Intervenção e respostas do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, em encontro com estudantes e professores da Universidade MGIMO, Moscovo, 23 de março de 2022
Magnífico Reitor,
Caros Amigos, Colegas,
Acho que esta reunião é oportuna. É sempre bom falar com as pessoas que partilham as tuas opiniões para ver qual clima que existe na tua alma mater. Nós amamo-la e valorizamo-la. Continua a desempenhar as suas funções, formando profissionais de alta classe não só para o nosso Ministério como também para muitas outras áreas como a economia, negócios, função pública, meios de comunicação, e muito mais.
Gostaria que a Universidade MGIMO honrasse as tradições e continuasse a ser uma universidade pública que preserva e multiplica as tradições lançadas durante os anos da Grande Guerra Patriótica, desde os primeiros dias da sua existência. Quero agradecer em especial aos dirigentes da Universidade e pessoalmente ao Senhor Reitor Anatoly Torkunov por dispensar grande atenção a precisamente este aspeto do processo letivo. Como podemos ver hoje em dia, as atividades de formação moral dos estudantes são extremamente importantes.
O que se passa atualmente no mundo refere-se não tanto à Ucrânia como às tentativas de dar forma a uma nova ordem internacional. Há cerca de dez anos, os nossos colegas ocidentais passaram a dizer que todos deveriam observar uma "ordem baseada em regras" e não o "direito internacional" (ao que os países tem vindo a ser exortados desde a criação da ONU). Ninguém apresenta estas "regras" a ninguém, porque não existem, criando-se novas regras para cada caso concreto por um grupo reduzido de países ocidentais que as fazem passar pela verdade de última instância. Estamos a assistir à apoteose da crise ucraniana. Não há dúvida de que uma das regras que o Ocidente que implantar visa conter concorrentes. Neste momento, o concorrente é a Rússia, a China será a próxima, segundo foi declarado, (ou ambas o são ao mesmo tempo). O objetivo da "ordem internacional baseada em regras" é fazer ressurgir o mundo unipolar.
A NATO é um " instrumento" obediente e sempre o foi. A União Europeia fala muito da necessidade de criar uma "autonomia estratégica". Esta ideia foi advogada pelo Presidente da França, Emmanuel Macron. Todavia, a UE perdeu a sua autonomia, tendo apenas concretizado, até ao momento, uma modesta resolução sobre a " Bússola Estratégica ", uma força de mobilização e intervenção rápida de até 5.000 militares. Quanto às questões conceptuais, a UE fundiu-se totalmente com a NATO e os EUA. Há anos que está em curso um processo em que países da UE neutros e não alinhados à NATO concedem as suas infraestruturas para exercícios militares. A "Mobilidade Europeia", concebida para facilitar o avanço para o Leste, não faz distinção entre um país membro da NATO e um país neutro. Em todo o caso, tudo obedece às necessidades da Aliança do Atlântico Norte, que tem vindo a expandir-se para o Leste ao longo dos últimos anos (apesar de todos os seus compromissos).
A Aliança ignorou as nossas numerosas exortações a cumprir o que foi acordado de uma vez por todas, como nos parecia, tanto na OSCE como no quadro das relações Rússia-NATO. Refiro-me ao compromisso, segundo o qual ninguém deveria reforçar a sua segurança à custa da segurança de outros. Esta é uma componente-chave da indivisibilidade da segurança que foi formalizada ao mais alto nível em várias cimeiras. Eles disseram-nos que só poderiam dar garantias de segurança jurídicas no seio da NATO e não no âmbito de um "acordo" com a Federação da Rússia. Assim, os países que ainda não aderiram à NATO após o fim do Pacto de Varsóvia deixaram-se cair em tentação e foram puxados para dentro da aliança. O objetivo era conter a Rússia, tal como qualquer outro país que demonstrasse um comportamento independente no cenário internacional. Quanto à Rússia, a Ucrânia foi escolhida como um instrumento para suprimir a autonomia do país. Recorde-se o que Zbigniew Brzezinski disse sobre o que seria a Rússia se tivesse ao seu lado uma Ucrânia amiga e o que seria se a Ucrânia não fosse a sua amiga. Neste último caso, a Rússia seria uma potência regional e não uma grande potência.
Para que a Ucrânia fosse um instrumento eficaz de contenção, ela tinha de se tornar "anti-Rússia", como o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, recentemente afirmou. A Ucrânia estimulou as tendências neonazis, aprovou leis sobre a "descomunização", sobre a "glorificação dos vencedores da Segunda Guerra Mundial" como Shukhevych, Bandera e todos os outros colaboradores que deveriam ter sido submetidos aos Julgamentos de Nuremberga. No entanto, isso não interessava a ninguém. O Ocidente "civilizado" observava-o silencioso e até o estimulava, assim como estimulava o desenvolvimento de estratégias de educação patriótica de cariz nacionalista da juventude e de apoio de Estado às associações de escoteiros. Existe uma organização chamada "Plast" em que Bandera, Shukhevich e outros seguidores seus foram treinados para os combates e receberam formação ideológica. Notabilizou-se também por agredir veteranos da Grande Guerra Pátria e tirar Fitas Georgianas no dia 9 de Maio, por ter contribuído para a divisão da Igreja Ortodoxa Russa e por ter criado uma quase-igreja com a ajuda dos norte-americanos e do Patriarcado de Constantinopla. Tudo veio a calhar.
Existe um termo muito utilizado atualmente: "cultura do cancelamento". Acredito que tudo isto é uma cultura do cancelamento da história partilhada, parte de uma contenção agressiva da Federação da Rússia. Ninguém tentou sequer, em nenhum momento, seguir as excelentes palavras proferidas em 1991, durante uma reunião especial da OSCE em Moscovo em que liberdades como o acesso à informação, a qualquer informação, tanto em casa como no estrangeiro, foram proclamadas. "Somos todos um só, temos um destino comum, um lar europeu comum, um espaço comum até aos Urais e depois até Vladivostok". Ao mesmo tempo, estava a ser formulada uma política para a Ucrânia destinada a afastá-la, tanto quanto possível, da Federação da Rússia. Em 2003, durante a campanha eleitoral presidencial na Ucrânia, altos responsáveis da UE, ministros dos negócios estrangeiros e membros da UE disseram publicamente, interferindo-se na campanha eleitoral, que os ucranianos tinham de escolher entre estar com a Europa ou estar com a Rússia. Foi assim que a questão foi colocada. Já naquela altura, a escolha foi imposta. Quando a situação se virou contra a UE na segunda volta da subsequente campanha eleitoral, eles obrigaram o Tribunal Constitucional da Ucrânia a decidir sobre a terceira volta, em violação da Constituição ucraniana, tendo-se obtido o resultado desejado.
A mentalidade orientada para criar uma "anti-Rússia" foi formada ao longo de muitos anos. Como consequência, em 2013, altura em que a Ucrânia foi novamente confrontada com uma escolha quando estava a negociar o Acordo de Associação com a UE, dissemos-lhe que estava a negociar a hipótese de zerar tarifas com a UE, enquanto a Rússia tinha tarifas zero com a Ucrânia no âmbito da zona de livre comércio da CEI e que tínhamos uma "barreira protecionista" com a UE obtida numa dura luta durante 17 anos de negociações de adesão à OMC. Dissemos honestamente ao lado ucraniano que, se tivéssemos tarifas zero com a Ucrânia e a Ucrânia tivesse tarifas zero com a UE, então todos os nossos acordos com a UE correriam riscos graves de ser violados. Sugerimos uma solução simples: deveríamos sentar-nos os três (Rússia, Ucrânia e a UE). No entanto, Bruxelas disse-nos arrogantemente que não era da nossa conta, argumentando que eles não se interferiam nas nossas relações comerciais com a China, embora a relação comercial entre a Rússia e a Ucrânia movimentasse naquela altura valores muito altos. Demonstraram esta atitude arrogante. Isso aconteceu em 2013.
Depois, o Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, apercebeu-se de que era necessário procurar compromissos para não perder o mercado russo (caso contrário seríamos obrigados a defender-nos contra tarifas zero da Europa). Ele pediu à UE que adiasse a assinatura do acordo. Foi este o motivo por que as pessoas foram protestar na praça de Maidan. Viktor Yanukovych estava a pensar nos interesses económicos do seu país, enquanto a UE e aqueles que o "incitavam" estavam a pensar em como conter a Rússia e travar o seu desenvolvimento. Como resultado, os protestos na praça Maidan redundaram num banho de sangue de proporções épicas. A seguir, houve negociações, garantias do acordo assinado pela Alemanha, França e Polónia e um golpe de Estado na manhã seguinte. Posteriormente, perguntámos aos "garantes" da Europa: porque isso aconteceu? Porque não conseguiram persuadir os seus protegidos a cumprir o que havia sido acordado, tanto mais que se tratava de realizar urgentemente novas eleições? Se as eleições tivessem sido realizadas, as mudanças teriam ocorrido de qualquer maneira. Mais tarde, eles passaram a chamar aos acontecimentos de Maidan "parte do processo democrático".
Gostaria de recordar que, em 2014, houve um golpe de Estado no Iémen, cujo Presidente, Mansur Al-Hadi, fugiu e é considerado ainda hoje por toda a humanidade progressista como Presidente iemenita e que é exortado a regressar ao seu país. Este assunto é negociado a sério. A Ucrânia é uma história diferente. Aqueles que chegaram ao poder não são os que são contra os amigos ocidentais e pela amizade com a Rússia, mas os que querem ser um "instrumento" obediente nas mãos do Ocidente. Os primeiros "instintos" do novo governo ucraniano formado pelos golpistas foram acabar imediatamente com o estatuto da língua russa que estava consagrado nas leis da Ucrânia e expulsar os russos da Crimeia. Os golpistas enviaram à Crimeia unidades paramilitares para tomar de assalto o edifício do parlamento local. Lembram-se do aconteceu depois.
Durante todos estes anos, temos criticado os nossos colegas ocidentais por terem permitido que um golpe de Estado sangrento ocorresse, desafiando todos os "valores" europeus. Eles acusaram-nos de termos "anexado" a Crimeia. Por outras palavras, eles anulam tudo o que havia acontecido antes do referendo. Esta é a sua cultura. Retratam-se num diálogo daquilo que os denuncia: "puseram no lixo" os acordos, não se ralam nada com as garantias, a UE, o golpe de Estado, o banho de sangue. O referendo na Crimeia foi realizado porque os russos ficaram ameaçados de morte. Mas os ocidentais não querem saber o que esteve na origem do referendo a que eles chamam "anexação". Há muitos exemplos como este na história.
Encaram de forma semelhante os acontecimentos atuais, dando-os como iniciados no dia 24 de fevereiro deste ano e não em novembro do ano passado, altura em que o Presidente da Rússia apresentou iniciativas sobre a segurança europeia, não em dezembro de 2021, altura em que formulámos projetos de tratados para os norte-americanos e a NATO, não nas reuniões mantidas entre as delegações da Rússia e dos EUA e da Rússia e da NATO. Eles não quiseram codificar e tornar juridicamente vinculativas as garantias de indivisibilidade da segurança para que nenhum país pudesse reforçar a sua segurança à custa da segurança de outros. Tudo isto passou ao esquecimento.
O governo ucraniano concentrou 120.000 militares na linha de contacto, intensificou os bombardeamentos e passou a falar em voz alta sobre um Plano B. Como se verifica agora, o Plano B existia mesmo. Temos em nosso poder documentos que confirmam que os nossos receios de que os ucranianos estivessem prestes a iniciar uma agressão militar contra a Região de Donbass tinham razões de ser. Já ninguém se lembra disto.
Os ocidentais dizem que a Rússia "invadiu" a Ucrânia a 24 de fevereiro deste ano. Este é um jogo de palavras pelo qual o Ocidente é famoso. Aplica uma cultura da marginalização dos períodos da história inconvenientes, inclusive os mais recentes, como neste caso.
Dissemos aos nossos colegas que, após o golpe de Estado de fevereiro de 2014, Dmitri Yarosh e outros neonazis haviam declarado que os russos jamais falariam ucraniano e jamais pensariam à ucraniana, jamais homenageariam Shukhevych e Bandera, pelo que os russos deveriam ser expulsos da Crimeia. Os ocidentais disseram-nos que esses eram marginais e não o povo ucraniano. Durante a campanha eleitoral, Vladimir Zelensky jurou a pés juntos que não podia ser neonazi e que não podia prejudicar os russos porque ele era judeu e a sua língua materna era o russo, dizia que isto nunca aconteceria.
Em primeiro lugar, sob Zelensky, todas as possibilidades para a língua russa foram definitivamente eliminadas. Vamos agora exigir que os respetivos atos legislativos sejam revogados. Em segundo lugar, sob ele, a ideologia e a prática do neonazismo ganharam ímpeto. Falando da sua atitude para com os russos, em setembro passado, ele chamou "espécimes" às pessoas que viviam na Região de Donbass, dizendo que nem todas as pessoas que ali viviam eram seres humanos, fazendo assim companhia a Arseniy Yatsenyuk que havia chamado aos habitantes da Região de Donbass "não-humanos", enquanto Primeiro-Ministro da Ucrânia em 2014. Os termos "não-humanos", "espécimes" são provavelmente deslizes freudianos. Não obstante, ambos eram considerados dignos de um aperto de mão, um era Primeiro-Ministro, o outro é Presidente. Aparentemente, ambos estavam "sóbrios" ao dizê-lo, porque todos sabem que "diz-se bêbado o que se pensa sóbrio". Mais tarde, o Presidente Vladimir Zelensky disse: quem se considera russo e quer ser russo, vivendo na Ucrânia, deve ir-se embora para a Rússia. O que estas declarações de Vladimir Zelensky têm de diferente das de Dmitri Yarosh sobre a necessidade de expulsar os russos da Crimeia? Nada. Ninguém repara nisso.
Como se costuma dizer, "as máscaras caíram". Agora não é só a Ucrânia que se utiliza para prejudicar, humilhar e destruir tudo o que é russo. Todo o mundo, inclusive o Ocidente iluminado, recebeu a ordem: "ataca!". As pessoas estão a ser "atacadas" pela simples razão de serem de nacionalidade russa ou de serem tomadas por russas. Já não menciono o que se passa no desporto com os nossos atletas paralímpicos - é um escárnio, um veredicto para a civilização ocidental. Não sei como irão "lavar-se" perante a história. Certamente, eles irão atribuir a culpa à "agressão", à "invasão". Os factos acima mencionados são uma pequena fracção de tudo o que precedeu as nossas decisões forçadas. O seu objetivo é salvar a vida de pessoas que foram bombardeadas durante oito anos, impedir a instalação na Ucrânia de infraestruturas militares que nos ameacem, o que pressupõe a não-adesão deste país à NATO, e desnazificar o país. Estas exigências são indispensáveis.
Os políticos ucranianos tentam fazer crer que não têm tais leis, que têm tudo ao "estilo europeu". Não é verdade, têm. Os textos das suas leis estão disponíveis na Internet. A Ucrânia nega tournées artísticas a Valeri Gergiev e a Anna Netrebko, tirando das disciplinas escolares e universitárias as referências a Fiodor Dostoievski e Aleksandr Solzhenitsyn. São os parceiros que temos.
Penso que este Sabá sem precedentes reflete a sua raiva por causa do fracasso do projeto "Anti-Rússia". Para eles, tudo calha, todos os meios são bons. Tudo se indulgencia a quem se diz russófobo. Nos últimos oito anos, o governo ucraniano tem recebido a remissão do que tem vindo a fazer. Agora a permissividade está a ser concedida a todo o "mundo ocidental".
Sempre houve sanções. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, falou sobre isto. A dimensão a que chegaram hoje é de surpreender. Não pensava que o Ocidente pudesse chegar a isso. Falando a sério, tudo isto é feito para tentar remover (como eles esperam) o "obstáculo", ou seja, a Rússia, no caminho de um mundo unipolar. Costumavam sublinhar constantemente ao impor sanções que eles não eram contra pessoas comuns, mas contra regimes, líderes, para que estes se sentissem na sua pele como sofreriam se não cooperassem com eles. Diziam que protegiam sempre as pessoas comuns. Nada disso. Tudo isto foi relegado há muito ao esquecimento. Estão abertamente a bater e a declará-lo. O Ministro da Economia e Finanças da França, Bruno Le Maire, declara publicamente que quer uma guerra económica total. Não voz faz lembrar nada? A "Totaler Krieg", como os alemães costumavam dizer, começando a Segunda Guerra Mundial. A economia russa deve ser "despedaçada", etc.
Não se trata aqui da Ucrânia, mas de uma ordem mundial em que os EUA querem ser o único soberano e dominar. Dito de modo geral, a Doutrina Monroe está a adquirir uma projeção global, seja qual for o nome que lhe se dá agora. Na Ásia chama-se a Estratégia Indo-Pacífico, sendo o seu objetivo declarado conter a China. Em outras regiões pode ter nomes diferentes. Já falei sobre a Europa, que pode esquecer a sua "autonomia estratégica". Consideramos positivo o empenho do Presidente francês, Emmanuel Macron, em defendê-la. Todavia, os outros aceitaram que não tenham nenhuma "autonomia estratégica". Podem adotar documentos estilisticamente bonitos, uma "bússola estratégica". Todavia, na prática, a Europa não é um player independente. Que a Alemanha está agora a defender por todos os meios o regime de Kiev, incluindo todos os seus componentes neonazis, faz-nos pensar a sério em muitas coisas. Isso quando houve (recentemente do ponto de vista histórico) uma reconciliação entre os alemães e os russos. Muitas pessoas inteligentes na Alemanha compreendem isso.
Durante todas estas perturbações, nunca desistimos do diálogo: oferecemo-nos para dialogar com a NATO, os EUA e a União Europeia.
Quando, no meio da nossa operação militar especial, a liderança ucraniana propôs-nos entabular negociações, aceitámos a sua proposta. O Presidente Vladimir Putin deu a ordem, e as negociações começaram. As negociações seguem com dificuldades. O lado ucraniano, embora tenha expressado compreensão das coisas a serem acordadas durante as negociações, está constantemente a mudar a sua posição, recusando-se às suas próprias propostas. É difícil livrar-nos da sensação de que os seus colegas norte-americanos "seguram os ucranianos pela mão". Se lermos os nossos analistas políticos e ocidentais, veremos que não é do interesse dos norte-americanos que este processo termine rapidamente. Eles esperam continuar a encher a Ucrânia de armas, fazendo declarações provocatórias sobre a sua intenção de transferir para a Ucrânia os aviões soviéticos MIG que estão atualmente em posse de alguns países leste-europeus, Stingers, etc. Estas armas representam uma grande ameaça, podendo espalhar-se posteriormente por toda a Europa. Ao que parece, os norte-americanos querem manter-nos em combate por tanto tempo quanto possível. Temos a saúde, a experiência, o espírito e a vontade de defender o que estamos a defender agora. Saberemos garantir a segurança da Federação da Rússia e uma vida condigna àqueles que quiserem viver na Ucrânia e se considerarem representantes da cultura russa em todas as suas manifestações, como sempre foi nos países eslavos vizinhos.
Tentar retratar-nos como isolados ou autoisolados é uma ação com meios impróprios. Temos muitos amigos. Calculem quantos países anunciaram sanções e quantos se recusaram a fazê-lo, apesar da enorme pressão (que não condiz com um país que reivindica o título de grande potência) exercida pelos EUA. Eles não hesitam em dizer que exigiram algo à China, Índia, Turquia. Não se dão conta de que estão a humilhar estas grandes civilizações, grandes potências com mil anos de história? São as maneiras que têm. "A corrida ao ouro" continua.
Pergunta: O senhor não acha que as negociações com o governo de Vladimir Zelenski é um beco sem saída? Não acha que um eventual acordo de paz com o atual governo ucraniano será um novo "acordo de Khasavyurt" que resultará inevitavelmente num novo conflito?
Serguei Lavrov: Deve ter assistido ao programa de Vladimir Solovyov. Muitos gostariam que fosse um impasse para dizer que a Rússia ficou "atolada". As tentativas de procrastinar o processo (o papel decisivo nisso pertence certamente aos norte-americanos) visam dramatizar a situação, colocar Vladimir Zelensky, vestido de uma T-shirt khaki, perante os parlamentos mundiais para fazer discursos de "fazer chorar as pedras" e exigir, em resultado, que a NATO se interfira.
Os nossos colegas polacos já disseram que, em breve, haverá uma cimeira da NATO e que é necessário enviar uma força de paz à Ucrânia. Espero que eles compreendam do que estão a falar. Neste caso, teremos um confronto direto entre as forças armadas russas e as da NATO, embora eles tenham dito que isso nunca deve acontecer em princípio. Os polacos são conhecidos pelos seus "lances não padronizados" que provocam normalmente um grande problema. Não excluo que, quando falam do envio de uma força de paz, se refiram à sua fronteira com o oeste da Ucrânia. Talvez queiram colocar ali uma força de paz para instalar em Lviv a sua sede e lá permanecer. Porque não? Esta ideia já passou pelas suas cabeças. Algo semelhante já teve lugar no passado. Já se fala não só de uma força de paz. Os países bálticos dizem que também poderiam enviar pequenos contingentes de tropas para "defender" a Ucrânia.
Temos de manter a compostura. A nossa posição é simples. Deixámos claras as nossas atitudes para com a negociação. Estão "no papel". Alguns europeus querem conhecê-las: o Presidente francês Emmanuel Macron e o Chanceler alemão Olaf Scholz estão em contacto regular com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin; o Primeiro-Ministro israelita, Naftali Bennett, também lhe telefonou. Estamos em contacto com os líderes da China e da Índia. Alguns países ocidentais também se oferecem para mediar. Não somos contra, mas temos linhas vermelhas absolutamente claras de que temos vindo a falar há anos. Neste momento, as conversas não são mais suficientes, tendo-se em conta a experiência dos acordos de Minsk que foram ajustados e aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU. Isto não impediu o regime de Kiev de ignorar e sabotar todos os seus compromissos, com a complacência dos garantes do formato Normandia, a França e a Alemanha. Esta também é uma "cultura do cancelamento". Dizem estar prontos para implementar os acordos de Minsk, só que, primeiro, querem que lhes permitam estabelecer o seu controlo sobre a fronteira. Depois prometem realizar eleições, conceder anistia e estabelecer laços económicos com a Região de Donbass.
Os acordos, porém, diziam o contrário, obrigando o lado ucraniano a iniciar com a concessão de um estatuto especial à Região de Donbass ao que deveriam seguir-se eleições e a concessão da anistia. Só quando tudo isso fosse realizado e aprovado pela OSCE, o lado ucraniano poderia estabelecer o seu controlo sobre a fronteira. Os ucranianos queriam (sob o pretexto de implementar os acordos de Minsk) que a fronteira fosse colocada sob o seu controlo e que ali fossem instalados 20.000 soldados de paz da ONU. É exatamente como a Polónia quer agora estabelecer o seu o controlo sobre a parte ocidental da Ucrânia e colocar ali uma "administração civil" em vez de eleições. Dizem que são "a favor" dos acordos de Minsk. Tudo está claramente escrito nos acordos de Minsk. Não podem ser lidos ambiguamente, mas eles conseguiram fazê-lo. Por isso, as coisas de que o Presidente Vladimir Putin falou devem ser tão firmes como se fossem feitas em betão armado e ter garantias tão fortes que ninguém tente sequer violar os compromissos assumidos.
Pergunta: Neste momento, verifica-se uma ineficiência nas três principais vertentes do regime de não proliferação de ADM e uma falta de reação adequada por parte das organizações responsáveis por supervisionar estes processos. Quanto às armas químicas: a Rússia já as destruiu (embora também fora do quadro da convenção de 1993), os EUA ainda não o fizeram; quanto às armas biológicas, registamos indícios de que estão a ser desenvolvidas na Ucrânia, para não mencionar a investigação duvidosa em Fort Detrick, nos EUA. Quanto à vertente de armas nucleares (a mais importante vertente), o lado ucraniano afirma abertamente que tem a intenção de criá-las e (como descobrimos) confirma as suas palavras com atos práticos. Que medidas devem ser tomadas para que os regimes de não proliferação de armas de destruição maciça funcionem devidamente?
Serguei Lavrov: Boa pergunta. Este problema irá piorar de dia para dia. Tomemos a área de não proliferação nuclear que não provoca contradições intransponíveis. Não podemos convocar uma Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear (que se realiza de cinco em cinco anos). Não conseguimos fazê-lo em 2020 devido à pandemia, foi adiada para 2021, esse ano também não foi muito bom. Agora todas as restrições parecem ter sido levantadas. Conferências como esta devem ser realizadas em regime presencial. Há demasiadas coisas de que as negociações dependem, os compromissos não se alcançam por videoconferência.
No entanto, há um problema. Foi decidido que a reunião deveria ter lugar na data fixada. Tem de haver consenso antes que esta decisão seja aprovada. Pedimos aos norte-americanos que nos confirmassem oficialmente que iriam conceder vistos a todos os integrantes da delegação russa que seriam enviados para este evento internacional, sem exceção. Eles enviaram-nos uma "carta" com algumas artimanhas que, porém, aceitámos. Agora estamos a verificar se eles estão prontos para cumprir os seus compromissos. Não tenho dúvidas de que voltarão a tentar inventar pretextos para não conceder vistos aos nossos delegados. Os nossos negociadores são muito competentes, contrariamente a muitos representantes norte-americanos que, de um modo geral, se empenham em demagogia nestas negociações enquanto nós apresentamos sempre factos. Eles tentarão retirar da nossa delegação os nossos peritos mais competentes.
O mesmo tema está agora a "patentear-se" na área de armas biológicas. Os documentos encontrados trazem as assinaturas de funcionários da Agência de Redução de Ameaças Militares dos EUA. Este é o seu principal instrumento para a realização de atividades biológicas para fins militares em todo o mundo. Dizem-nos que tudo isto não corresponde à verdade, em vez de nos explicar simplesmente o que os militares dos EUA fizeram em cerca de trinta laboratórios instalados na Ucrânia. Os EUA têm laboratórios biológicos em todo o mundo. Estamos mais preocupados com a sua presença e a sua criação nas ex-repúblicas soviéticas, na Ásia Central.
Os nossos amigos cazaques e nós estamos a concluir a elaboração de um Memorando de cooperação na área da segurança biológica para que todas as atividades nos nossos países e no âmbito OTSC sejam transparentes. Levaremos este processo ao fim sem falta. Já o fizemos em cooperação com os nossos colegas tajiques e usbeques, e estamos a concluir este processo com os nossos colegas arménios. É um problema sério. O facto de o Pentágono estar interessado em laboratórios ex-soviéticos, ter investido recursos financeiros na sua modernização a fim de criar ali novas instalações, é bastante curioso e requer esclarecimento. Espero que o Cazaquistão e nós resolvamos definitivamente estas questões e lancemos um processo semelhante no âmbito da OTSC. Já foi tomada uma decisão de princípio.
Falando de ameaças biológicas, o Cazaquistão propôs a criação de uma Agência de Segurança Biológica no âmbito do Conselho de Segurança da ONU para ajudar a implementar a Convenção sobre a Proibição de Armas Biológicas e Toxínicas. O detalhe é que, desde 2001, a Rússia luta para criar um mecanismo de verificação ao abrigo desta Convenção. O único país a opor-se à nossa iniciativa são os EUA. Eles não querem mostrar a ninguém o que fazem, podendo desenvolver secretamente, no âmbito de acordos bilaterais, programas e projetos no seu interesse, sem dizer nada a ninguém.
Hoje já estão a falar abertamente sobre os riscos decorrentes daquilo que foi posto a descoberto. O terceiro aspeto que o senhor mencionou refere-se às armas químicas. Ao contrário da Convenção sobre armas biológicas, a Convenção sobre armas químicas tinha, desde o início, um organismo de controlo e verificação que funcionava da seguinte forma.
Se um país tiver uma suspeita de uso de um agente químico, deve solicitar ao Secretariado Técnico da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) o envio de peritos para recolher amostras e levá-las a um laboratório certificado onde estas devem ser submetidas a uma análise cujos resultados devem ser divulgados publicamente. "Confrontámos com a lista de substâncias proibidas o agente químico apresentado por um país e concluímos que este último consta da lista" ou, vice-versa, "esta de fora da lista". Estas funções estão estipuladas na Convenção. No entanto, o Ocidente, empenhado em impor as suas regras no lugar do direito internacional, pressionou os dirigentes do Secretariado Técnico da OPAQ (dirigido por um espanhol e um francês) e conferiu-lhes a função de apuramento de culpados. Isto não constava da Convenção. Todas as emendas à Convenção devem ser aprovadas por consenso. Nada disto foi feito, nenhuma emenda foi feita. Eles apenas submeteram esta questão à votação. Dos 190 países, 85 votaram a favor (uma minoria), os restantes votaram contra ou abstiveram-se. Manipulando os dirigentes do Secretariado Técnico, eles criaram um "mecanismo de investigação", em violação flagrante de todas as regras das convenções internacionais. Uma convenção não pode ser alterada por uma votação, competindo só ao Conselho de Segurança da ONU apurar a culpa.
Todas as três áreas-chave de não proliferação têm problemas. Estamos preocupados com isto. Exortamos todos os países a acabar com as divergências e contradições e a "remover" as coisas que violam o direito internacional e as convenções. No entanto, dada a obsessão do Ocidente em fazer valer as "suas regras", não será fácil subordinar todos os outros e defender a natureza universal e justa destes instrumentos, incluindo o trabalho justo dos mecanismos.
Pergunta: Dadas as mudanças em curso e o agravamento da situação não só na Ucrânia, mas também em algumas outras ex-repúblicas soviéticas, que mudanças estão previstas na estratégia da Federação da Rússia para os países pós-soviéticos?
Serguei Lavrov: Boa pergunta. Esta pergunta é difícil de responder com uma palavra só. As mudanças precisam de ser feitas constantemente. Trata-se de organismos vivos, a CEI, a OTSC e a União Económica Eurasiática que está apenas a começar a "ganhar velocidade". Não esqueçamos o Estado-União Rússia-Bielorrússia, no âmbito do qual foram desenvolvidos e aprovados 28 programas que estão agora a ser transformados em atos práticos de efeito direto.
Os norte-americanos (acompanhados pela Europa) utilizam uma linguagem de ultimatos nos seus contactos com cada país, dizendo-lhe que, se apoiar agora a Rússia e continuar os seus contactos económicos com ela para diminuir o impacto das nossas sanções, arrepender-se-á. Utilizam a mesma linguagem grosseira nos seus contactos com os nossos aliados, vizinhos e amigos mais próximos. Claro que podem afetar as cadeias logísticas práticas, como já está a acontecer por causa das sanções impostas à Federação da Rússia. Agora querem bloquear o tráfego marítimo. Pelo menos, os polacos estão agora a dinamizar este tema.
A União Económica Eurasiática tem mecanismos a nível de primeiros-ministros e vice-primeiros-ministros. Eles estão constantemente a fazer exatamente estas coisas para se defenderem de um ataque tão feroz aos nossos interesses e aos valores liberais de que tanto se vangloriaram. Onde é que estão a liberdade de escolha, concorrência de mercado, economia livre, presunção de inocência, inviolabilidade da propriedade privada? Tudo isso foi destruído de uma só vez nas relações com a Rússia (nem sei se alguns "valores" ainda lhes restam). Depois, porém, começaram a dizer que isso não era para sempre. Quando a Rússia "se emendar", então veremos, dizem eles. Creio que devemos "emendar-nos" na outra direção. Temos de fazer com que nunca mais fiquemos numa situação em que nos faltem alguns componentes, se um dos nossos parceiros ocidentais, detentor de uma moeda de reserva, acordar com o pé errado. Por exemplo, a localização no caso das colheitadeiras já atingiu 70%, devendo, contudo, atingir 100%. Eles impõem sanções ao fornecimento de peças de reposição para aviões, tiram-nos aviões. Isso está diretamente ligado à saúde das pessoas, às ameaças às suas vidas. Eles não se importam. E as reservas do Banco Central? Ninguém daqueles que fizeram previsões poderia imaginar quais sanções que o Ocidente poderia impor. É roubo. Isso nos fez lembrar a época de "corrida ao ouro" e de saloons de cowboys onde alguém tem de ser sempre o chefe.
Posso garantir-vos: tanto o Governo como o Presidente estão com as atenções voltadas para esta questão. Os trabalhos no âmbito da União Económica Eurasiática estão em andamento. Os países da CEI têm uma área de livre comércio. Estas questões estão também a ser abordadas. Tudo faremos para que o nosso avanço rumo à integração não fique prejudicado.
Pergunta: Há apenas algumas semanas, o Presidente dos EUA, Joseph Biden, promulgou uma lei que estabelece a proibição de representar Taiwan e as suas ilhas adjacentes como parte do território da China, o que vai contra o princípio de "uma só China". Será possível uma escalada da crise em torno de Taiwan no meio da atual situação no mundo e no contexto destes passos dos EUA?
Serguei Lavrov: Não comentarei cores usadas em Washington para representar elementos do mapa nem os atos promulgados pelo Presidente norte-americano, Joseph Biden. Só posso confiar num comentário oficial feito após a recente conversa por videoconferência entre o Presidente Joseph Biden e o Presidente da China, Xi Jinping. De acordo com o lado chinês, Pequim assinalou a inadmissibilidade de os EUA se retratarem da sua posição outrora declarada a favor de uma só China. O comunicado divulgado pelos EUA também dizia que Joseph Biden havia reafirmado a política dos EUA para Taiwan. Eu não gostaria de fazer especulações adicionais porque as especulações a este respeito não faltam, o senhor deve estar a ler tudo isso.
Sobre se a China poderia agora aproveitar a situação e atacar Taiwan. Neste momento, fala-se muito. Na Transcaucásia alguém também poderia aproveitar a situação, porque todas as atenções estão agora voltadas para a Ucrânia e a Rússia. Também poderíamos especular sobre isto. Os cientistas políticos estão a fazê-lo. Prefiro proceder do facto de estarmos a fazer um trabalho que já está "sobremaduro". Este trabalho deve clarificar completamente as coisas nas nossas relações com o mundo exterior e deixar bem claro que nunca mais dependeremos do Ocidente no futuro. Se eles quiserem cooperar connosco, não rejeitaremos a sua proposta, devendo, contudo, haver um equilíbrio de interesses. Não iremos abrir-lhes novamente as portas para entrarem em sectores-chave da nossa economia que têm importância vital para a saúde e segurança da nossa população e do nosso país. O nosso país é grande, tem muitos recursos e "cérebros". Temos mais do que suficiente para sermos autossuficientes e estarmos abertos ao mundo exterior para projetos mutuamente vantajosos.
Pergunta: Muitos peritos dizem que a Rússia está a virar-se para o Leste, particularmente nos assuntos económicos, porque o Ocidente, tendo imposto sanções devido à operação militar especial na Ucrânia, decidiu construir uma nova "cortina de ferro" nas relações com a Rússia. Com que países não europeus a Rússia irá desenvolver relações políticas e económicas em primeiro lugar? Existe uma perspetiva de a cooperação estratégica russo-chinesa resultar numa aliança militar ou política?
Serguei Lavrov: O nosso país fica situado no continente eurasiático, ocupando duas partes do mundo. Como resultado, a águia russa é bicéfala. Muitos estão agora curiosos para ver a atitude do Ocidente para com a Rússia nas épocas anteriores. Vi algumas caricaturas publicadas em jornais no último quartel do século XIX. Uma delas representa um representante do Ocidente, provavelmente do Reino Unido, a cortar com a sua espada uma das cabeças da águia russa. À primeira vista, é uma caricatura, uma piada que, porém, traz uma alusão.
Quanto à nossa viragem para a "esquerda" e a "direita". Depois de o Estado russo ter adquirido a sua atual forma, temos sempre dito (isso está estipulado no nosso Conceito de Política Externa) que nos dispomos a cooperar com todos os que estiverem interessados em cooperar connosco em pé de igualdade, vantagem mútua, respeito mútuo e equilíbrio de interesses e assim por diante.
Durante muito tempo, as nossas trocas comerciais com a Europa apresentaram valores recordes: 430 mil milhões de dólares. Entre 2010 e 2012, este foi exatamente o caso. A Europa, humilhada pelos ultrarradicais ucranianos que "puseram no lixo" as suas garantias, tentou compensar a sua impotência, culpando-nos por tudo e começando a fazer a contagem do tempo desta história trágica a partir do referendo na Crimeia, tendo-lhe chamado "anexação", e não a partir dos seus erros, que levaram ao que temos agora na Ucrânia.
Fecharam todos os canais para contactos, deixaram de realizar cimeiras bianuais, as reuniões anuais do governo russo com a Comissão Europeia. Fecharam 20 diálogos sectoriais, suspenderam os trabalhos de construção de quatro espaços comuns (tínhamos quatro mapas da estrada), de liberalização do regime de vistos e muito mais. Quando um tenta equilibrar-se e o outro lhe tira o apoio, ele vira-se objetivamente para o outro lado. A relação comercial entre a Rússia e a China movimentou, em 2021, 141 mil milhões de dólares. É um recorde, um aumento de 35%. Existe também uma relação no seio da União Económica Eurasiática. Foi assinado um acordo, harmonizando-se os processos de integração entre a UEE e a iniciativa chinesa "Uma Faixa, Uma Rota".
Temos a OCX que trata de questões infraestruturais, económicas e comerciais e da segurança.
Temos o BRICS, que criou um novo Banco de Desenvolvimento. Está a trabalhar ativamente, inclusive no atual período difícil. Temos, finalmente, o RIC (Rússia, Índia e China). Não nos esqueçamos disso. É um protótipo do BRICS, mas o RIC ainda existe. Não só os ministros dos negócios estrangeiros se reúnem, como também os ministros dos transportes. Os três países estão ligados geograficamente. Muitos projetos promissores de oleodutos e de infraestruturas de transporte podem ser implementados aqui. Os trabalhos neste sentido estão a ser desenvolvidos. Se a Europa voltar à razão, não iremos fechar a porta, mas ela deve entender que não dependeremos de ninguém.
A Europa revelou-se como parceiro desconfiável. Vamos tornar-nos mais fortes com a ajuda da UEE, da OCX, do BRICS, e de outros mecanismos. Consideraremos projetos que nos serão oferecidos para cooperar a partir de posições completamente diferentes.
Pergunta: Podemos dizer que, no contexto da crise internacional e das relações internacionais, a ONU continua a ser um fórum eficaz para a resolução de conflitos e ameaças emergentes, especialmente no meio das declarações insensatas sobre a necessidade de retirar a Rússia do Conselho de Segurança?
Serguei Lavrov: Esta é uma questão importante. Quando dizemos que defendemos a democratização das relações internacionais e a formação de uma ordem mundial mais justa e policêntrica, sugerimos (como muitos pensavam num determinado momento) não substituir a ONU por uma outra estrutura e voltar aos primórdios. A igualdade soberana dos Estados está consagrada na Carta da Organização. Os norte-americanos têm violado de forma flagrante este princípio. É evidente que os países são diferentes. Alguns são pequenos e tem dificuldades em ser independentes. No entanto, o princípio da igualdade soberana dos Estados deve ser respeitado por todos, pelo menos na medida em que permite a cada membro da ONU obter factos e determinar a sua posição. Os norte-americanos (não estou a falar de países pequenos) estão a exercer pressão sobre países grandes e a ameaçar romper relações comerciais com eles e impor-lhes novas sanções, se não votarem na ONU da forma que os norte-americanos querem.
Recentemente, a Assembleia Geral da ONU votou a questão da Ucrânia.145 países votaram a favor de uma resolução em condenação à Rússia. Destes, mais de 100 não impuseram nem imporão quaisquer sanções contra nós. Mas era propagandisticamente importante mostrar que a Rússia estava a ser "isolada". Isto é o que os norte-americanos estão a fazer. Penso que este comportamento, bem como os métodos de luta "abaixo da cintura", não condizem com uma grande potência. Deixem-me explicar o que quero dizer. Conheço muita gente na ONU - trabalhei lá durante muito tempo. Recentemente, quando visitei, conversei com alguns dos meus colegas. O Representante Permanente de um ou outro país junto da ONU é muito frequentemente pressionado a votar da forma que os EUA querem. Lembram-lhe que tem uma conta num banco norte-americano, que os seus filhos estudam numa universidade norte-americana. Para eles, todos os meios calham.
Não há necessidade de tentar destruir a ONU. Fazem-no quando dizem que é preciso guiar-se por "regras" "nas quais a ordem mundial se baseia" e não pelo direito internacional. Tais "regras" são criadas no âmbito de parcerias de toda a espécie. Existe o direito humanitário internacional, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados que é uma estrutura universal. Não obstante, criam na UE uma parceria em matéria de direito humanitário internacional onde elaboram as suas próprias normas. Temos o Conselho dos Direitos Humanos da ONU, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (do qual também nos retiramos agora sem, porém, qualquer prejuízo para os nossos cidadãos). Durante todas as décadas de existência da União Europeia, nós e todos os outros temos insistido em que ela assine a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. A UE não o quer fazer, dizendo que alguns países a assinaram individualmente enquanto a UE tem padrões de direitos humanos mais elevados do que o Conselho da Europa. Por isso, os cidadãos da UE não podem ser julgados por este tribunal e a UE resolverá sozinha os seus problemas. É o clima que prevalece.
Temos de voltar à Carta da ONU que fala sobre a igualdade soberana dos Estados, entre outras coisas. Este é o princípio fundamental. Existe o direito de uma nação à autodeterminação e o respeito pela soberania e integridade territorial.
Desde a criação da ONU trava-se a polémica sobre o que é mais importante: a integridade territorial, a soberania ou o direito dos povos à autodeterminação? Houve consultas especiais, negociações. Levaram várias décadas. Em 1970, culminaram com a adoção de uma importantíssima declaração, a Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional Relativos à Relações Amistosas e à Cooperação entre Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas. Este é um documento extenso. Tem um capítulo dedicado à relação entre a soberania, a integridade territorial e o direito à autodeterminação. Penso que esta questão é muito relevante, especialmente no contexto da crise ucraniana e do que está atualmente a ser discutido entre as nossas delegações. É também importante no contexto do "destino" da Crimeia e da Região de Donbass. Há quem diga que é necessário realizar um referendo. O objetivo é protelar o processo. O consenso da comunidade internacional contido na Declaração de 1970 afirma: "todos são obrigados a respeitar a soberania e a integridade territorial de um Estado cujo governo respeita o direito à autodeterminação e representa todas as pessoas que vivem no território em questão". A Ucrânia considera a Crimeia e a Região de Donbass como parte do seu território nacional, bombardeando, mantendo nas caves a população da Região de Donbass e destruindo as suas infraestruturas durante oito anos. O governo de Kiev representa hoje a Crimeia ou a Região de Donbass? Devemos defender os valores da ONU. Muito de bom tem sido feito neste domínio. É necessário retomar aquela inestimável experiência.
Pergunta: Pensa que, no futuro, será possível transferir a sede da ONU dos EUA para um país que é neutro nas relações internacionais ou para um país em desenvolvimento, a fim de atrair a atenção da comunidade internacional para os problemas dos países em desenvolvimento e diminuir a pressão política sobre a Organização?
Serguei Lavrov: Há que trabalhar neste sentido.