Entrevista do Ministro Serguei Lavrov ao jornal Kommersant, Moscovo, 15 de abril de 2020
Pergunta: Gostaria de começar pelo escândalo em torno do regresso dos cidadãos russos que durante a pandemia do coronavírus estiveram no estrangeiro. Há muitas críticas, de um lado, da organização do regresso dos compatriotas, e de outro lado, do facto de os “propagadores do vírus, que são os únicos culpados de terem ficado no estrangeiro”, serem levados ao país. Como o senhor comentaria esta tese? Por que o procedimento de regresso é organizado de maneira tão nervosa e com tantos altibaixos?
Serguei Lavrov: Primeiro, cada um tem a sua verdade. Estes pontos de vista são absolutamente diferentes, polares. Mas eles existem. Devem ser considerados, independentemente da minha atitude pessoal a respeito destas situações. Compete-nos a nós fazer o nosso trabalho. O trabalho consiste no cumprimento das decisões do Centro Operacional, tomadas pelos órgãos estatais por encargo direto do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, que diz respeito à nossa participação no regresso dos cidadãos russos do estrangeiro e na prestação de ajuda material àqueles deles que tinham ficado sem meios de sobrevivência no estrangeiro.
As decisões relativas à ajuda ao regresso são refletidas num algoritmo que prevê uma série de passos com um horário rígido, literalmente hora por hora. Nesse algoritmo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros desempenha um papel de coorganizador de notificação dos nossos cidadãos, da sua deslocação para o aeroporto, admissão a bordo em conformidade com as listas aprovadas pelo Ministério do Desenvolvimento Digital, Comunicação e Media da Rússia em colaboração com as companhias aéreas.
Sublinho ser importante compreender um critério essencial. Isto é, não podemos fazer nada que possa afectar a eficiência das medidas destinadas à solução da tarefa principal, ou seja, dar garantias da máxima segurança das pessoas, da minimização de qualquer perigo à vida e à saúde dos nossos cidadãos. Nesta questão, o papel chave é desempenhado pelas estruturas russas, responsáveis pela segurança médico-sanitária, pela organização da quarentena, de confinamento, das capacidades dos observatórios médicos. Os principais responsáveis são elas por conhecerem bem as capacidades e as potencialidades que existem em cada região. É um critério objetivo que não podemos prescindir. O resto obedece a este critério, inclusive as chamadas quotas regionais: 500 pessoas por dia para Moscovo e a região de Moscovo, 200 pessoas por dia que devem seguir para outras regiões. Isso tudo depende de capacidades existentes in loco.
Perante tais restrições bastante compreensíveis, mas, claro, bem duras, as nossas embaixadas sentem em elevado grau de emoções dos nossos cidadãos. Houve muitos casos dramáticos, em que as pessoas que tinham chegado na esperança de serem permitidos a embarcar não eram admitidos por desrespeitar os requisitos no preenchimento de formulários preparados pelos órgãos públicos e aprovados pelo Centro Operacional. Ou por tentar furar o algoritmo existente.
Conseguimos aliviar este problema em vários países em que isso era difícil: Marrocos, Montenegro, Egito, Filipinas, Chipre etc. Conseguimos levar para casa os passageiros de trânsito do Catar, da Coreia do Sul. Há grupos de turistas “suspensos”, cuja situação é agravada pelo facto de estarem em partes longínquas do mundo, em pequenas ilhas. Em particular, há pessoas retidas nas Fiji, nas Seychelles, na Guatemala, nos países africanos etc. Estamos, juntamente com os nossos colegas do Ministério do Transporte, do Ministério da Comunicação, da Agência Federal do Transporte Aéreo (Rosaviatsia), a elaborar soluções para retirar as pessoas de lá, para determinar para onde enviar os voos charter para poder trazer de volta os nossos cidadãos.
De acordo com as avaliações disponíveis, há cerca de 35-36 mil pessoas (1,5 mil a mais ou a menos) que estão na lista de espera querendo voltar. O senhor sabe que têm a prioridade aquelas que tinham chegado ao país de permanência atual depois de 1 de janeiro de 2020. Porém, quanto àquelas pessoas que tinham saído da Rússia antes desta data, existe uma abordagem individual, levando em conta o aspecto humanitário. Há pessoas que não estão lá só porque desejavam morar alguns anos no estrangeiro, mas por terem viajado a fim de aceder ao tratamento médico, ter cirurgias agendadas que exigiam a preparação e um determinado período de recuperação. Há várias dezenas destas pessoas. Tratamos delas em “regime manual”, ou seja, de acesso direto e de urgência. Há estudantes, professores, especialistas qualificados, empregados de representações estrangeiras de empresas russas, pessoas que haviam participado em intercâmbios culturais e científicos, famílias mistas: todas estas pessoas estão a aguardar pelo regresso para os seus lares.
A 9 de abril, o Primeiro-Ministro da Rússia, Mikhail Mishustin, realizou uma videoconferência. Na reunião foi aprovada a proposta do MNE que previa que as listas apresentadas pelo Ministério da Comunicação fossem aprovadas em Moscovo pelo Centro Operacional para serem logo transmitidas aos nossos diplomatas que estão nos respectivos países e que devem respeitá-las. Mas levando em conta os casos que frequentemente se manifestaram nas últimas semanas, os embaixadores têm que lidar com casos urgentes: trata-se de mulheres grávidas, membros de família que, por uma causa ou outra, não passaram a constar da lista, crianças. O chefe de governo delegou aos embaixadores os poderes de, em casos semelhantes, adicionar às listas os passageiros que devem voltar para a pátria com urgência.
Há sérios problemas provocados pela situação nos países de permanência. Por exemplo, os Emirados Árabes Unidos fecharam completamente a fronteira, por isso, temos tentado resolver esta situação em “regime manual”. Na Índia, informaram-nos há uma semana que as autoridades indianas precisavam de quatro dias para aprovar a possibilidade de qualquer voo. Há também problemas difíceis de prever. Por exemplo, há uns dias, em Goa, um cidadão nosso que aparentemente não estava muito preocupado pelas dificuldades em voltar, organizou uma festa para comemorar o seu aniversário natalício. Cerca de 60 pessoas festejaram até as seis horas da madrugada na praia, com os fogos-de-artifício e banhos no mar. Chegou a polícia local. Os participantes da festa dissiparam-se. Agora, são acusados de desordens em massa. Isso complica significativamente o trabalho dos nossos diplomatas.
Quero transmitir através deste meio (e faremos isso diretamente) o agradecimento aos nossos embaixadores, diplomatas, a esmagadora maioria dos quais gasta o seu tempo livre e o seu dinheiro, organizando o alojamento no território das embaixadas para pessoas que ficaram sem meios. No Nepal, não existia esta possibilidade, mas o embaixador assegurou que um campo de tendas seria organizado no território do Centro de Ciência e Cultura Russas. Duas ou três dezenas de cidadãos nossos estão a morar lá. É um de muitos casos da participação pessoal no destino dos compatriotas russos. Eu li ontem as mensagens dos nossos cidadãos agradecendo a nossa Embaixada no Peru e a ajuda da parte dos nossos empregados. Os compatriotas residentes nos países de permanência - em Nova Iorque, em outras cidades dos EUA, bem como em outros países – dispõem-se a alojar as pessoas em suas casas.
Pergunta: Muitos elogios estão ser dados às Filipinas.
Serguei Lavrov: Nas Filipinas, ajudaram-nos muito o Cônsul Honorário na província de Cebu, cidadão filipino, e os nossos compatriotas.
Mas restam muitos problemas. Mencionei a ajuda material que iniciámos. No momento atual, cerca de oito mil cidadãos nossos receberam pagamentos em dinheiro, restam cerca de 27 mil inscritos que podem vir a ser abrangidos por estes pagamentos diários. Há critérios de ajuda material para adultos e crianças, aprovados por respetiva portaria do Governo.
Muito está a ser feito. Claro que, por vezes, se cometem erros. É absolutamente evidente que são inevitáveis. A escala dos problemas é absolutamente inédita. Pelo menos, para os empregados que estão a lidar com eles. Não me lembro de uma situação análoga. Nós tentamos ajudar uns aos outros nos órgãos estatais. Estamos a colaborar ativamente com os colegas de outros órgãos, a trocar conselhos construtivos e positivos. Mas ao retirarmos grandes grupos dos nossos cidadãos de países chave, que são a Índia, a Indonésia, a Tailândia, a Turquia, teremos que ocupar-nos ainda com os grupos pequenos. Há cidades com algumas pessoas de nacionalidade russa: oito, dez, duas dezenas. Isso vai exigir a sua reunião em locais para os quais podem ser enviados os voos de regresso.
Estou a falar com tanto pormenor porque há muitas avaliações simplificadas. E as circunstâncias reais são muito mais difíceis. Isso exige a compreensão das dificuldades sentidas e vividas pelos nossos diplomatas.
Pergunta: Nas redes sociais e na comunicação social oficial há muitas pessoas a perguntar para que fazer que os cidadãos russos regressem, para que aplicar tais esforços, para que pagar-lhes em vez de gastar o dinheiro nas regiões russas. Qual é a sua opinião pessoal: é preciso facilitar o regresso?
Serguei Lavrov: Não estou a falar agora expressando somente a minha opinião pessoal. A minha opinião pessoal não conta. Mas eu devo reger-me pela Constituição e pelas leis da Federação da Rússia que exigem de nós fazer tudo para que os nossos cidadãos possam sair do nosso país e voltar livremente.
Pergunta: O senhor já comentou as insinuações do Ocidente a respeito de que a Rússia estaria a fazer a “propaganda” ajudando os outros países. Há perguntas que surgem ainda no nosso país: para que estaríamos a ajudar os habitantes dos EUA que tinham introduzido sanções contra a Rússia, a ajudar a UE e os outros países. Para que prestar assistência aos outros países se podemos fazer isso e deixar o dinheiro e meios para nós?
Serguei Lavrov: Primeiro, o Presidente Vladimir Putin já se pronunciou a este respeito. Ele referiu-se ao papel desempenhado por médicos e virólogos no combate à pandemia, particularmente na Itália, na Sérvia, na Bósnia, onde os virólogos militares russos estão a trabalhar. Sublinhou que se trata de uma parte pequena das capacidades do Exército que, caso seja necessário, serão utilizadas na Rússia em escala muito maior.
Para que ajudar? Porque somos a gente com certas tradições, inclusive espirituais. O assunto diz respeito não apenas à Itália e aos EUA. Pode ser que valha a pena falar mais sobre a ajuda prestada a todos os países da Comunidade de Estados Independentes (CEI) no fornecimento dos sistemas de teste, respiradores e muito mais. Prestamos ajuda também à Abkházia e à Ossétia do Sul. Hoje recebemos novos pedidos destes países que estamos a estudar. Nenhum pedido, seja da CEI ou da Abkházia e da Ossétia do Sul será desconsiderado.
Asseguro que as decisões tomadas em relação às verbas e aos equipamentos na qualidade de ajuda são se relacionam com as necessidades internas. Claro que levamos em conta que estamos a produzir em tempos reduzidos todos os aparelhos de ventilação mecânica e outros equipamentos. Mantemos contatos com o Ministério da Indústria e do Comércio da Rússia que fazem isso dia e noite. Eu não iria recorrer aqui à lógica de raciocínio de “haver aqui a falta disso tudo”: é uma tentação. Seguindo esta lógica, deveríamos deter ou suspender o fornecimento de cargas humanitárias que passarem através da Rússia – como alguns países já fizeram. Não acho que isso possa melhorar a reputação.
A propósito da postura de certos países. No decurso da ajuda ao regresso dos cidadãos russos, apareceu uma coisa muito desagradável. Resulta que 74 alunos de escolas russas tinham chegado aos EUA por uma via desconhecida. Quer dizer, não sabiam daquela viagem até as autoridades da Rússia, ninguém sabia à exceção das suas famílias. Soubemos disso há uns dias. Os alunos de escola haviam participado num programa de intercâmbio que foi coordenado pelo Departamento de Estado dos EUA que o tinha criado. O Departamento de Estado e as famílias anfitriãs dirigiram-se a nós dizendo: “O programa está suspendo em virtude do coronavírus, por isso convém levar as crianças embora”. A Embaixada está a tentar saber os detalhes. Alguns dos organizadores do programa informam que várias famílias pediram que as crianças saíssem, abandonassem as suas casas. Quero sublinhar que o MNE soube disso há uns dias, ninguém nos tinha informado sobre a existência deste programa, da situação dos escolares russos.
Há um tempo existia um programa semelhante de intercâmbios escolares, chamado FLEX. Vimo-nos obrigados e a cessá-lo depois de um caso: ao terminar a permanência de um grupo, uma criança foi convencida a ser adotada por uma família homossexual, contradizendo as obrigações dos EUA de fazer as crianças voltarem para as suas famílias. E agora, há uma nova história. Levando em conta a situação crítica, estamos a lidar com o assunto e a fazer os possíveis para encontrar o paradeiro das crianças em questão. Não sabemos onde estão. O Departamento de Estado tampouco pode transmitir todas as informações necessárias. Tais coisas acontecem nos EUA. Como com crianças adotadas: depois da adoção, pode ser difícil encontrar uma criança, saber onde foi parar a sua família.
Já enviámos as informações ao Ministério da Educação da Rússia para instar todas as escolas que pudessem ficar em situação semelhante. Insistimos que todos os pais se abstenham de consentir a qualquer programa educativo nos EUA se a respectiva viagem não for protegida por acordos do direito internacional, que, infelizmente, não temos com os EUA. No resultado, as Embaixadas têm que lidar com todo tipo de histórias.
Pergunta: Temos visto muitos comentários sobre a “hipótese de conspiração” que teria causado a pandemia atual. Houve declarações oficiais, com os representantes da China a acusarem os EUA e os EUA a acusarem a China. Qual das versões é a verdadeira? A pandemia é natural ou artificial?
Serguei Lavrov: Eu leio as mesmas coisas. Ouvi as declarações inglesas, norte-americanas a afirmar que “a China deve pagar trilhões por não ter alertado todos”. Paralelamente, o combate mortal entre os democratas e republicanos nos EUA não parou. Acusam o Presidente Donald Trump de ter sabido da ameaça potencial e tê-la menosprezado. Há comentários que vão no sentido oposto, a tentar provar o contrário.
Eu vi recentemente, lendo semelhantes teorias no jornal The Daily Mail, publicadas há dois ou três dias, que um laboratório situado em Wuhan realizava experiências sobre morcegos no âmbito de um programa financiado pelo Pentágono no montante de 3,7 milhões de dólares. Eis o The Daily Mail, só repito o que li. Isso não é somente interessante. É essencial compreender como foi na realidade.
Há hipóteses a evocar e apontar para os morcegos e outros animais, há conjeturas a indicar os Jogos Desportivos Militares em Wuhan, assistidos por uma delegação norte-americana que ocupava o hotel mais próximo daquele mercado etc. É preciso estudar isso, mas sem emoção, a cabeça fria, comparando os factos para melhor compreender a origem da crise e tirar lições para estarmos melhor preparados para eventuais pandemias futuras, sem buscar neste fluxo de informação só um meio de denegrir o seu concorrente.
Pergunta: Não podemos senão perguntar sobre as medidas pessoais de proteção que o senhor aplica. Disse que a metade dos empregados do MNE trabalha à distância. Como é o seu horário agora? O senhor teria algum conselho para se proteger do coronavírus? O Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, aconselha passar mais tempo a conduzir um trator, tomar um copo de vodka e não prestar atenção a tudo isso. Qual é o seu conselho?
Serguei Lavrov: Eu não iria ignorar alguns dos conselhos do Presidente da Bielorrússia. O meu gabinete de trabalho é bastante grande. Quando alguém chega, estamos sentados a dois metros um do outro. Lavo as mãos com maior frequência. Uso também medidas de desinfeção.
Pergunta: O senhor usa a máscara?
Serguei Lavrov: Não uso a máscara. Mas a maioria dos meus visitantes usa. As reuniões regulares, que antes eram organizadas cada semana e hoje são diárias, foram transferidas do meu gabinete para o salão de Colégio que tem a capacidade para aumentar o espaço entre os assentos. Na área de acesso ao MNE, no piso do Ministro, onde está situada a sala mencionada acima, estão colocados os postos de controlo com meios de desinfeção, termómetros etc. Nada de surpreendente, as coisas mais simples e evidentes.
Pergunta: Os altos funcionários como o senhor não são objeto de medidas especiais?
Serguei Lavrov: Claro que fazemos testes regulares. Os meus colegas e empregados do MNE também o têm feito. Pode ser que eu os faço com maior frequência, não sei.