Ministro Serguei Lavrov fala com estudantes e o corpo docente da Universidade de Relações Internacionais (MGIMO), Moscovo, 1 de setembro de 2020

1321-01-09-2020

Prezado senhor Reitor da Universidade de Relações Internacionais,

Prezado Senhor Reitor da Academia de Diplomacia,

É uma tradição nos reunirmos aqui no primeiro dia de setembro. Juntos iniciamos o novo ano letivo. Claro que parabenizamos os alunos de primeiro ano, cujo ingresso é fruto de uma luta muito séria e competitiva – o Reitor Aleksandr Torkunov acaba de falar disso em pormenor. Cada ano, a Universidade MGIMO vem confirmar o seu renome mundial. As provas de ingresso nesta Universidade são as mais difíceis entre todos os estabelecimentos educacionais da Federação da Rússia e a qualidade de novos alunos sempre gera um enorme respeito e admiração.

Neste ano, apesar do coronavírus, as provas passaram de maneira perfeita. Todos os procedimentos foram observados tanto em regime online, quanto em outros formatos. Aleksandr Torkunov comentou os resultados. São impressionantes.

Recentemente, o senhor Reitor fez anos. É especialmente agravável que se falou muito neste dia das tradições da MGIMO, da nossa história, das pessoas que trabalham e estudam aqui. Por isso, não preciso falar muita coisa mais sobre a minha alma mater. Quero felicitar Aleksandr Torkunov de novo por motivo da sua bonita data. Como sabemos, o Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, assinou o Decreto condecorando o Reitor da MGIMO, Aleksandr Torkunov, com a Ordem de 2o grau de Mérito perante a Pátria. Acho que isso vem simbolizar não somente o reconhecimento dos seus méritos pessoais, mas também os méritos relacionados com o funcionamento da Universidade.

Aleksandr Torkunov disse que a eficiência da Universidade é “afinada” pelo emprego no MNE da Rússia. Porém, se falamos em termos puramente estatísticos, só uma pequena parte dos graduados da MGIMO vem trabalhar ao MNE a cada ano. Este número pode ser contado em dezenas, às vezes chega a cem. Muitas pessoas mais optam por trabalhar em outras estruturas: em entidades governamentais, no negócio privado, no jornalismo. A educação é rica e dá a possibilidade de ótima escolha da profissão. Vou dizer mais uma vez que a qualidade desta educação garante grandes êxitos em qualquer área, sempre que haja o desejo respetivo.

Como vocês sabem, quando nós escolhemos a diplomacia, a escolha era fácil. Talvez havia menos tentação, em comparação com as faculdades que funcionam na MGIMO agora. Nós tínhamos quatro faculdades. Escolhemos a diplomacia, por isso eu fico a falar da diplomacia a cada ano aqui. Já que vocês ingressaram na Universidade dedicada às relações internacionais, não vou falar muito da situação mundial. Se vocês estão aqui, então estão a acompanhar a situação, interessam-se por ela.

Vou comentar muito breve que a situação mundial se carateriza, por mais de um ano já, pela passagem para um sistema novo, mais democrático e justo, multilateral, que deve levar em conta ainda maior as mudanças acontecidas no mundo nas últimas décadas. As mudanças consistem essencialmente no facto de todos os problemas se tornarem transfronteiriços, abrangerem todos os países. Tornam-se problemas que nenhum país é capaz de escapar por conta própria. O coronavírus veio confirmar isso, sem falar do terrorismo internacional, do tráfico de drogas, de outras formas de crime organizado, dos problemas climáticos e de muitas outras coisas.

Mais um problema que enfrentamos hoje é a falta de desejo de muitos países, antes de tudo, certos Estados ocidentais encabeçados pelos EUA, de reconhecer a realidade óbvia de estar a formar-se no nosso globo um sistema de relações novo, com o surgimento de novos centros de força. A China e a Índia – basta mencionar estes dois países, que são locomotivas do crescimento económico. E se tomarmos a região Ásia-Pacífico em geral, mostra o maior crescimento. Potência económica acarreta evidentemente um poder financeiro e, consequentemente, certa influência política. Tentativas de ignorar esta realidade, não deixar formar as relações que levem em conta estes novos êxitos de muitos países do mundo, são, a meu ver, míopes e perigosas. O que há? Os nossos colegas ocidentais têm solucionado os negócios mundiais por quase meio século, controlando a economia através das conquistas coloniais, garantindo o bem-estar e o funcionamento luxurioso às suas elites exportando recursos naturais das colónias. Muita coisa aconteceu nestes 500 anos. Mesmo depois da derrota do sistema colonial, as relações de “tutor e tutelado”, “chefe e auxiliar” continuavam a influenciar a mentalidade dos políticos ocidentais. Até hoje, recusam-se de reconhecer a necessidade de agir em condições de igualdade, reconhecer a realidade multipolar e policêntrica. Tentam preservar o seu domínio já não por conta dos mecanismos naturais criados por eles de domínio económico, mas sim por conta de métodos que passam da legitimidade. São as sanções, a intervenção direta e muitas outras coisas que estamos a observar quase diariamente em relação a muitos Estados.

Lá onde não dá para impor a sua vontade a um país, cria-se o dito “espaço do caos”, que pretendem ver como um caos controlado. A vida demonstra que não é possível controlar o caos. Isso começou ainda em 1999 na ex-Jugoslávia, depois, seguiram o Iraque, a Líbia, a Síria e outros países do Oriente Médio. Todos conhecem o triste exemplo do que foi feito na Ucrânia. Agora, os nossos vizinhos bielorrussos estão a passar por tempos difíceis. Nós explicámos a nossa postura com muita clareza. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, falou disso com toda a sinceridade. Vamos guiar-nos pelo direito internacional, pelas obrigações existentes entre a Federação da Rússia e a República da Bielorrússia. O nosso desejo é, claro, que os bielorrussos tenham a oportunidade de resolver os seus problemas eles mesmos, sem qualquer interferência externa.

Vemos a tentação de muitos Estados ocidentais – tanto os vizinhos, quanto os países que ficam longe do outro lado do oceano – falo dos EUA e do Canadá – de impor certas abordagens para superar a situação atual na República da Bielorrússia. O Presidente da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, reage a estas abordagens. Acreditamos que não é preciso insistir em prestar serviços de mediação. O Presidente da Bielorrússia sugeriu a reforma constitucional. A nossa avaliação conjunta é que esta é a forma que permite perfeitamente organizar o diálogo com a sociedade civil e que deve permitir a discussão de todas as questões que preocupam os cidadãos bielorrussos. Depois, durante a sessão interativa, posso comentar este assunto com mais detalhes, se houver perguntas. Agora, quero terminar esta minha introdução dizendo que nos manifestamos pela ordem mundial mais democrática e justa, pela observância consequente da Carta da ONU, contra as tentativas de substituir o direito internacional por umas regras que devem gerir a ordem mundial. É uma nova ideia dos países ocidentais. Inventaram um termo: “a ordem baseada em regras”. As regras variam conforme as pretensões dos nossos colegas ocidentais. Formam-se coligações de partidários, de costume os países ocidentais, e também são escolhidos “manualmente” parceiros de outras regiões, que obedecem aos nossos colegas ocidentais. No seu círculo, combinam em criar a dita “parceria contra a impunidade na área do uso de armas químicas”, a dita “parceria para a garantia de cibersegurança” e “pela punição dos que interferem no ciberespaço com fins de má fé”, a dita “parceria pela defesa dos direitos humanos”. Tudo isso não é feito no formato universal, senão no círculo restrito composto por quem não vai discutir com os iniciadores ocidentais destas ideias. Depois, a regra formada em torno do assunto, proclama-se universal, exigindo-se a todos a sua observância. E quem não observa estes postulados formados em círculo restrito, tornam-se alvo de sanções. Infelizmente, a União Europeia opta a cada vez mais pelo caminho da pressão por sanções, seguindo os EUA. A União Europeia elaborou a decisão para criar o mecanismo de introduzir sanções por intervenção no ciberespaço com fins criminais (conforme eles), por razões relacionadas com os direitos humanos e por outras razões. Estas sanções são ilegítimas do ponto de vista do direito internacional, pois todas as sanções unilaterais são ilegítimas. Esta é a tendência observada. “Nós – o Ocidente, a União Europeia, a NATO – sabemos como viver nesta Terra”. Os restantes que ouçam.

Vejam as declarações feitas sobre a situação na Bielorrússia pelo Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, pelos representantes da União Europeia, pelos líderes ocidentais que chefiam a OSCE. Sermões pronunciados num tom que nem permite duvidar de que se trata de uma instrução para todos. Isso é fruto da falta de conhecimentos elementares em matéria da diplomacia, mas, geralmente, não é ético não somente do ponto de vista diplomático, mas do ponto de vista humano. Vemos e prestamos atenção a isso.

Por exemplo, no ano passado, os nossos colegas franceses e alemães anunciaram a criação de uma parceria em prol do multilateralismo. O multilateralismo deve ser coisa boa. Nós sempre estamos pele solução de problemas não através de abordagens unilaterais, mas coletivos, multilaterais. Por que aqueles que querem defender a multilateralidade promovem esta iniciativa fora da ONU, organização mais multilateral e universal? É incompreensível. Nem tentaram. A propósito, é na ONU que a Rússia, junto com um grande grupo dos países vizinhos nossos e países da Ásia, da África, da América Latina, promove a parceria pela defesa dos princípios da Carta da Organização das Nações Unidas. Talvez seja o movimento necessário para manifestar a sua lealdade aos princípios da multilateralidade.

Não obstante, ao criticar aquilo que estamos a observar como os nossos parceiros ocidentais, muitos outros países agem em relação aos problemas que nós preferiríamos resolver com base no direito internacional, na busca de um equilíbrio de interesses, e não através de pressão unilateral, não nos limitamos a críticas. Promovemos uma agenda positiva. Como eu já disse, ela consiste na necessidade de voltarmos à matriz: respeitar os princípios da Carta da ONU, lembrar-nos do facto de que a ONU nasceu há 75 anos nas ruínas da Segunda Guerra Mundial, nasceu graças à Vitória na Grande Guerra Patriótica e na Segunda Guerra Mundial, graças à Vitória forjada por países de diferentes sistemas sociopolíticos e ideológicos. Naquela guerra, os Aliados uniram-se em prol da Vitória sobre o inimigo comum. Superaram as divergências que os dividiam nos anos que anteciparam a Segunda Guerra Mundial. Falou-se disso muitas vezes. Acho que a situação atual no mundo não é tão sangrenta como na Segunda Guerra Mundial, porém os riscos que existem são maiores e não são menos graves. Mencionei o terrorismo, as drogas, que levam um grande número de vidas a cada ano. Não nos esqueçamos dos riscos de propagação de armas de destruição em massa. Os EUA destruíram praticamente todo o sistema de retenção na área de controlo de armamentos, usam doutrinas para implementar nas suas ações práticas os princípios que reduzem de facto o limiar de uso de armas nucleares. Acresce-se a tudo isso a vontade de grupos terroristas e outros grupos criminosos de obter acesso às tecnologias nucleares e também às tecnologias de criação e uso de outros tipos de armas de destruição em massa (armas químicas ou biológicas). Seria um delito, acho, esconder-se em “apartamentos nacionais”, “fechar as portas”, dizer: “Só falo com tal país quando cumpra o ultimato”. E isso é que estamos a observar.

Vejam os problemas que existem não somente nas relações entre a Rússia e os EUA, mas também entre os EUA e a China.

Estamos a favor de compromissos, equilíbrio de interesses. A elaboração do consenso é um objetivo das organizações de que a Rússia faz parte: a CEI, OTSC, a UEE, o BRICS, a OCX. A criação do Grupo dos Vinte, em que estão representados os países do BRICS, o Grupo dos Sete e outros Estados líderes das regiões em desenvolvimento do mundo contemporâneo, veio reconhecer as novas realidades. O Grupo dos Vinte continua a fazer um trabalho muito importante. Essencialmente, é hoje a única plataforma fora da ONU que representa todos os países económicos e que tem o consenso como objetivo comum. Falta esta lógica a muitos outros formatos em que os nossos parceiros ocidentais trabalham.

Nós promovemos a agenda que deve ajudar a superar os problemas existentes nos assuntos internacionais através da cooperação. Ela só pode ser baseada na igualdade, apoiada no respeito pelas preocupações de cada parte, focada – sublinho mais uma vez – na elaboração do equilíbrio de interesses. Formámos a nossa visão de uma via que leve à harmonia nos negócios internacionais. Falando dos problemas económicos, estamos convencidos (o que ficou refletido na iniciativa do Presidente da Rússia, Vladimir Putin) da necessidade de mover-nos rumo à criação da Grande Parceria Eurasiática, que seria aberta à cooperação económica e humanitária para todos os países da Eurásia, inclusive os membros da UEE, da OCX, da União Europeia, da ASEAN. Temos um enorme continente comum com enormes riquezas, e seria muito irresponsável não utilizar esta vantagem oferecida por Deus. É um objetivo a longo prazo. É um processo que – estou convencido – será percebido por todos os países do nosso continente.

A longo prazo consideramos essencialmente importante que os membros permanentes do CS da ONU manifestem a sua responsabilidade conforme a Carta da ONU, mantendo uma cimeira que possibilitaria, exercendo os poderes destes cinco países previstos pela Carta da ONU, examinar vias de “sanificação” drástica da situação na área de segurança a escala global. Todos os países responderam positivamente a esta proposta do Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Espero que esta cimeira aconteça quando a situação com o coronavírus permitir. Deve ser realizada em formato presencial.

Passemos para a parte interativa.

Pergunta: O senhor mencionou um vasto leque de assuntos. Falou, inclusive, da importância de resolver os problemas em conjunto, coletivamente, em virtude do seu caráter transfronteiriço. Às vezes, abrangem assuntos que não são do outro lado do oceano, mas sim os dos nossos parceiros da CEI. Observou-se muitas vezes, inclusive o Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, o dizia, que a CEI é prioridade para a nossa política externa. Como a Rússia pode ajudar na solução da crise de Nagorno-Karabakh entre a Arménia e o Azerbaijão?

Ministro Serguei Lavrov: A Rússia faz parte dos esforços internacionais envidados no sentido de criar condições para a solução de várias crises e conflitos. Isso é válido inclusive para a solução da crise de Nagorno-Karabakh, para a qual foi criado na OSCE o Grupo de Minsk. Os copresidentes atuais do grupo são a Rússia, os EUA e a França. Participam nele outros países, inclusive a Bielorrússia, a Alemanha, a Itália, a Suécia, a Finlândia, a Turquia. Por decisão do grupo, os copresidentes - a Rússia, a França e os EUA - têm os poderes para realizar diariamente trabalho destinado à criação de um ambiente necessário para fomentar o consenso mutuamente aceitável para as partes.

Sublinharei especialmente: nós não escrevemos roteiros para a solução do problema. O que fazemos é criar condições para que eles próprios possam negociar. No decurso dos últimos 18 anos, elaboravam-se os primeiros documentos entre as partes neste sentido. Muita coisa já foi feita. Formularam-se os princípios que refletem as cláusulas da Carta da ONU e do Ato Final de Helsínquia da Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa (CSCE), e também os parâmetros concretos que é preciso concordar para que a solução se torne realidade. Não vou entrar em pormenor agora.

Aconteceram recentemente vários incidentes, inclusive na região de Nagorno-Karabakh, e em julho do ano corrente, houve um na fronteira entre o Azerbaijão e a Arménia. Estes incidentes aumentaram a tensão e o seu papel não era positivo para que os esforços copresidentes pudessem formar um ambiente correto.

Durante esta crise, eu falei por telefone com os meus colegas arménio e azeri. O novo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Azerbaijão visitou-nos na semana passada. Com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Arménia, falei por telefone mais uma vez. Temos a impressão de que ambas as partes estão interessadas na normalização da situação e na retomada das reuniões organizadas na região pelos representantes dos copresidentes (a Rússia, a França e os EUA), quando eles visitam Baku e Yerevan para depois trocar as suas avaliações e preparar reuniões dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da Arménia e do Azerbaijão com a sua participação. Em certas etapas, quando há a esperança de mudanças positivas concretas, realizam-se cimeiras dos Presidentes do Azerbaijão e da Arménia.

A Rússia é uma das participantes mais ativas deste processo, já que, além do trio dos copresidentes, promovemos os nossos esforços de mediação visando criar condições favoráveis para o diálogo nacional entre as partes. Convidámos várias vezes os Ministros dos Negócios Estrangeiros da Arménia e do Azerbaijão para o nosso país. Houve também reuniões a nível dos Presidentes dos três países: da Rússia, da Arménia e do Azerbaijão.

Este tipo de trabalho é a nossa contribuição para os esforços conjuntos dos copresidentes. Nós nunca opomos aos nossos passos bilaterais à atividade da troika composta pela Rússia, pelos EUA e pela França. Sempre que organizamos tais reuniões trilaterais - Rússia, Azerbaijão, Arménia - convidamos os copresidentes para que tenham todas as informações necessárias depois.

A nossa abordagem apoia-se na bagagem de documentos acumulados nos quase 18 anos. Há os ditos Princípios de Madrid, há versões atualizadas dos documentos aprovadas pelas partes como base para trabalho posterior. Estes documentos estão depositados no Secretariado da OSCE.

Agora, estamos a observar nesta espécie de estagnação as vozes apelando a desistir destes documentos para iniciar tudo da tábua rasa, até de lançar um “plano B”. Acreditamos que isso seja um grande erro. Estamos convencidos de que o que foi elaborado nestes anos deve permanecer na base dos nossos esforços posteriores.

Não vou comentar em pormenor o que foi aprovado preliminarmente, trata-se de uma parte bastante confidencial do trabalho. Mas posso assegurar-lhe que há soluções que permitirão garantir a justiça tanto aos representantes arménios, quanto aos azeris.

Pergunta: Recentemente, o Congresso dos EUA aprovou uma série de sanções adicionais contra tribunais e empresas que participam na construção do gasoduto Corrente do Norte-2. Como o senhor avalia a legitimidade destas sanções? Será que tornam evidente a falta do interesse dos EUA em relação ao desenvolvimento da parceria transatlântica ou são uma manifestação de amizade com os países da União Europeia?

Ministro Serguei Lavrov: Na minha palavra introdutória eu já falei do problema de sanções unilaterais. Qualquer sanção unilateral é ilegítima. Só são legítimas as sanções introduzidas pelo Conselho de Segurança da ONU. O resto são tentativas de subverter o direito internacional, de subverter os princípios da Carta da ONU que consistem na necessidade de tratar de resolver quaisquer problemas coletivamente.

No caso do Corrente do Norte-2, estão evidentemente presentes métodos de concorrência de má-fé. Os norte-americanos declaram abertamente que o Corrente do Norte-2 deve ser parado por violar a segurança energética da Europa e que para obter tal segurança, a Europa deve comprar gás natural liquefeito (GNL) dos EUA. Já o preço do GNL norte-americano é muito maior do que o preço do gás fornecido ao continente europeu pelo novo gasoduto.

Semelhantes declarações são arrogantes, demonstram a falta total de respeito dos EUA aos seus aliados. A Alemanha e vários outros países da União Europeia já reagiram a isso. Há dias, a Chanceler da Alemanha, Angela Merkel, confirmou, na sua intervenção depois de uma reunião do Conselho Europeu, que o Corrente do Norte-2 é um projeto estritamente comercial, não podendo ser uma moeda de troca em jogos políticos. Partilhamos desta posição. Quanto às relações na comunidade euro-atlântica e à avaliação das intenções dos EUA a respeito desta comunidade, é um assunto das partes de ambos lados do Atlântico. Não vou comentar os negócios euro-atlânticos, pois vão acusar-me de interferir na situação. Não é o que eu quero.

Pergunta: Eu gostaria de perguntar sobre a situação na República da Bielorrússia. Que vias o senhor vê para a solução deste conflito? Que postura a Rússia deve adotar? Que ações devem ser feitas para estabilizar a situação no Estado tão importante para a Rússia como é a República da Bielorrússia?

Ministro Serguei Lavrov: Já falámos disso na minha palavra introdutória. O Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, já falou disso muitas vezes, inclusive na sua recente entrevista ao canal Rossiya 1. A nossa postura é muito simples e clara. Estamos convencidos de que o povo bielorrusso tem todas as possibilidades de resolver este problema por conta própria. Há questões cuja discussão é necessária, é óbvio.

Consideramos inaceitáveis as tentativas, no mundo contemporâneo, de intervir na qualidade de juiz, de emitir condenas e exercê-las introduzindo sanções e fazendo outras ameaças, como os nossos colegas ocidentais tentam fazer. Infelizmente, a União Europeia, inclusive os vizinhos da Bielorrússia, manifesta estes costumes, tentando arrastar todos os membros da União Europeia à sua plataforma rigidamente anti-Lukashenko. Nós sabemos que isso gera um mal-estar sério nos países da “velha Europa”, que compreendem a necessidade de ações equilibradas, que sentem o mal-estar ao presenciar a intervenção brutal, descarada nos assuntos internos de qualquer Estado. Por exemplo, como os norte-americanos, os polacos, os lituanos, outros países Bálticos, exigem das autoridades da República da Bielorrússia consentir à mediação da OSCE.

Eu falei com o Presidente atual da OSCE, Primeiro-Ministro da Albânia, Edi Rama, com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia (a Suécia será a futura Presidente da OSCE), eles dois queriam estabelecer tal processo. Apelaram a nós, tentando transmitir às autoridades bielorrussas, através de nós, a necessidade de consentir a esta mediação. Nós perguntámos por que a OSCE não tinha enviado observadores para as eleições na República da Bielorrússia ao receber o convite. Eles responderam que o convite chegou tarde. Na verdade, chegou um mês antes das eleições. A OSCE não exige formalmente que o convite para os observadores chegue com mais de um mês de antecipação. Não há nenhum parâmetro. A única obrigação é convidar os observadores internacionais. E os critérios para a elaboração do convite determinam-se pelas leis nacionais e pela visão própria da situação, o que foi feito pela Bielorrússia. Todas as invenções de que é preciso convidar com dois meses de antecedência estão nos manuais elaborados pelo Escritório de Direitos Humanos e Instituições Democráticas (ODIHR, na sigla em inglês) da própria OSCE. Se olhamos para a composição deste Escritório, 99% dos integrantes dele são cidadãos da União Europeia e da NATO. Nós, junto com os nossos parceiros da CEI, promovemos na OSCE, desde 2007, a proposta de tornar a OSCE numa organização normal, com critérios compreensíveis de todos os tipos de ações, inclusive critérios necessários para organizar o monitoramento das eleições. Os países ocidentais recusam-se mesmo de discutir estas coisas. Nós também propomos discutir, combinar e aprovar a Carta da Organização, porque a OSCE é uma Organização, porém segue sem ter uma Carta.

Toda a retórica dos nossos parceiros ocidentais que defendem a OSCE na sua forma atual, consiste em que a sua ambiguidade, flexibilidade ambígua são algo que deve ser apoiado, sendo, nas suas palavras, o padrão de ouro. Eu só vejo uma explicação para isso: uma organização “difusa” assim, em regras claras, é muito fácil de usar, é fácil de manipular. Aliás, a OSCE quer - ou é o Ocidente que a empurra para este papel - ser mediadora principal, já a própria OSCE vive uma crise profunda: não tem Secretário-Geral, chefes das instituições de direitos humanos, minorias nacionais e media. Todos estes chefes demitiram-se porque a tentativa de prorrogar os seus poderes (“em conjunto”, de todos os quatro) ficou impedida pela objeção de vários países. A única coisa importante que tem a OSCE é um consenso. Todos os quatro representantes aprovados para os três anos anteriores representavam países ocidentais. Nós tentávamos muitas vezes promover, pelos menos, um cidadão ou uma cidadã dos países da CEI para um destes quatro cargos. Sem êxito.

Há na OSCE chefes interinos do Secretariado Geral, das instituições de direitos humanos, dos media e das minorias nacionais. Simples assim: a pessoa que é a segunda na hierarquia cumpre as funções. Vocês acham que estes quatro são de que países? Também dos ocidentais. E assim no mesmo estilo em todo o Secretariado. Não quero acusar ninguém. Muitos países membros da OSCE querem ver ela equilibrada e neutra, mas não os deixam “lugar para ação”, e a OSCE é, infelizmente, usada pela minoria agressiva para ajuste de contas políticas.

Levando em conta a situação em que ficámos todos (com os problemas na liderança da Organização, na sua atitude atual para com a Bielorrússia), vamos exigir, no decurso dos preparativos do Conselho dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da OSCE, previsto para inícios de dezembro na capital da Albânia, Tirana, o início de uma conversa concreta, profissional sobre a reforma desta estrutura já um pouco estagnada.

Voltando à Bielorrússia. Como o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, eu mencionei que o Presidente da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, tinha falado da reforma constitucional ainda antes das eleições. Recentemente, Aleksandr Lukashenko disse que a reforma deve ser depersonificada e sugerir a estabilidade do sistema político da República da Bielorrússia independentemente da pessoa. Ele disse estar pronto agora mesmo para começar a elaboração destas propostas de reforma. Considerei correto o convite dos representantes da sociedade civil para participarem neste trabalho. Se querem sair da crise sendo um país reforçado, e não incitar contradições, devem manifestar eles próprios um respetivo interesse. Mas o que vemos são tentativas de desestabilizar a situação. Ninguém nem esconde isso. Os nossos vizinhos lituanos ultrapassaram todos os limites da decência nas suas exigências. Suponhamos, e não sem fundamento, que eles com Svetlana Tikhanovskaya, tenham usado meios nada democráticos, que não manifestam respeito à soberania da República da Bielorrússia.

Pergunta: Qual, a seu ver, futuro tem o programa nuclear iraniano? Existem hoje chances de manter o JCPOA nos limites aceitáveis para todos os países participantes? O senhor admite a possibilidade de os EUA e o Irão retomarem um diálogo construtivo para resolver problemas recíprocos?

Ministro Serguei Lavrov: A situação em torno do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla em inglês) de solução do problema em torno do programa nuclear iraniano é tensa. Esta tensão resulta do facto de, há uns dois anos, os EUA terem saído oficialmente, com decreto respetivo assinado pelo Presidente dos EUA, Donald Trump, do acordo alcançado em 2015 após longas negociações (que levaram mais de 10 anos) e aprovado pela resolução unânime do CS da ONU, tornando-se em um instrumento do direito internacional, obrigando a que não somente os participantes do JCPOA, mas todos os restantes países da ONU, respeitassem estritamente as decisões alcançadas pelos negociadores do Ocidente, da Rússia, da China e do Irão.

Na sua época, o documento foi qualificado como um êxito inédito, inclusive em termos de fortalecimento do regime de não proliferação de armas nucleares, e também como um passo importantíssimo na área político-militar, fomentando a criação do sistema de segurança na região do Golfo Pérsico. Todos os comentadores que tinham conhecimento da situação, admiravam este sucesso com toda a razão. Mas quando os EUA, na época da administração de Donald Trump, chamaram este negócio do pior da história e saíram dele oficialmente, ficou ameaçado. Muitos duvidavam que se mantivesse. Foi precisa a vontade política do resto dos participantes para mantê-lo. São, antes de tudo, a Rússia, a China, o Irão e o trio europeu: a Alemanha, a França e o Reino Unido. Todos estes países confirmaram que estão interessados na manutenção do negócio; porém o problema consistia na retomada das sanções unilaterais contra o Irão pelos EUA que se recusaram das suas obrigações. Inclusive, abusando da sua posição no sistema monetário internacional, eles decidiram impedir as tentativas dos outros de usar o dólar para fazer comércio ou investir no Irão. Um grande trabalho foi preciso.

Uns meses depois desta decisão dos EUA, nós, juntamente com os europeus, os iranianos e os chineses reunimo-nos em Viena. Eles disponibilizam-se a pensar em um mecanismo que não dependesse do dólar e garantisse cálculos para todos os países restantes que desejariam fazer comércio e ter negócios económicos com o Irão. Este mecanismo chama-se Instex. Não foi criado tão rápido como prometiam-nos: somente no final do ano passado. Agora, conta com uma só transação. Claro que isso é pouco para garantir comércio normal com o Irão.

Resulta que os EUA se recusaram deste plano de ação. Não disseram simplesmente que retomam as sanções unilaterais norte-americanas, mas proibiram que todos fizessem comércio com o Irão. Alguns aliados dos EUA chegaram a pedir fazer uma exceção para eles para, apesar da aplicação extraterritorial, ilegítima das restrições norte-americanas, poder fazer comércio com o Irão, obter petróleo de lá etc. Acho que isso é inadmissível. Não se podia imaginar algo assim há uns anos.

Estando já fora do âmbito do programa e tendo perdido todos os seus direitos (pois tinham se recusado das obrigações), os EUA tentaram recentemente promover no CS da ONU a decisão de impor o embargo de fornecimento de qualquer tipo de armas para o Irão e do Irão, apesar da expiração da Resolução vigente em meados de outubro. Eles tentavam convencer todos nós de que se não garantíssemos a prorrogação da proibição do comércio de armas com o Irão agora, Teerão tinha desestabilizado ainda mais o Médio Oriente, a região do Golfo Pérsico etc. Isso foi absolutamente ilegítimo. A Resolução só obteve dois votos de quinze. O resto votou contra ou absteve-se.

Agora os EUA pretendem usar um instrumento jurídico bastante complexo, sofisticado estipulado pelo JCPOA e aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU. Ele permite restaurar as sanções coletivas introduzidas pela ONU e canceladas no início de 2016 após a adoção do JCPOA. É também uma tentativa com meios defeituosos. Apesar da presença do mecanismo previsto no documento para restaurar as sanções da ONU, este mecanismo, primeiro, foi feito exclusivamente para o caso de o Irão deixar de cumprir as suas obrigações (e os iranianos as cumprem), e segundo, os EUA perderam todos os seus direitos ao recusar-se das suas obrigações. Os EUA exigem de todos obedecer à sua vontade. Como vocês sabem, isso não acontece somente no Irão, mas também na Venezuela: intercetam embarcações, tentam organizar bloqueio marítimo. Nós sabemos que o elefante é símbolo do Partido Republicano dos EUA, porém o mundo não é uma loja de porcelanas.

Pergunta: Quero agradecer a intervenção do Senhor e a possibilidade de fazer perguntas diretamente. Em fevereiro do ano corrente, o Reino Unido deixou de fazer parte da União Europeia. Que relações existirão entre a Rússia e o Reino Unido, já que a 1 de agosto, a Rússia abriu as fronteiras para três Estados, um dos quais é o Reino Unido?

Ministro Serguei Lavrov: Não busque política, preferências políticas no facto de abrirmos as fronteiras para o Reino Unido e vários outros países. Estas decisões são tomadas pelo nosso Centro de Operações junto ao Governo exclusivamente com base nas avaliações feitas pelas nossas autoridades sanitárias.

As relações entre a Inglaterra e a Rússia contam muitos séculos. Nunca foram fáceis, apesar dos laços familiares frequentemente estabelecidos entre as monarquias. Não começamos esta época na melhor forma, e até pior que nos anos em que as nossas relações não eram estáveis. Agora, são drasticamente negativas por causa das ações dos nossos colegas britânicos.

Tudo começou com a morte de Aleksandr Litvinenko em 2007. Depois, foram os Skripal, e depois os ingleses aderiram-se a outras manifestações antirrussas (por exemplo, o Boeing malaio em Donbass). Acentos completamente britânicos foram introduzidos:  primeiro, nós teríamos interferido no referendo sobre o Brexit, depois foi dito que nós não interferimos, porém “com toda a certeza”, interferimos no referendo sobre a independência da Escócia, agora “voltaríamos a interferir nos assuntos internos do Reino Unido”. É triste ouvir isso.

Nós nunca tentámos agravar artificialmente as nossas relações. Já têm muitos problemas. Eu só mencionei alguns, criados pela parte britânica sem qualquer prova.

Exigem de nós agora que os médicos em Omsk apresentem imediatamente os seus pareceres, que realizemos uma investigação sobre a coma de Alexei Navalny. Vocês lembram, ele ficou em Omsk um pouco mais de um dia? E já os nossos colegas ocidentais vociferam, perguntam por que não há infirmações. E agora, ele está na Alemanha há já uma semana. Os médicos alemães tampouco concedem informações. Pois mais tempo é preciso? Porém, ninguém exige deles nada, não os acusa de “tentar esconder a verdade”.

Acusam-nos de não investigarmos a situação. Isso não é verdade. Desde o dia em que isso aconteceu, o nosso Ministério do Interior lançou a investigação prévia. Já a investigação judicial só pode iniciar quando for estabelecida a natureza do acontecimento, o que, repito, não fica ainda claro. Os médicos alemães ainda não podem entregar a nós respetivas informações. A nossa Promotoria Geral pediu aos colegas na Alemanha lançarem o procedimento previsto pelo Tratado de Assistência Jurídica Mútua.

Por que eu me lembrei disso? Porque comecei a mencionar as “espinhas” com as quais os nossos colegas britânicos picaram conscientemente o corpo das nossas relações: Aleksandr Litvinenko, os Skripal. Em nenhum dos casos, houve apresentação de factos decisivos. Quando exigem de nós uma investigação completa, objetiva de algo que aconteceu com uma pessoa que tem estado no exterior desde há muito, não seria uma investigação completa, se partem dos seus critérios. Ninguém nos apresentou factos concretos nem a respeito de Aleksandr Litvinenko, nem a respeito dos Skripal.  Quanto aos Skripal, os ingleses fizeram todos os membros da União Europeia (a maioria consentiu, porém alguns resistiram) expulsar os diplomatas russos. E sabemos bem que, quando as capitais europeias estavam febrilmente a fazer estes anúncios, muitos europeus perguntavam os ingleses se eles podiam provar que a Rússia fez isso. Os ingleses disseram que os factos iriam chegar depois, e agora, que expulsassem. Não estou a brincar. É um facto. Então, agora, quase um ano e meio depois, ao perguntar aos meus colegas europeus se os ingleses tinham apresentado os factos, eles dizem que ainda não. E estou certo de que não vão apresentar.

As nossas relações com o Reino Unido são difíceis, porém não vejo por que poderiam agravar-se mais, especialmente artificialmente. Estão a desenvolver-se relações mútuas culturais, humanitárias, educativas, científicas. Já estruturas respetivas em que cooperam os representantes das nossas sociedades civis. O negócio desenvolve-se rapidamente. Os círculos de negócios ingleses têm um grande interesse no nosso mercado. Trabalham aqui, investem, inclusive na construção de instalações desportivas e muitas outras. A propósito, na primeira metade de 2020, o comércio cresceu mais de 50% comparado com o mesmo período do ano passado e já supera os 10 mil milhões de dólares. Não é um recorde, porém é uma tendência sustentável. Se os líderes britânicos mantiverem a política que permita à Rússia alcançar resultados desejados pelo negócio e pela sociedade civil do Reino Unido, acho que poderemos agir muito mais eficazmente, gerando proveitos para ambos os nossos países.

Pergunta: A crise síria está em curso desde 2011. Muitas tentativas têm sido feitas para resolver a situação no país. Houve negociações a nível de líderes de países. Como o senhor avalia os resultados do patrulhamento conjunto russo-turco na Síria?

Ministro Serguei Lavrov: Os resultados não são maus. Ainda não atingem totalmente as expectativas, mas os progressos estão a ser alcançados. O patrulhamento é realizado na província de Idlib que consta de um pacote de acordos russo-turcos: o memorando principal foi assinado em Sochi em 2019 e tem como adindo um par de protocolos.

A essência dos acordos entre os Presidentes da Rússia e da Turquia, Vladimir Putin e Recep Erdogan, respetivamente, é criar, em Idlib, uma "zona de segurança" em que todos os grupos terroristas fiquem separados da oposição patriótica que, mesmo que seja armada, não tenha sido comprometida com atos terroristas e esteja disposta a participar na decisão dos destinos do país. Este era e continua a ser um compromisso da Turquia: separar a oposição que coopera com os turcos dos terroristas. Este processo anda com grande dificuldade. Embora, repito, vejamos que os nossos colegas turcos estão a fazer esforços. Os terroristas, porém, não deixam de tentar resistir, bombardeando as posições do exército sírio a partir da “zona de segurança”. Tentaram muitas vezes organizar provocações armadas, usando, inclusive, drones de ataque contra a base aérea russa de Kheimim.

Nestes dias, Moscovo está a receber mais uma ronda de consultas entre peritos russos e turcos. Entre os temas estão a questão síria e a cooperação na resolução da situação na Líbia. Estas questões estão em cima da mesa. O patrulhamento também visa privar os terroristas de espaço e liberdade de ação na zona de Idlib. Nesta zona encontra-se a autoestrada M4, que, de acordo com outro protocolo assinado pelos Presidentes da Rússia e da Turquia, deve ser libertada com vista à circulação normal de cargas civis, militares sírios e polícias militares russos. As áreas abrangidas pelo patrulhamento não se alargaram muito rápido devido à resistência dos extremistas, aumentando, contudo, em vários quilómetros toda a vez que as ações de patrulhamento foram efetuadas. Recentemente, as ações de patrulhamento começaram a ser efetuadas ao longo de todo a estrada. Ainda há muito trabalho a fazer em Idlib, mas os progressos estão à vista. O mais importante é que não há mais incidentes sangrentos nesta região. Alguns episódios isolados acontecem, mas são coibidos pelos soldados sírios e turcos.

Pergunta: A pandemia de coronavírus estimulou mudanças em todas as áreas da sociedade. Quais mudanças podem acontecer no sistema de relações internacionais?

Ministro Serguei Lavrov: O sistema de relações internacionais é uma parte do sistema da vida de uma sociedade. Portanto, assim como as tecnologias remotas e online entram na vida da humanidade em geral, assim também o seu papel nas relações internacionais aumentará. 

Um aspeto a assinalar. Nem tudo o que de importante existe nos assuntos internacionais pode ser debatido online, mesmo que, tecnicamente, estes debates sejam protegidos contra a escuta e invasão das redes. O principal não é sequer que não seja possível tecnicamente garantir a segurança, mas que os acordos sérios sobre os problemas graves não possam ser negociados online. Este processo requer contactos pessoais, você deve sentir o interlocutor, compreender a possibilidade de o convencer de que você tem mais razão e, naturalmente, estar disposto a encontrar nas suas palavras aquilo que possa convencer-te a ti. Este é um processo que, na minha opinião, nunca poderá ser totalmente levado ao formato online. Nada pode substituir contactos pessoais. Por outro lado, algumas atividades, especialmente aquelas de natureza protocolar como, por exemplo, uma reunião ministerial de uma organização em que os ministros devem apenas discursar e aprovar resoluções, uma vez que os documentos necessários já estão prontos. Neste caso, não vejo problemas para usar o formato online.  Realizámos uma videoconferência dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da Organização de Cooperação de Xangai, estamos a preparar uma iniciativa semelhante para os BRICS. Esta semana realizar-se uma videoconferência dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do G-20 organizada pela Arábia Saudita como presidente rotativo do grupo. Repito, este formato é mais serve para atividades protocolares e cerimoniais. Quanto às negociações reais sobre, por exemplo, o programa nuclear iraniano, nenhum resultado teria sido obtido se não tivessem sido realizadas numerosas reuniões presenciais, inclusive aquelas à porta-fechada e confidencias entre representantes dos EUA e do Irão.

Dispomo-nos a apoiar um diálogo direto entre os EUA e o Irão e a ajudar a criar condições, se ambas as partes estiverem nele interessadas. É sempre melhor expressar diretamente as suas reclamações e ouvir a resposta.

Pergunta: Infelizmente, no cenário internacional, em processos judicias, as coisas nem sempre correm bem para a Rússia. Por exemplo, um tribunal sueco rejeitou recentemente o recurso da empresa de capital aberto Gazprom contra a decisão do Tribunal Arbitral Internacional de Estocolmo que condenou a Gazprom a pagar à Naftogaz da Ucrânia cerca de 2,5 mil milhões de dólares. O senhor não acha que esta derrota foi uma consequência dos erros cometidos por advogados russos? Quais competências e qualidades deve possuir um futuro advogado internacional?

Ministro Serguei Lavrov: Acho que não tenho o direito de listar as qualidades que um advogado internacional deve reunir. Este assunto ser-lhe-á explicado na Universidade, acredite nos seus professores. Há aqui muitos peritos que não só sabem como isso é em teoria, mas também como isso é na prática. Quanto às decisões de tribunais arbitrais, muitas delas são lavradas tanto em Estocolmo como em alguns outros países da UE, especialmente no caso do projeto “Corrente do Norte-2”. O primeiro ramo foi reconhecido como abrangido pela disposição referente à exclusão do terceiro pacote, o segundo não foi reconhecido como sendo assim. A empresa “Corrente do Norte-2” entra com recursos, a empresa Gazprom também expõe publicamente a sua posição. Espero que se trate mesmo de uma disputa empresarial. Não gostaria que as decisões de tribunais arbitrais, sejam as do tribunal de Estocolmo ou de outros, tivessem elementos de um jogo político. Os assuntos jurídicos não toleram a politização.

Pergunta: O senhor acha que a atual correlação de forças no cenário internacional é semelhante à que existia em épocas anteriores? Em caso afirmativo, com que época compararia a situação geopolítica atual?

Ministro Serguei Lavrov: Eu não gostaria de ir à época do sistema primitivo. Por vezes parece que algumas normas não existem, ou existem potências que visam desrespeitá-las. Talvez não consigamos encontrar um paralelo absoluto entre o período atual e uma outra época do passado. Houve uma aliança na Segunda Guerra Mundial, um "concerto de grandes potências" no século XIX, isto é, muita coisa que evidenciava que os então líderes compreendiam as vantagens de juntar forças. Na maioria dos casos, os países conjugavam esforços para fazer frente a um inimigo comum, esta era a maior conquista da Humanidade. Agora também temos muitos inimigos comuns contra os quais temos de nos unir. Portanto, se tomarmos simplesmente o algoritmo "Humanidade e um inimigo comum", podemos dizer que a Segunda Guerra Mundial foi aproximadamente uma situação assim. 

Ainda não estamos completamente conscientes da gravidade de todas as ameaças que enfrentamos. Daí o "relaxamento" e as tentações de alguns dos nossos parceiros. Talvez algumas das consequências genéticas da era colonial se revelem. Mesmo numa situação em que seria melhor que todos se unissem, deparamo-nos como o desejo de alguns marginalizar alguém, de obter para si algum benefício, de fazer declarações moralistas em vez de conjugar esforços. Mencionei a prática de padrões duplos. Eles exigem de nós materiais sobre os casos que lhes interessam, recusando-se, ao mesmo tempo, a fornecer-nos materiais sobre os casos Skripal e Litvinenko a pretexto de estes serem secretos. Ninguém relata nada. Isto não diminui o páthos dos pedidos dirigidos à Rússia sobre os casos que podem ser utilizados no Ocidente em benefício das elites governantes. 

Acredito que a compreensão de que a união de forças não tem alternativa vai abrir o seu caminho. A grande parceria euro-asiática, a necessidade de compreender a relação entre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que têm uma responsabilidade especial pela manutenção da estabilidade internacional em todos os seus aspetos. Este é o objetivo da nossa iniciativa apresentada pelo Presidente russo, Vladimir Putin.

O que estamos a atravessar agora é uma época histórica de afirmação de um mundo multipolar que durará várias décadas. Vocês estão a assistir à resistência à ascensão da China (como dizem os próprios chineses), ao “jogo da corda” no caso da Índia, à invenção de novos conceitos como o de "Região Indo-Pacífica", embora exista o conceito de Ásia-Pacífico que tem formas de trabalho coletivas e inclusivas. Apesar disso, promovem o conceito de “Região Indo-Pacífica” cujo principal objetivo é afastar a China (e a Rússia também), criar um clube de correligionários para "conter” a China e a Rússia. Implantam-se critérios negativos, e não positivos, para a criação de coligações. Tenho a certeza que tudo isso passará, porque, por definição, isso não pode ter efeito positivo, podendo apenas provocar conflitos mais graves do que os que existem atualmente. No mundo há crises suficientes que necessitam de ser tratadas (Médio Oriente, Golfo Pérsico, Afeganistão, etc.). Gostaria de recordar uma hipótese: alguém provavelmente quer manter esta situação caótica na esperança de que, neste "caos gerido", alguém possa governar.  Até agora, vemos esta política não tem futuro. Queremos negociar honestamente e chegar a acordo em pé de igualdade.

Pergunta: Nasci na cidade de Sterlitamak, no Bascortostão. Que eu saiba, o senhor esteve na nossa região a fazer um rafting no rio Belaya. A minha pergunta é sobre o seu quotidiano. Acompanhamos as suas viagens pelo mundo fora através dos meios de comunicação social. O senhor trabalha muito intensamente. É frequente estar com os seus familiares? Lembra-se da última vez que esteve à mesa com a família?

Ministro Serguei Lavrov: Quando você disse que estava ciente da minha viagem pelo rio Belaya e queria fazer uma pergunta referente ao meu quotidiano, fiquei assustado.

Não é frequente eu conseguir comunicar com os meus amigos e familiares. Tanto mais valiosas são as ocasiões em que consigo fazer isso.

Pergunta: Se o senhor tivesse hoje a oportunidade de escolher outra profissão, o que o senhor queria ser? 

Ministro Serguei Lavrov: Isso já não faz sentido. Quando eu concluí o curso secundário, quis prosseguir os meus estudos no Instituo de Engenharia e Física de Moscovo (MIFI). No entanto, quando fiquei a saber que o Instituo de Relações Internacionais de Moscovo (MGIMO) tinha exames de admissão um mês antes, decidi tentar, pensando que não tinha nada a perder. Desde então, não me arrependo da minha escolha. Aconselho-os a fazer o mesmo. 

Pergunta: As relações entre a Rússia e a América Latina podem ser qualificadas como cooperação mutuamente vantajosa testada pelo tempo. Como sabemos, a América Latina está a atravessar um período difícil devido, inclusive, à covid-19 e aos problemas económicos da Venezuela e da Argentina. Como o senhor encara as perspetivas da cooperação entre a Rússia e os países da América Latina? Há planos de concretizar projetos conjuntos? 

Ministro Serguei Lavrov: Encaramos esta cooperação como interação com uma região do mundo muito importante. Respeitamos todos os países da América Latina e continuamos dispostos a cooperar com cada um deles, independentemente do governo que tenha chegado ao poder. Infelizmente, para alguns dos nossos parceiros, em particular americanos, o mais importante é não cooperar com um país, mas fazer com que o seu governo seja leal aos EUA.  Isto não é correto. Trata-se, outra vez, das tentativas de colocar os países soberanos à frente da falsa escolha "ou vocês estão com os EUA ou estão contra". Daí políticas tão agressivas em relação à Venezuela, Cuba, Nicarágua. Daí os acontecimentos na Bolívia. A propósito, a Estónia, um membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, convocou recentemente uma reunião especial e informal para discutir os protestos e as ações da polícia em Minsk. Lembrei-me da Bolívia. Quando Evo Morales foi colocado perante o facto de numerosos protestos, os manifestantes eram a seu favor, a polícia local agiu de uma forma completamente diferente: dezenas de pessoas foram mortas. Ninguém no Conselho de Segurança da ONU sequer "mexeu um dedo". Isso porque o poder estava passando para aqueles que eram convenientes a Washington. Temos uma posição diferente. Por exemplo, no Brasil, havia o governo de Dilma Rousseff, agora o país está sob Jair Bolsonaro. Ambos são considerados antípodas nas suas opiniões políticas. A Rússia e o Brasil desenvolvem uma parceria estratégica e são guiados por abordagens pragmáticas e pela necessidade de procurar interesses comuns, temo-los muitos. O mesmo pode ser dito sobre qualquer outro país.

Para além das nossas relações bilaterais com os países da América Latina e Caraíbas, temos contactos estreitos com organizações regionais e sub-regionais, especialmente a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), a União Económica e Comercial dos Países da América Central e do Nordeste da América do Sul (CARICOM) e outras. Na CARICOM e no Sistema de Integração Centro-Americana, estamos a obter o estatuto de observador. O âmbito dos nossos esforços conjuntos é bastante diversificado: alta tecnologia, cooperação militar e técnica, e luta contra o crime organizado (formação de polícias para países da América Latina em centros regionais criados no Peru e na Nicarágua). Recentemente, esta lista passou a incluir o combate ao coronavírus. Fornecemos sistemas de teste a muitos países da região. Estamos agora a negociar com alguns deles o fornecimento de medicamentos e da vacina russa e a produção conjunta de medicamentos de origem russa e da vacina russa nestes países. Estamos a falar de um mundo multipolar emergente, sendo a América Latina um dos seus pilares. Este pilar tornará a futura ordem mundial policêntrica muito mais estável.

Pergunta: Os Estados Unidos estão a atravessar o período de uma intensa corrida eleitoral. Como podem mudar as relações entre a Rússia e os EUA se o roteiro ucraniano se repetir (mesmo que isso seja improvável) e C.West se tornar presidente dos EUA? Qual é a sua previsão?

Ministro Serguei Lavrov: Na minha época de estudante do MGIMO, A. Torkunov e eu escrevíamos piadas para espetáculos humorísticos estudantis protagonizadas por muitas personalidades oficiais, entre as quais presidentes e secretários-gerais. Por isso, você pode descrever nas suas obras de ficção qualquer personagem dos EUA. Espero que não seja acusado de interferência nas eleições americanas.

Pergunta: Recentemente, o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, anunciou a sua intenção de se demitir. Como o senhor descreveria os longos oito anos de cooperação nas relações internacionais entre a Rússia e o Japão desde que Shinzo Abe se tornou primeiro-ministro? Quais são perspetivas das relações entre a Federação da Rússia e o Japão?

Ministro Serguei Lavrov:  As relações entre o Primeiro-Ministro do Japão, Shinzo Abe, e o governo russo, principalmente o Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, eram verdadeiramente amigáveis, mutuamente respeitosas e, obviamente, baseavam-se na simpatia pessoal mútua. Tudo isto foi enfatizado pelo Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, na sua recente mensagem ao Primeiro-Ministro do Japão, Shinzo Abe, e durante a conversa telefónica que se seguiu à mensagem após ter sido anunciado que Shinzo Abe iria demitir-se. O Presidente russo, Vladimir Putin, reiterou que estaria sempre pronto a continuar os seus contactos amigáveis com Shinzo Abe, independentemente da sua condição, isto foi dito sinceramente.

Quanto às perspetivas das relações russo-japonesa - somos a favor de serem o mais prósperas possível, o mais estreitas possível, e propomos começar por desenvolver a cooperação bilateral em todas as áreas sem exceção: economia, alta tecnologia, ciência, tecnologia, cultura, contactos humanitários, ensino, contactos entre pessoas, meio ambiente, projetos conjuntos, inclusive nas Ilhas Curilas e, claro, uma cooperação estreita e  transparência nas questões da segurança. 

Isto implica não só a consideração de situações específicas que vêm emergindo na nossa região comum, especialmente no contexto da aliança militar Japão-EUA, mas também uma estreita coordenação e articulação em organizações internacionais. Foi exatamente isto que o Primeiro-Ministro do Japão, Shinzo Abe, e o Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, acordaram quando colocaram a tarefa de desenvolver as relações em todas as áreas, o mais intensamente possível, a fim de alcançar um nível de relações tão especial que nos permita resolver até as questões mais difíceis.

Esta fórmula foi acordada e apresentada. Infelizmente, até agora, estamos longe de onde queremos ir nas nossas relações com o Japão. Os japoneses aderiram às sanções, o que dificulta a cooperação económica. Tóquio olha para outros países ocidentais, especialmente os Estados Unidos, quando se trata de produção conjunta em matéria de nanotecnologia e em outras áreas de alta tecnologia. 

O Japão, infelizmente, quase sempre vota na ONU contra a Federação da Rússia quando a ONU considera as resoluções problemáticas. Naturalmente, queremos muito estabelecer um diálogo competente sobre questões da segurança na região onde fazemos fronteira com as ilhas japonesas e queremos compreender como o Japão encara os seus compromissos militares para com os EUA, numa situação em que os EUA declararam oficialmente a Rússia como seu adversário. Tóquio diz que o Japão nunca fará nada com os americanos contra a Rússia, mas está em estreita aliança com os EUA, país que nos encara como adversários. Pelo menos, aqui temos o que conversar. 

Ao dizer tudo isto, repito mais uma vez que, independentemente de como terminar a situação decorrente da eleição do líder do partido no poder e, consequentemente, da eleição do novo primeiro-ministro japonês, dispomo-nos a cooperar, o mais estreitamente possível, com os nossos vizinhos japoneses em todas estas áreas. Temos progressos, embora não tão rápidas como seriam de desejar, nas questões relacionadas com as atividades económicas conjuntas nas ilhas Curilhas do Sul. Trata-se de projetos que beneficiam as pessoas que ali vivem, assim como as empresas envolvidas nestes projetos. Portanto, estamos prontos para avançar a pequenos passos, tendo sempre presente que o objetivo principal é elevar as nossas relações a um nível completamente novo e positivo. 




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