de preparação.
Na semana que vem, aguardamos visita do enviado especial do secretário- geral da ONU para a Síria, Geir Pedersen, que planeja visitar também Damasco. Espero que estas negociações e seus contatos com a direção síria permitam estabelecer o horário do trabalho ulterior do Comitê Constitucional.
Sem dúvida, estamos convencidos da necessidade de corrigir o erro cometido em 2011, quando a Síria foi excluída da Liga Árabe. É necessário fazer que este país volte para a “família árabe”, como o Presidente da Rússia tem dito várias vezes.
Pergunta: A Rússia e a Itália têm falado desde há muito da crise líbia. Segundo o senhor Ministro, que erros os governos italianos têm cometido em relação à Líbia? O que os italianos poderiam fazer agora, em comparação com o passado? O que o senhor espera da conferência sobre a Líbia em Berlim?
Serguei Lavrov: O principal erro não foi cometido pela Itália, mas por nossos colegas na Aliança Atlântica, uma vez que, em 2011, não foi a Itália, se não me engano, quem teve o papel decisivo na tomada da decisão de bombardear a Líbia e derrubar o regime, em violação da resolução do Conselho de Segurança da ONU. Não vou dizer quais eram os líderes daquela epopeia, daquela aventura. Acho que são conhecidos por todos. Foi destruído naquela altura o Estado líbio, que até agora não se consegue recuperar.
Houve muitas tentativas de ajudar as partes líbias a chegarem a acordo para que o seu país voltasse ao estado normal. Houve o Acordo de Skhirat, que até agora é considerado pela maioria dos atores externos como um documento que contém os princípios essenciais da pacificação líbia. Claro que a vida continua, será possível adicionar alguns pormenores, levando em conta os acordos de Abu Dhabi no início do ano passado, que também tratavam da recuperação do poder estatal na Líbia e tampouco foram cumpridos, infelizmente. Houve a conferência em Paris. Nela, foi até aprovada a data concreta das eleições que deviam ter acontecido na Líbia. Mas todos sabemos que nunca vale a pena predizer o futuro e aguardar resultados muito concretos. A diplomacia é um processo gradual. Houve a conferência em Palermo, que também virou pouco eficiente.
Respondendo às propostas de nossos colegas turcos, aceitamos tentar fazer uma contribuição para isso. Convidamos os líderes do Leste e do Oeste da Líbia. O convite foi aceite. Mantivemos, por sete horas ou ainda mais, com as delegações do Comandante do Exército Nacional Líbio, marechal Khalifa Haftar, e do Presidente da Câmara dos Deputados da Líbia em Tobruq, Aguila Saleh e Presidente do Governo do Acordo Nacional da Líbia, Fayez Sarraj. Há o texto, que parece-nos bem equilibrado. Apela ao cessar-fogo, ao início do processo político. Assinaram-no Fayez Sarraj e Khalid al-Mishri enquanto o marechal Khalifa Haftar e Aguila Saleh pediram tempo para refletir e examiná-lo. Mas o essencial é que o cessar-fogo anunciado antes da vinda deles a Moscou, é respeitado. É já um passo importante. Esperamos que continue por mais tempo possível. Pelo menos, o Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Maas, teve um encontro em Benghazi com Khalifa Haftar e declarou que o marechal confirmou a sua lealdade ao cessar-fogo. Muito bem.
Apoiamos desde o início a iniciativa da Conferência em Berlim, porque quanto mais países quiserem ajudar os líbios a criarem condições para pacificação, melhor. Não é fácil convencer estas pessoas, tem que unir os esforços. É por isso que participaremos neste domingo da Conferência em Berlim. Participamos de todos os cinco encontros preparativos. Acho que agora os encontros finais são quase aprovados. Correspondem completamente às decisões tomadas pelo Conselho de Segurança da ONU sobre a pacificação líbia, não têm cláusulas que contradigam às suas decisões. O principal agora é que depois da conferência em Berlim, se tudo andar como era planejado e o Conselho de Segurança da ONU apoiar seus resultados, as partes líbias não repitam os seus erros do passado, não imponham condições prévias e não comecem a trocar acusações. As relações entre as partes continuam sendo muito tensas. Recusam-se até a ficar em um só quarto, para não e falar de conversações e ou eventuais encontros.
Vamos participar desta conferência junto com nossos colegas italianos. Tenho um encontro agendado com o chanceler italiano, Luigi Di Maio, na parte da manhã antes do início da conferência ao mais alto nível.
Pergunta: A respeito das recentes mudanças constitucionais propostas pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e as novas nomeações, o senhor acha que vai haver uma nova doutrina da política externa da Federação da Rússia? Como sabemos, a política externa é determinada pelo Presidente. Estamos acostumados a ouvir do senhor a expressão o “primado do direito internacional”. Compreendemos que estas mudanças fortalecem a soberania da Rússia, que é um passo importante no sentido da proteção dos interesses nacionais comuns. Quais podem ser as mudanças na prática?
Serguei Lavrov: O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, comentou já a nossa atitude para com o direito internacional e como ele interage com a nossa legislação e com a Constituição da Rússia. A Constituição, como o Tribunal Constitucional esclareceu recentemente em resposta ao pedido correspondente, contém as normas básicas, essenciais, que definem todas as nossas ações. Nenhum acordo internacional deve contradizer à nossa Constituição.
Quero sublinhar o seguinte. Qualquer acordo internacional aceite pela Federação da Rússia, acordo ao qual ela adere, é assinado e apresentado para ratificação ao parlamento russo, Assembleia Federal da Federação da Rússia. A ratificação resulta em uma lei federal. Desta maneira, primeiro, as nossas obrigações internacionais tornam-se parte do nosso sistema jurídico, ao terem a forma de lei federal, e segundo, uma lei federal não pode ser aceite se contrariar à Constituição.
Não vejo aqui nenhuma causa ou pretexto para especulação e a busca de um sentido oculto.
Pergunta: Ontem no Líbano, os manifestantes aproximaram-se do perímetro da representação diplomática russa em Beirute. Será que se trate de uma mensagem à Rússia em relação à sua política nessa região das partes externas, que apoiam e promovem os processos revolucionários no Líbano?
Serguei Lavrov: Já avaliamos a reação das autoridades libanesas e dos serviços correspondentes a este incidente. Não vejo aqui nenhuma justificação de conspiracionismo.
Se compreendo bem, existe perto da Embaixada um centro onde estão detidos os participantes das desordens, que os manifestantes tentam libertar. Duas granadas com gás lacrimogêneo atingiram o território da Embaixada. Não atingiram ninguém, causaram danos materiais. Como eu já disse, os serviços libaneses asseguraram que iriam prestar uma maior atenção à segurança da nossa missão diplomática.
Pergunta: O senhor começou o seu discurso usando a frase “estado febril” qualificando assim a situação atual no palco mundial. Com efeito, no ano passado, observávamos protestos pelo mundo inteiro. Aconteciam em diversos cantos do mundo, da América Latina a Hong Kong. Mas a pergunta essencial é essa: a que se deve a infeção e quem infecta? Na maioria dos casos, vimos o apoio desses movimentos por Washington, vimos terem sido obviamente instigados.
O ano 2020 mal começou e a política de pressão por parte dos EUA já está crescendo: vejamos a crise entre os EUA e o Irã. Esta tendência vai continuar em 2020? Será que devamos aguardar por novas “Venezuelas”, ou seja, Estados com bicefalia política? Que destino aguarda o Irã em 2020, no seu entender?
Serguei Lavrov: É difícil para mim fazer previsões. Como disse Viktor Chernomyrdin em um dos seus grandes aforismos: “O prognóstico é uma coisa enormemente difícil, sobretudo, quando se trata do futuro”.
É muito difícil adiantar “prognósticos sobre o futuro”, especialmente a respeito da conduta de nossos colegas estadunidenses. O senhor listou alguns exemplos do seu comportamento. É difícil prever o que pode ser implementado no ano corrente, portanto nada pode ser excluído.
Eu já disse muitas vezes que eles tentam substituir o direito internacional por umas regras que fundamentem uma ordem mundial do que o Ocidente precisa. É uma tentativa de adiar a formação do sistema democrático, policêntrico do mundo, que é um processo objetivo. O Ocidente tenta impedir o surgimento de grandes potências. Observamos a tensão no diálogo comercial entre a China e os EUA. Claro que a Organização Mundial do Comércio (OMC) tem um órgão para regulação de litígios. Este órgão não tem podido funcionar durante mais de um ano porque os EUA bloqueiam a nomeação de participantes deste mecanismo, que por isso não tem quórum. Em vez de resolver problemas que surgem no comércio mundial através de um mecanismo universalmente aprovado da OMC, parte do direito internacional, os EUA preferem lidar com os seus concorrentes um contra um.
Hoje eu li que a Comissão Europeia estava preocupada pelo fato de que o recente acordo entre os EUA e a China poderia violar os princípios do livre comércio, as normas da OMC. A Comissão Europeia reservou a si o direito de voltar a esta questão.
Mas se falarmos daquilo que diz respeito à segurança internacional e aos problemas de não proliferação de armas de destruição em massa, aqui também há tentativas de controlar estes processos e não permitir diálogo transparente, universal que visa soluções baseadas no consenso, que seriam aprovados por todos.
Vocês veem o que está acontecendo na Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ). Eu falei disso muitas vezes. De maneira completamente ilegal, o Secretariado Técnico obteve funções de estabelecer os culpados, o que é grave violação da Convenção para a Proibição, Produção, Armazenamento e Utilização de Armas Químicas e sua Destruição (CPAQ). É mais ou menos a mesma atitude que estão tentando impor para com a Convenção para a Proibição do Desenvolvimento, da Produção e do Armazenamento das Armas Biológicas ou a Base de Toxinas e sobre a sua Destruição (BWC, na sigla em inglês), no âmbito da qual há muito ajudamos, juntamente com a maioria do resto dos países, a criar mecanismo de verificação. O que acontece é que os estadunidenses bloqueiam unilateralmente esta decisão e tentam promover seus interesses através dos secretariados de organismos internacionais, inclusive o da ONU, usando seus contatos fechados, não transparentes, camerais. Criam biolaboratórios com a participação do Pentágono. São coisas muito graves. Repito, preocupam a todos. Mas os estadunidenses não querem considerá-las de maneira honesta, com a participação de todos os signatários da BWC.
O senhor mencionou o Irã. Existe o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla inglesa), que faz parte integral do direito internacional, que tem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU na resolução de caráter obrigatório. É o direito internacional. Os EUA optaram por aplicar as suas regras – e saíram deste Plano Global. Não só deixaram eles mesmos de cumprir as suas obrigações, mas também proíbem aos outros manterem comércio com o Irã. Já do Irã, exigem que cumpra o documento que o Presidente dos EUA, Donald Trump, chamou de “pior da história”, adicionando então que um novo documento era necessário. Porém, o Irã deve cumpri-lo. Todos devem sucumbir aos EUA e não manter comércio com o Irã, mas o Irã, sim, deve cumprir suas obrigações. É uma situação preocupante. E que está ganhando uma dimensão ainda mais perigosa: três países europeus participantes do JCPOA – o Reino Unido, a França e a Alemanha – enviaram ao Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e Segurança, Josep Borrell, dizendo querer iniciar o procedimento de solução de litígios previsto pelo JCPOA. A carta é fechada, mas já é sabido que ela chegou.
Acontece mais ou menos aquilo sobre que advertia várias vezes o Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Ele falou que haverá uma etapa em que os europeus iriam tentar utilizar a situação em torno do Irã, algumas ações do Irã, para aliviar-se responsabilizando o Irã por tudo o que tinha passado. O Irã - como dizíamos já muitas vezes - suspendeu o cumprimento só daquilo que tinha assumido voluntariamente, além dos compromissos previstos pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), pelo Acordo sobre Garantias na Área Nuclear com a AIEA, pelo Protocolo Adicional seu. Tudo o que faz o Irã no setor nuclear, é acessível e acontece na presença dos inspetores da AIEA. O Irã é agora o país mais examinado de todos os países membros do TNP.
Ao manifestarem-se no sentido de que o Irã devia tomar medidas, os países europeus lamentaram a saída dos EUA do JCPOA, porém as suas exigências eram direcionadas de maneira firme e acusativa ao Irã. Eu já li uma notícia a dizer que a Ministra da Defesa da Alemanha, Annegret Kramp-Karrenbauer, confirmou os rumores de que, antes do envio desta carta pelos chanceleres da Alemanha, do Reino Unido e França, os estadunidenses impuseram ultimato a estes três países, ameaçando-os de introduzir taxas de 25% à produção do setor automóvel e a outros bens, desde que não se recusassem do JCPOA e não apoiassem a criação de um novo tratado que deixaria os EUA satisfeitos. O Primeiro-Ministro do Reino Unido, Boris Johnson, falou disso abertamente, ao apelar a esquecer o tratado existente e assinar um novo, que não seria “o tratado de Barack Obama”, mas sim “o tratado de Donald Trump”.
Os métodos usados por nossos parceiros estadunidenses são diversos. Eu simplesmente não posso predizer o que vai passar no futuro, apesar de continuarmos diálogo sobre os problemas tanto com os estadunidenses, como com os europeus.
Aconteceu recentemente mais um encontro de vice-chanceleres da Rússia e dos EUA dedicado a problemas da estabilidade estratégica. Foi discutido todo um leque de assuntos da agenda, inclusive o tema da previsibilidade. Não posso qualificar o resultado obtido de impressionante, mas o diálogo continua. Continuaremos lutando firmemente para que o mundo não fique sem nenhum acordo que limite e que controle os armamentos, especialmente os nucleares, os assuntos da não proliferação de armas de destruição em massa.
Não foi em vão que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, em sua mensagem à Assembleia Federal da Federação da Rússia, destacou o papel das cinco potências nucleares que integram o Conselho de Segurança da ONU. Isso não é um privilégio, mas sim uma enorme responsabilidade – ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e ter direito de veto. É uma responsabilidade que não deve ser omissa, portanto o apelo do nosso Presidente aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU para, em conformidade com os Estatutos da ONU, reconhecerem e manifestarem a sua responsabilidade por tudo o que acontece na área da segurança político-militar do mundo, deve ser ouvido.
Pergunta: Eu quero fazer uma pergunta a respeito da morte de três jornalistas russos na República Centro-Africana. Recentemente houve informações de que os órgãos de proteção dos direitos locais teriam queimado a roupa dos três jornalistas, o que era uma prova material. A chancelaria russa contatou os colegas centro-africanos? Como pode ser possível tal situação com provas materiais, já que a Rússia ainda não terminou de investigar a morte de seus jornalistas?
Serguei Lavrov: Claro que contatamos. Admito que não ouvi concretamente deste incidente com a destruição da roupa. Mas o nosso Comitê de Investigação iniciou um caso criminal. Já comentamos várias vezes esta situação, inclusive através de nossa porta-voz, Maria Zakharova. Comentamos no sentido de que a investigação deveria ser conduzida por órgãos competentes na área (neste caso, o Comitê de Investigação). Comentamos do ponto de vista do nosso Ministério, que também responde pelas condições de viagens dos nossos cidadãos no estrangeiro. Lançávamos advertência a todo o mundo, especialmente aos jornalistas, mas também a outros profissionais, que o objetivo indicado no pedido de visto devia e deve corresponder ao objetivo real que se pretende realizar após o cruzamento da fronteira. É uma tragédia enorme. Vamos lutar para que a investigação seja levada a bom termo. Compreendo que a profissão de jornalista é bastante perigosa em si, e os seus colegas morrem cada ano, infelizmente. É melhor pelo menos notificar o Estado russo quando se trabalha nos “pontos quentes”, para que possamos saber onde podem vir a surgir nossos cidadãos. Eu compreendo que é o seu direito de não nos informar, se quiserem. Mas queria que esta possibilidade fosse considerada sempre que o senhor ou seus colegas pretendam se deslocar para um “ponto quente”.
Pergunta: Quando o senhor esteve em Nagoia no ano passado, disse que a parte russa transmitiu a lista de suas preocupações concretas. Se compreendo bem, a fonte da preocupação está na implementação dos sistemas antiaéreos estadunidenses no Japão. Que garantias o Japão deverá dar à parte russa para alcançar progresso nas negociações? Sempre que o Japão e os EUA mantenham relações de aliança, não será possível eliminar as suas preocupações.
Serguei Lavrov: O senhor disse tudo. Na verdade, é uma questão muito séria, uma parte muito importante do nosso diálogo com o Japão. Não só na dimensão do tratado de paz. Nós não queremos de tudo que o território do nosso bom vizinho, como nós consideramos o Japão, seja fonte de ameaça à Federação da Rússia.
Com efeito, temos preocupações. São formuladas, são discutidas no âmbito do diálogo entre vice-chanceleres e os secretários de segurança. Ontem, o Secretário- Geral do Conselho de Segurança Nacional do Japão, Shigeru Kitamuta, esteve em visita na Rússia, teve um encontro com o Secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Nikolai Patrushev, e foi recebido pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Estes temas foram tratados. O senhor mencionou que o Japão coloca sistemas antiaéreos estadunidenses de estacionamento terrestre. Os nossos colegas japoneses disseram-nos que isso era feito exclusivamente para se proteger da ameaça proveniente da Península da Coreia e que estes sistemas seriam controlados exclusivamente pela parte japonesa. Estarão sob controle da Força de Autodefesa japonesa. Nestes assuntos, tentamos estabelecer detalhes concretos, mas o essencial não é isso. O Japão implementa os dispositivos de lançamento para mísseis antibalísticos que os estadunidenses já tinham testado não somente para lançar mísseis antibalísticos, mas também mísseis ofensivos e de cruzeiro. Estes armamentos estavam proibidos pelo Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário quando este instrumento ainda funcionava, até que os estadunidenses acabaram por romper. Isso dá a possibilidade de instalação de armamentos ofensivos perto das nossas fronteiras. Claro que devemos levar isso em conta. Não suspeitamos que as autoridades japonesas, a sua elite política aja de alguma maneira de má-fé em relação à Rússia. Não, de forma alguma. Mas vocês, como o senhor já disse, têm aliança militar com os EUA. Se o senhor consultar os documentos, as declarações, as decisões aceites no âmbito desta aliança, verá que os EUA a usam para confirmar a sua política de retenção da Rússia. A Rússia é vista como adversário, e o Japão faz parte desta estratégia militar do seu aliado principal, que são os EUA. Claro que queremos clareza, queremos compreender as perspectivas da nossa cooperação futura, se os EUA atraem o Japão para a sua política, proclamada ao nível legislativo como direcionada contra a Rússia. O diálogo é importante. O que queremos é a clareza total.
Pergunta: Na terça-feira, o Senado dos EUA pode começar o processo de impeachment. Muitos falam no Ocidente que isso vai enfraquecer o apoio estadunidense à Ucrânia e fortalecer as posições da Rússia. O que o senhor acha disso?
Serguei Lavrov: São vocês que têm esse impedimento. A senhora é estadunidense, sabe melhor.
Pergunta: Em outubro de 2019, o senhor chamou o grupo BRICS de padrão da diplomacia multipolar. Quais são os objetivos essenciais alcançados no ano passado. Será que já é possível falar em objetivos para 2020?
Serguei Lavrov: Não quero levar muito tempo falando disso agora. É uma questão de fatos. O site da nossa presidência rotativa tem exposto o nosso programa. Podemos enviá-lo adicionalmente. Preparamos respostas a perguntas mais frequentes sobre o que está acontecendo na organização. Colocaremos no site, o senhor poderá consultar. Nossa presidência prevê mais de cem eventos. Muitos deles acontecerão não somente em Moscou e São Petersburgo, mas também em outras cidades, inclusive nos Urais, inclusive encontros a nível ministerial. Acredito que vai ser útil. A cúpula que vai coroar a nossa presidência, terá lugar na segunda quinzena de julho em São Petersburgo. Estamos preparando-a ativamente.
Pergunta: Ontem, a Dieta (parlamento) da Letônia acusou a Rússia de falsificar a história da Segunda Guerra Mundial. Como é bem sabido, são os países do Báltico que fazem com maior frequência falsificações históricas. O mais triste é que são ouvidos por organizações internacionais. Resultam disso tais documentos como a resolução escandalosa do Parlamento Europeu do ano passado, que responsabiliza, em igual medida a URSS e o Terceiro Reich, pelo início da Segunda Guerra Mundial. Como pudemos permitir isso? Como a Rússia pode defender os seus interesses e a verdade histórica? Que passos devem ser tomados para isso?
Serguei Lavrov: Como permitimos o nazismo prosperar na União Europeia? Acho que não podemos influenciar isso usando força. Mas podemos envergonhar a União Europeia, e fazemos isso. Eles, infelizmente, baixam os olhos e se esquivam à conversa honesta. No melhor dos casos, apontam a necessidade de respeitar a liberdade da expressão, opinião etc. Pela mesma razão, abstêm-se cada ano na Assembleia Geral da ONU, quando nós apresentamos a resolução sobre a inadmissibilidade da heroização do nazismo, de ressuscitação de toda forma de ideologia misantrópica etc. A propósito, os estadunidenses, junto com os ucranianos, votam contra, o que tampouco surpreende. Os EUA não querem impor restrições a si mesmos. E os ucranianos, se aceitassem a resolução, talvez não possam fazer frente e resistir aos elementos radicais neonazistas, que estão tentando controlar muitas coisas no seu país.
Mas se o senhor diz que são apoiados por organizações internacionais, não vou concordar. É uma organização internacional que mencionei, a Assembleia Geral da ONU, que aceita cada ano, por maioria dos votos (130-140), a resolução que condena qualquer manifestação de neonazismo e heroização dos criminosos nazistas. O Parlamento Europeu é, claro, uma organização internacional, mas não é universal. Nela, como na União Europeia em geral, muitas coisas são feitas por iniciativa da minoria: referem-se às regras do consenso, à necessidade de respeitar a opinião de cada um. Mas a minoria é bastante agressiva. O senhor disse com toda a razão que os países do Báltico, e também vários outros, desempenham o papel principal nesse sentido.
A respeito dos fatos concretos apresentados pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin, no seu discurso durante o encontro dos países da CEI em São Petersburgo em dezembro do ano passado, a reação a eles foi uma ilustração ao provérbio “O ladrão apanha-se a si mesmo”. Como o senhor sabe, o Presidente disse estar preparando um artigo detalhado, apoiado exclusivamente sobre fatos, sobre novos dados dos arquivos russos. A propósito, ontem o Ministério da Defesa da Federação da Rússia publicou os dados de arquivo inéditos sobre quem e como libertava Varsóvia. A Polônia, através de seus diplomatas, tinha falado que seria muito interessante realizar a ideia de Vladimir Putin e pesquisar os materiais dos acervos. Então, o “coelhinho da Páscoa trouxe o ovo”. Aqui estão os materiais de arquivo, e seria muito importante saber o que a parte polonesa vai dizer ao estudá-los. As tentativas de espalhar calúnias sobre o nosso país e de mentir em relação aos resultados da Segunda Guerra Mundial, das suas causas, e usar esta mentira para enfraquecer as posições da Rússia no palco internacional vão continuar.
Na semana que vem, terá lugar em Jerusalém um evento internacional dedicado à memória das vítimas do Holocausto, com a participação do Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Sabemos bem que os nossos colegas poloneses (ainda que o Presidente da Polônia, Andrzej Duda, anunciasse que não iria assistir, não conheço a razão disso – talvez porque esteja lá Vladimir Putin) estão tentando convencer os participantes ocidentais da cerimônia (os EUA e vários líderes europeus) a explicarem em seus discursos o ponto de vista polonês sobre a atitude da Rússia para com a Segunda Guerra Mundial. Os métodos são completamente indecorosos, levando em conta o evento no âmbito do qual eles podem empreender tais tentativas.
Serguei Lavrov: Como ações que qualquer Estado soberano tem o direito de tomar para cumprir com suas obrigações com seus cidadãos. Temos lidado com os mesmos problemas. Nossos militares, serviços secretos, Delegada de Direitos da Criança estão trabalhando para trazer de volta nossas crianças do Iraque, da Síria. Trocamos experiências com nossos colegas cazaques. Ainda ontem estive no Uzbequistão. Nossos amigos usbeques também estão empenhados em libertar seus cidadãos, suas mulheres e suas crianças. Com relação aos extremistas, é um tema à parte. Já falei do problema vivido atualmente no leste da Síria, quando os extremistas fogem dos centros de detenção. Na maioria dos casos, as mulheres haviam aderido a grupos extremistas contra sua vontade, sofrendo lavagem cerebral. As crianças não podem responder por isso. Claro que quero que elas voltem a um ambiente normal e cresçam como pessoas normais, não influenciadas por ideias terroristas radicais.
Pergunta: O senhor acha adequadas as ações das autoridades polonesas em relação aos cemitérios, eu me refiro à destruição dos monumentos por meio de buldózeres? Em entrevista ao canal 1 da TV russa, o ex-presidente da Polônia, Lech L. Wałęsa, se declarou disposto a vir à Rússia. O que o senhor acha da hipótese de substituição do atual Presidente polonês, Andrzej Duda, pelo ex-líder polonês e prêmio Nobel, Lech Wałęsa?
Serguei Lavrov: Com relação à atitude em relação aos monumentos, já abordei a questão dos resultados da Segunda Guerra Mundial, em princípio. Estou certo de que, nessa questão, é preciso basear-se nos fatos históricos. Estamos sempre abertos a um diálogo que tome em consideração documentos de arquivo. Durante muito tempo, a Rússia e a Polônia tiveram uma estrutura inteira de mecanismos bilaterais, canais de comunicação, entre os quais o Comitê Estratégico co-presidido pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países e que envolvia muitas outras entidades governamentais.
Essa estrutura integrava um grupo de historiadores que tratava questões difíceis do passado a partir de posições baseadas em fatos científicos. Há algum tempo, esse grupo lançou um livro didático conjunto sobre uma determinada etapa de nossas relações e sobre a história conjunta com a Polônia, além de uma série de artigos conjuntos dedicados a diversos episódios daquele período interpretados pelos dois lados de forma igual. Os episódios vistos de forma diferente ganharam artigos separados do lado russo e do lado polonês.
Acredito que esse trabalho deve ser retomado e não deve se tornar refém das tentativas de usar a história para fins da propaganda. Com relação à destruição de monumentos, nossos colegas poloneses se justificam dizendo que a Polônia não se comprometeu a preservar os monumentos erguidos fora dos cemitérios e que só se dispõe a proteger os monumentos construídos nos cemitérios. É uma atitude mesquinha. Se nos comportarmos desse jeito, perderemos o sentido de probidade. Trata-se das pessoas tombadas que deram suas vidas, a coisa mais preciosa que possuíam, para libertar a Europa. Por isso, partilho inteiramente da posição daqueles (inclusive o Presidente da República Checa, Milos Zeman) que se opõem à destruição dos monumentos referentes àquela guerra.
Com relação a Lech Wałęsa, ele é um homem respeitado, conhecido como político completamente independente. Tem sua própria opinião a qual ele expressa e defende livremente. Se tem interesse em vir à Rússia, é da conta dele. Será um grande prazer recebe-lo aqui e fazer com que se sinta confortável durante sua visita. Com relação a seus encontros a nível político, não é de minha conta.
Pergunta: Como o senhor avalia a articulação entre a Rússia e a Alemanha após a recente visita da Chanceler alemã, Angela Merkel, à Rússia? Houve alguns progressos? Essa foi sua primeira visita a Moscou nos últimos cinco anos.
Serguei Lavrov: Não creio que, na conjuntura atual, os contatos entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e a Chanceler alemã, Angela Merkel, tenham de ser orientados necessariamente para o alcance de progressos no relacionamento. Eles se comunicam regularmente "à margem" de diversos eventos ao telefone (ainda recentemente se avistaram em Paris antes de a Chanceler chegar a Moscou). Trata-se de relações de trabalho, substanciais e pragmáticas. Nenhuma das partes procura explicar à outra que esta está errada ou que, em primeiro lugar, é preciso solucionar as divergências ideológicas e, depois, as questões restantes. Entendemos que existem sanções e a posição da Alemanha após o golpe de Estado na Ucrânia. Como se sabe, a Alemanha havia garantido um acordo que foi quebrado pelos golpistas. Já comentei isso. Infelizmente, naquela época, a Alemanha, como os demais países europeus, havia ficado sem saber o que fazer e teve de aceitar um ato ilegal cometido contra sua vontade e assinatura. A Alemanha começou a se preocupar com a crise depois que a Rússia decidiu atender à vontade do povo da Crimeia, expressa em referendo, de se reunificar com a Rússia. É a partir desse ponto que nossos colegas ocidentais consideram o evoluir dos acontecimentos, deixando de lado a questão de como foi realizado esse golpe de Estado, como seus líderes aprovaram imediatamente uma lei que revogou os direitos da população russófona e como os golpistas radicais exigiram que os russos "saíssem" da Crimeia. Não levam nada disso em conta, embora tudo isso tenha acontecido antes. O Ocidente ficou decepcionado em ver que a população da Crimeia fez o que haviam sonhado em fazer durante décadas após a desagregação da URSS. É nisso que reside o problema.
A visita de Angela Merkel não foi extraordinária. Nossos colegas alemães estavam particularmente interessados no sucesso da Conferência de Berlim sobre a Líbia. A discussão desse assunto levou muito tempo. Vladimir Putin e Angela Merkel conversaram a sós durante cerca de uma hora. Enquanto isso, conversei com o Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Heiko Maas e sua comitiva. Eles, claro, falaram da economia, das questões energéticas, do projeto de gasoduto Corrente Norte. Tudo isso foi dito em declaração introdutória à coletiva de imprensa e nas respostas às perguntas. Acho que essa foi uma visita normal de trabalho. É nisso que reside o pragmatismo de nossas relações com a Alemanha.
Pergunta: Com relação ao Irã, o senhor criticou muito os EUA e três países europeus, mas não disse o que a Rússia pode fazer agora para evitar uma nova escalada no conflito com o Irã?
Serguei Lavrov: Espero que você acompanhe nossas declarações e nossas iniciativas. Consideramos inaceitável aquilo que está acontecendo com o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA). Segundo o plano, o Irã deveria limitar seu programa nuclear a certos parâmetros no que diz respeito ao enriquecimento, a quantidade de água pesada disponível em cada momento, estoques de urânio enriquecido (cerca de 4%). O Irã assumiu obrigações maiores do que aquelas expostas nos acordos universais de não-proliferação e nos documentos da AIEA. Em contrapartida, o Irã só recebeu a promessa de que as restrições ao comércio com ele seriam levantadas (o Ocidente não lhe quis conceder condições superfavoráveis). Mas nem isso foi feito. Os EUA proibiram a todos de comerciar com o Irã e ameaçam impor sanções. Já os europeus, desejosos de se passar por intrépidos, disseram que iriam criar um mecanismo que lhes permitisse servir o comércio com o Irã, independentemente do dólar e dos EUA. Esse mecanismo foi criado há mais de um ano, se chama "Instex" e serve as transações comerciais que envolvam apenas bens humanitários, não abrangidos pelas sanções nos EUA. Disseram que, quando o mecanismo entrasse em operação, ele se estenderia também ao serviço do comércio de outros bens, inclusive o petróleo, produto principal do Irã. Em mais de um ano, esse mecanismo não serviu uma única transação. Uma foi iniciada, mas até agora não foi concluída. Diz respeito a medicamentos no valor de US$ 10 milhões. Não adianta dizer que é uma gota no mar.
Quando o Irã diz que vai "suspender" seus compromissos voluntários, achamos que isso não ajuda e dá motivos, sobretudo aos americanos, para exacerbar ainda mais a situação. No entanto, vemos as razões por que o Irã tem de fazê-lo. Ele não se recusa a cumprir as restantes disposições que são obrigatórias para todos os Estados, Participantes do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. Acreditamos que os europeus devem e podem fazer muito mais.
Há um problema decorrente das decisões do setor privado. Você não pode obrigar uma empresa a atuar em detrimento de seus interesses. Se uma empresa tem interesses, investimentos diretamente relacionados ao uso do dólar nos EUA ou em outros países, cabe à empresa decidir onde irá operar. Entendemos o que essa decisão pode ser. Por outro lado, existem empresas que não têm obrigações ou interesses no território que pode ser atingido por sanções ou restrições por parte de legisladores americanos.
Atualmente, estamos debatendo a questão sobre o que devemos fazer a seguir. Nossos representantes, nossos vice-ministros dos Negócios Estrangeiros estão em contato permanente com o Serviço Europeu para a Ação Externa que coordena o JCPOA. Penso que, em um futuro próximo, é necessário realizar uma reunião para analisar a situação e compreender quem está pensando em que. Porque nossos parceiros, a chamada troika ocidental (Reino Unido, França, Alemanha), garantem que suas ações, suas críticas e suas exigências em relação ao Irã têm o objetivo de salvar o JCPOA.
A quase mesmo tempo, o Primeiro-Ministro britânico, Boris Johnson, propôs anular o acordo concluído pelo ex-Presidente americano, Barak Obama, e fazer um novo acordo que conviesse ao atual líder americano, Donald Trump. Mais tarde, porém, eles tentaram voltar com a palavra atrás mas a “palavra solta não tem volta”. Com relação ao que vamos fazer em um futuro próximo, acho que é necessário convocar uma reunião de diretores políticos de todos os restantes participantes do JCPOA: a troika europeia, a Rússia, a China e, naturalmente, o Irã, para falarmos francamente uns com os outros.
Pergunta: Nestes dias, um novo governo russo está sendo formado. O senhor vai continuar como Ministro dos Negócios Estrangeiros? Gostaria de ficar em seu posto?
Serguei Lavrov: Você deve estar trabalhando como jornalista há muito tempo, você deve entender. Está vendo, todo o mundo está se rindo. Há três dias, eu recebi a instrução de desempenhar minhas funções, estou fazendo isso.
Pergunta: Qual é sua impressão do encontro com o Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi? Conseguiu chegar a acordo sobre os desembolsos em moedas nacionais no comércio entre a Rússia e a Índia em moedas nacionais?
Serguei Lavrov: Durante o encontro com o Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi, e o Ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, não falamos sobre os desembolsos em moedas nacionais. Temos mecanismos para servir nossas relações comerciais e econômicas: essa questão está a cargo da Comissão Intergovernamental Rússia-Índia que se reúne regularmente. Sua próxima reunião será neste ano.
Dispensamos maior atenção a aspectos políticos da agenda bilateral: a cooperação na OCX, BRICS, com destaque para o fato de a Rússia ter, este ano, presidência rotativa desses organismos internacionais. Também falamos sobre a situação geral no Pacífico Asiático e no Indo-Pacífico, novo termo surgido na agenda internacional. Sempre houve o termo “Pacífico Asiático”, agora nossos colegas americanos estão empenhados em implantar o termo “Indo-Pacífico”. Assim como o termo " ordem baseada em regras " passou a ser correntemente usado, assim também o termo “Estratégias Indo-Pacíficas” está entrando em circulação.
No entanto, não foi do termo que falamos, mas da atitude da Rússia e da Índia em relação aos princípios da construção de uma cooperação multilateral em nossa região comum. Nossas posições a esse respeito são quase idênticas. Nem a Índia nem a Rússia são favoráveis às tentativas de usar o conceito de estratégias Indo-Pacíficas para a construção de configurações de confronto nessa região. Acreditamos ser importante dar continuidade à cooperação com base nas estruturas multilaterais já estabelecidas por iniciativa da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). A ASEAN tem um Fórum de Segurança Regional, mecanismo especial para reuniões de Ministros da Defesa dos países da ASEAN e dos países parceiros (ADMM Plus). Tem um instrumento importante como a Cúpula da Ásia Oriental, onde todas as questões sem exceção podem ser abordadas. Desse ponto de vista, foi muito útil ver que a Rússia e a Índia assumem posições quase idênticas.
Outra coisa é que a terminologia ainda deixa em aberto algumas perguntas. Perguntei a nossos colegas americanos e japoneses, também podemos perguntar aos australianos (os EUA, Austrália, Japão e República da Coreia são os principais promotores desse conceito) se a substituição do termo “Pacífico Asiático” pelo "Indo-Pacífico" significa que toda a África Oriental ficará envolvida no novo processo de cooperação. A resposta é não. Quererá isso dizer que o Golfo Pérsico também será objeto dessas discussões, uma vez que faz parte do Oceano Índico? A resposta também é não. Portanto, verificamos que os integrantes são os mesmos do Pacífico Asiático, mas há quem queira traçar uma linha divisória entre eles. Eis a questão. Os promotores do conceito não escondem isso. Para mim era importante verificar que nossos amigos índios o compreendem muito bem.
Pergunta: Como a Rússia enxerga as numerosas tentativas de submeter a questão da Caxemira à discussão no Conselho de Segurança da ONU?
Serguei Lavrov: Temos sempre defendido que a questão da Caxemira seja solucionada por meio de negociações diretas entre a Índia e o Paquistão, em conformidade com as declarações e acordos aprovados pelos dois lados. Mantemos a mesma posição em relação às tentativas de levar esse assunto à ONU.
Pergunta: Como o senhor acha que a crise entre o Irã e os EUA afetará o processo de paz no Afeganistão?
Serguei Lavrov: Penso que o agravamento das relações entre o Irã e os EUA não ajudará a resolver qualquer crise na região, até porque a tensão irá aumentando. A tragédia com a aeronave ucraniana é um sinal sério para proceder à desescalada e abandonar a prática de ameaças e de voos de aviões de combate nessa região.
No plano prático, sabemos que os EUA é um dos principais atores na República Islâmica do Afeganistão (IRA). Eles estão à frente de uma coalizão inteira, têm um contingente de tropas no Afeganistão e retomaram as negociações com os Talibãs. Apoiamos isso. Acreditamos ser muito importante que haja um acordo que permita posteriormente iniciar negociações entre todos os afegãos. Afinal, essa é uma condição que foi colocada pelos Talibãs e que foi aceita. Estamos procurando contribuir para esse processo. Além de mantermos contatos com os Talibãs, os quais encorajamos a buscar acordos e a entabular um diálogo direto com outras forças políticas afegãs, temos um canal trilateral de comunicação com os americanos e os chineses a que o Paquistão aderiu recentemente. Entendemos que seria correto se não só os EUA, a China, a Rússia e o Paquistão trocassem ideias, nesse ambiente informal, sobre como fazer avançar o processo de paz, mas também o Irã se juntasse a esse formato. Em princípio, isso seria possível. Pelo que estou entendendo, por enquanto, tais desdobramentos são impossíveis devido à determinação anti-iraniana dos EUA e a falta de vontade do Irã de contatar, nessas circunstâncias, com os americanos e de ajuda-los.
De todos os pontos de vista, é necessário desescalar as relações entre os EUA e o Irã, mas isso exigirá sabedoria de estadista. É pouco provável que suas relações possam se afastar da linha perigosa se Washington continuar acusando publicamente o Irã de todos os pecados da região. Seja qual for o país que você mencionar, verá que o Irã é o responsável por tudo e Washington exige que ele deixe de dar passos para o desenvolvimento de suas relações e influência. Isso é impossível. Todos os países dessa e de outras regiões têm seus próprios interesses, projetando-os em seus amigos e vizinhos. O mais importante é que esses interesses sejam promovidos de forma legítima. Infelizmente, isso nem sempre acontece. Vejam, a presença ilegal da coalizão antiterrorista no leste da Síria fomenta, de fato, as tendências separatistas. Na verdade, esse é um problema sério. Portanto, é melhor todos se sentarem à mesa de negociações.
Como vocês sabem, inicialmente, o Irã propôs concluir um Acordo de Não-Agressão com os países árabes do Golfo Pérsico, depois, avançou a Iniciativa “Paz de Ormuz” para cooperar em matéria de segurança nessas águas. Assumimos uma posição semelhante. Como mencionei em declaração introdutória, avançamos o conceito de segurança coletiva no Golfo Pérsico e nas regiões adjacentes. Trata-se de não só reunir a uma mesma mesa todos os países costeiros ao Golfo e o Irã, mas também convidar atores externos. Refiro-me à Liga dos Estados Árabes (ELA), à Organização de Cooperação Islâmica (OIC), aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e à União Europeia (UE). Penso que, nesse formato, poderíamos dar início aos trabalhos de uma conferência sobre a segurança e confiança nessa região. Se conseguíssemos lançar esse processo, outros países da região, ou mais amplamente, outros países do Oriente Médio e da África Setentrional também poderiam se juntar.
Infelizmente, por enquanto, as contradições entre alguns países árabes do Golfo e os iranianos são demasiadamente profundas. Exortamos a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e os iranianos a estabeleceram entre si um diálogo. Os lados por nós contatados se mostram compreensivos, mas não conseguimos, por enquanto, convencer nossos amigos a começar a trabalhar nesse sentido.
Pergunta: Minhas perguntas têm sido feitas em relação ao Boeing ucraniano. Na semana passada, esse assunto suscitou uma grande polêmica. As posições assumidas pelo Irã e pela Rússia em relação ao voo MH17 não foram vistas com bons olhos. O senhor concorda com Margarita Simoninan quando ela diz que o Irã agiu nesse caso "como um homem", diferentemente de outros países e da Rússia, em particular?
Minha outra pergunta é sobre a posição assumida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia na semana passada. Até o último momento, representantes da diplomacia russa afirmaram que teria sido uma desinformação divulgada pelo Ocidente, embora, na realidade, houvesse muitas provas de que algo havia acontecido no céu, a uma altura de 2,5 mil metros. Acontece que isso não era verdade. O senhor não acha necessário pedir desculpas às famílias das vítimas?
Serguei Lavrov: Não me lembro de o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo ter dito oficialmente que a versão de que o avião foi abatido era uma desinformação. Você pode me desmentir caso tenha provas.
Pergunta: Acho que esses comentários teriam sido feitos por seu vice, Serguei Riabkov.
Serguei Lavrov: Não fizemos nem podíamos fazer nenhuma declaração oficial. Só nos pronunciamos no sentido de ser necessário que a verdade fosse esclarecida. Também queremos que seja esclarecida a verdade no caso do "Boeing" malaio. Com relação a sua pergunta anterior, mencionei a tragédia com o avião ucraniano devido à crescente tensão entre os EUA e o Irã. Eu não quero justificar ninguém. Foi um erro humano. Não foi um caso pensado, acho que todo o mundo já o entendeu. É o direito dos familiares das vítimas reclamar indenizações. Acho que o lado iraniano vai considerar todos os pedidos de indenização. Os iranianos admitiram ter sido por engando. Não quero convencer ninguém de que isso poderia não ter acontecido. Claro, quem me dera que isso não tivesse acontecido. Mas os americanos mataram o general Qasem Soleimani, comandante da Força Al Quds da Guarda Revolucionária do Irã, durante uma operação sem precedentes que torpedeou e pôs em dúvida todas as normas do direito internacional. Os iranianos responderam. Como soubemos mais tarde, responderam, tendo avisado previamente o Iraque. Na mídia há muitas informações de que os americanos foram avisados e levaram isso em conta. Também há informações de que, após esse ataque, os iranianos esperavam outro golpe por parte dos EUA, não sabendo quais formas uma ação de retaliação americana poderia tomar. Fosse como fosse, naquele momento, no espaço aéreo, na fronteira do Irã, havia pelo menos seis aviões de caça F-35. Essa informação deve ser verificada. Mas eu quero enfatizar o nervosismo que está sempre presente em situações como essa.
Com relação ao fato de haver a posição iraniana e a posição russa. Para dizer a verdade, não entendi de qual diferença você falou. Quero dizer mais uma vez que queremos ter clareza no caso do Boeing da Ucrânia e no caso do Boeing da Malásia. Vou lembrar algumas coisas que nossos colegas, em particular, os holandeses, preferem não dizer. Em primeiro lugar, a Rússia foi um dos coautores da Resolução 2166 do Conselho de Segurança da ONU que exigia que a investigação fosse realizada em estrita conformidade com as normas da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). Não vou dizer agora quais as normas que deveriam ter sido cumpridas, vou dizer que elas não estão sendo observadas. A Resolução 2166 do Conselho de Segurança da ONU exigia, entre outras coisas, que as pessoas encarregadas de investigar o caso informassem regularmente o Conselho de Segurança da ONU sobre o andamento do processo. Não houve nenhum relatório a esse respeito. Foi constituído um grupo de investigação misto, composto pela Ucrânia, Austrália, Holanda, Bélgica.
A Malásia, cujo "Boeing" foi abatido, não foi convidada. Só três meses depois, o país foi convidado a integrar a equipe de investigação criminal, embora já tivesse participado do grupo para o apuramento das causas técnicas. Aliás, se tivessem tido reclamações a nosso respeito, poderiam ter convidado a Rússia para o grupo misto de investigação. Eles não quiseram que a Rússia também participasse. Mesmo assim, nós cooperamos ativamente, atendendo a todos os pedidos do grupo misto criado pelos Países Baixos. Até realizamos a reconstituição do acidente. O consórcio "Almaz-Antey", fabricante de sistemas de mísseis antiaéreos "Buk", dos quais um teria sido alegadamente usado para abater a aeronave, mostrou como isso podia acontecer na realidade. Fornecemos os dados originais dos radares. Quando perguntamos onde estavam os dados dos radares ucranianos, nos disseram que esses dados não estavam disponíveis. Depois, alguém disse que os radares ucranianos teriam se desligado casualmente. Reparem, todos os radares responsáveis por essa zona do espaço aéreo da Ucrânia “se desligaram” de repente. Algo semelhante ocorreu no caso dos Skripal encontrados em um banco de jardim, quando a câmera de vídeo que vigiava sua casa ficou desligada durante a parte da manhã do dia. Também não há resposta ao porque não foram publicadas as conversações dos controladores aéreos ucranianos. Agora, cinco anos após o acidente, foram publicadas algumas gravações de conversas telefônicas entre autoridades russas e as da região de Donbass. Levaram cinco anos para encontrar essas gravações. E que dizer das gravações das conversas dos controladores aéreos ucranianos? Não há nada para procurar aqui! Essas gravações devem ser tronadas públicas. Eles não querem fazê-lo. A questão é: onde estão os dados dos satélites americanos? Foi dito que tais dados existiam.
Sabem o que é mais curioso? Quando a Malásia não foi convidada a participar da investigação, os quatro países que se juntaram à Ucrânia (eles não falaram disso, mas sabemos disso ao certo) concordaram entre si que toda informação destinada ao consumo externo deveria ser aprovada por todos os quatro integrantes do grupo, inclusive a Ucrânia. Quando os parlamentares holandeses perguntaram a seu governo por que razão a Ucrânia não foi questionada sobre os motivos por que não havia fechado seu espaço aéreo, o governo holandês não respondeu. Perguntas como essas não faltam. Quando as autoridades holandesas encarregadas de investigação declaram publicamente (meu colega Stef Blok também se permite dizer isso) que a Rússia não cooperou com a investigação, apesar de termos lhes fornecido tudo o que elas haviam solicitado, e nós lhes perguntamos por que motivos fazem tais declarações, sabem o que eles respondem? “A Rússia não está cooperando porque não reconheceu sua culpa".
A Austrália e os Países Baixos sugeriram-nos iniciar consultas. Aceitamos sua proposta na condição de podermos examinar todas as questões que nos interessam. Responderemos a suas perguntas. Por outro lado, queremos discutir com eles tudo o que acabei de dizer. Eles se esquivam de falar sobre isso, alegando que a investigação ainda não acabou e que somos culpados e que, por isso, devemos falar sobre indenizações. É assim que os "homens" se comportam? Você não sabe? Eu também não acho. Por isso, quando esse assunto, assim como a questão dos Skripal e aquela das armas químicas na Síria são abordadas com base na lógica de Highly Likely, assistimos à situação, da qual falamos no início de nosso encontro de hoje, quando alguns procuram substituir as leis internacionais pelas regras que só lhes convêm e fazem os outros acreditar nisso.
Maria Zakharova: Se permitem, levando em conta que aqui foi lida uma citação não correta de Serguei Riabkov, vou citar o que ele disse, porque no caso contrário daremos um motivo para interpretações erradas.
Serguei Lavrov: Para mentiras, falando em outras palavras.
Maria Zakharova: Em 10 de janeiro do ano em curso, Serguei Riabkov disse em Tóquio literalmente o seguinte, vou citar: “Sou profundamente convencido de que é impossível tentar ganhar pontos políticos, aproveitando esta terrível tragédia humana. É necessário permitir que os especialistas analisem a situação e tirem determinadas conclusões e não é digno, no mínimo, começar certos jogos”. Nas suas palavras, volto a citar diretamente: “Não há quaisquer argumentos para lançar declarações gritantes nesta etapa”. Fim da citação.
Pergunta: Dentro de alguns dias restará apenas um ano até terminar o prazo da vigência do START III. O Presidente Vladimir Putin e o Sr. dizem que do outro lado do Atlântico não há quaisquer sinais e não se entende se este acordo será prorrogado ou não. Mas tudo está a mudar. Possivelmente, a Rússia envia com cada vez maior insistência sinais a Washington de que chegou a altura de dedicar-se a este problema?
Serguei Lavrov: Sim, discuti isso ainda na altura da primeira visita a Washington em 2017 e agora em dezembro de 2019. Ontem, o Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Riabkov, também discutiu essa questão com o Vice-Secretário de Estado dos EUA, G.Ford. Os americanos não dão resposta definitiva e tentam “suspender” tudo. “Suspendendo”, introduzem constantemente o tema da participação da República Popular da China nestas conversações, embora nós explicássemos reiteradas vezes a nossa posição. O Presidente da Rússia declarou muitas vezes: se houver um consentimento de todos os participantes de concordar com um certo processo negocial multilateral, a nossa parte também irá participar dele. Mas a República Popular da China declarou oficialmente reiteradas vezes que não participará de tais conversações, explicando isso que a estrutura das forças nucleares da China se distingue radicalmente das forças nucleares dos EUA e da Federação da Rússia. Temos declarado que respeitámos esta posição da China e não iremos obrigar a China a mudá-la. Por que razão e como é possível obrigá-la? Mas os EUA estão convencidos, não sei por que razão que devemos assumir o papel de convencer a China de responder à proposta dos EUA. Considero que esta é uma proposta sem lógica. Os EUA têm canais de diálogo perfeitamente organizados com a China. Acaba de ser concluído um entendimento na área comercial.
Por isso, confirmo mais uma vez: respeitamos plenamente a posição da RPC. Se numa certa etapa uma configuração multilateral das conversações for coordenada, iremos participar. Mas isso demora tempo e, se forem criadas em princípio as condições políticas e se houver disposição para o processo multilateral, as próprias conversações não acontecerão dentro de meses, enquanto a vigência do Acordo sobre os armamentos ofensivos estratégicos expira já dentro de um ano, em fevereiro. O presidente Vladimir Putin propôs ao Presidente Donald Trump e ao Secretário de Estado Mike Pompeo, quando este se encontrava em Sochi em maio, entender-se, pelo menos, sobre a prorrogação deste Acordo, para que exista uma “rede de seguro” para os tempos das tentativas de organizar um novo processo negocial multilateral. Esta é a nossa posição que continua a vigorar. Manifestamo-nos, e o Presidente da Rússia voltou a confirmá-lo em outono durante a reunião com dirigentes das Forças Armadas da Federação da Rússia, pela prorrogação do START III sem quaisquer condições preliminares. Espero que sejamos ouvidos pelos EUA. Temos falado reiteradas vezes sobre isso, mas não vemos sinais precisos e nítidos da sua parte.
Pergunta: Como se sabe, a Rússia irá presidir o Conselho Ártico entre 2021 e 2023. Que trabalhos preparativos se realizam? Qual o papel das nossas regiões árticas, em particular, da Yamal? Como é eficaz, do seu ponto de vista, a nossa agenda de dia ártica?
Serguei Lavrov: Considero que a nossa agenda ártica é bastante intensa por ser o resultado do trabalho coletivo interdepartamental. Reflete os interesses da nossa segurança, navegação, economia, energia, proteção do meio ambiente, direitos dos povos autóctones. Os povos autóctones participam dos trabalhos do Conselho Ártico. Há um formato especial. Eles estão sistematicamente presentes e fazem uso da palavra em sessões ministeriais. Em princípio, o Conselho Ártico é um dos poucos estabelecimentos, até já, livres da ideologização e politização. É uma entidade em que se tomam importantes decisões de cooperação em situações extremas, em particular, Deus nos livre, no caso do derrame de petróleo, sobre a cooperação científica, sobre a regulação da pesca no oceano Glacial Ártico e muitas outras decisões. Não há razões para trazer ao Ártico métodos militares de trabalho. Consideramos erradas neste contexto as tentativas de envolver a OTAN nesta região, em altas latitudes, estamos a favor de retomar a prática anterior, quando houver encontros de chefes de estados-maiores das Forças Armadas dos países do Conselho Ártico exclusivamente para garantir o devido nível de confiança. Propomos agora retomar tais encontros, começando talvez com consultas de peritos.
O Conselho Ártico está a funcionar. A nossa agenda irá assegurar a hereditariedade. Atualmente, o Conselho está dirigido pela Islândia. Estamos em contato regular e continuamos a encontrar-nos com o Ministro. Na véspera de 2021, será formulada agenda concreta que permita continuar harmoniosamente os processos coordenados entre todos os participantes na economia, na esfera da proteção do clima, da defesa do meio ambiente em geral e, naturalmente, da garantia das condições de vida dos povos autóctones de modo confortável ao máximo.
Pergunta: Em primeiro lugar, gostaria de agradecer pessoalmente e em nome da filial da agência de notícias “Sputnik” na Estónia o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, a Embaixada da Rússia na Estónia e pessoalmente a Maria Zakharova pelo apoio e a ajuda prestadas à “Sputnik” da Estónia nos tempos difíceis para nós. Para os colegas na sala faço lembrar que as autoridades da Estónia pretendem abrir casos penais em relação aos funcionários da “Sputnik” na Estónia. Estamos ameaçados de cinco anos de prisão pelo trabalho na MIA “Rossiya Segodniya” (“Rússia Hoje”). Por esta causa, a maioria dos nossos funcionários foi obrigada a cortar, a partir de 1 de janeiro, as relações laborais para evitar a prisão. Espero receber mais ajuda do MNE da Rússia.
Ontem, discutindo a situação horrível de jornalistas russos, o seu colega da Estónia, Ministro dos Negócios Estrangeiros, U.Reinsalu, comunicou que na realidade este fato, vou citar, “está ligado à proteção da defesa da Europa e da liberdade”. Em outras palavras, é necessário meter-nos na prisão, para que a Europa seja livre. Gostaria de ouvir o seu comentário.
Por causa da retórica e, falado em termos brandos, de declarações não diplomáticas de não apenas membros do Governo da Estónia, mas também do Presidente daquele país em relação à Rússia, como o Sr. pensa, se Vladimir Putin considera possível a chegada ao congresso fino-ugrico a ser realizado no ano em curso na Estónia, a convite de K.Kaliulaid? O Sr. recebeu o convite de U.Reinsalu para participar nos festejos dedicados aos 100 anos da assinatura do Tratado de Tartu?
Serguei Lavrov: O Sr. referiu os fatos que não precisam de comentários. Quanto às ações concretas em relação à “Sputnik”, considero que elas são indignantes. No fundo, exigimos e esperamos diariamente por uma reação da OSCE. O Conselho da Europa emitiu uma triada de condenação. Chamamos a atenção do CE para o fato de os seus membros intervirem sobre os temas que contrariam os valores europeus declarados e protegidos. O fato de a União Europeia “engolir” isso e não poder fazer algo, é mais uma mancha lançada sobre a reputação da União Europeia. Há muitas manchas do gênero. Já mencionei as causas da crise ucraniana.
Preocupa-me também que os principais países na União Europeia, em particular, nossos colegas franceses, avançam insistentemente as iniciativas de categorizar os meios de comunicação social e de determinar quem pode ser considerado um meio de comunicação social e quem deve ser determinado como um instrumento de propaganda. Penso que se trata da mesma laia, aquilo que acontece com os senhores na prática e aquilo que hoje se discute em altos escalões do poder.
Quanto às declarações e intervenções estonianas. O meu colega já declarou reiteradas vezes que o tratado da fronteira não será ratificado, porque irá anular o Tratado de Tartu, e que a região de Pechora deverá voltar a ficar sob a jurisdição estoniana. Quanto à Presidente da Estónia, ela pediu uma recepção em Moscou e o Presidente Vladimir Putin encontrou-se com ela. Tenho a impressão que ela valoriza adequadamente a situação, sublinhando que somos vizinhos, temos naturalmente convergências, mas devemos viver como bons vizinhos. Pelos vistos, aconteceu algo a ela depois do regresso à capital. É triste, porque nunca recusámos à cooperação com nossos colegas. A nossa única exigência, tal como do direito internacional, é acabar com o fenómeno vergonhoso de não-cidadania, mais uma mancha na reputação da União Europeia. Aqui há pequenos avanços - pelo menos os recém-nascidos começam a obter a nacionalidade. Mas ainda estamos longe das normas que devem responder aos valores europeus.