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Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, à cadeia televisiva RT, Moscovo, 22 de dezembro de 2021

2670-22-12-2021

Pergunta: Os EUA continuam a teimar em desconsiderar as propostas da Rússia sobre mecanismos de segurança coletiva e os nossos pedidos para não cruzarem as "linhas vermelhas" traçadas por Moscovo. Isto diz respeito, em particular, ao avanço e à expansão da NATO para o Leste. Tenho duas perguntas a este respeito. Porque é que o senhor acha que eles se mantêm calados? Irá a Rússia tolerá-lo? Poderá o Ocidente coletivo, em princípio, aceitar as propostas da Rússia referentes à coexistência pacífica?

Serguei Lavrov: Esta questão é provavelmente a mais premente. Eu não diria que as nossas iniciativas são ignoradas. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, falou detalhadamente disso ontem durante o seu discurso na reunião alargada da Cúpula Dirigente do Ministério da Defesa da Rússia. Ele disse que, durante a mais recente videoconferência com o Presidente dos EUA, Joseph Biden, eles haviam discutido este tópico. Joseph Biden manifestou-se disposto a considerar as preocupações citadas pelo lado russo. Apresentámos a nossa visão de possíveis acordos. Um documento é uma proposta de tratado sobre questões da segurança entre a Federação da Rússia e os EUA, o segundo é uma proposta de acordo sobre questões da segurança entre a Rússia e a NATO. O Secretário-Geral da Aliança do Atlântico Norte, Jens Stoltenberg, não deixa de fazer declarações pouco adequadas. Está, no entanto, prestes a sair do cargo em breve. O seu mandato termina no final do ano. Dizem que ele vai trabalhar no Banco Central da Noruega (ou quer trabalhar lá, pelo menos). Aquele que trabalha num banco central deve fazer bem e minuciosamente o que está no cerne do funcionamento de uma ou outra instituição. A segurança europeia e euro-atlântica baseia-se numa série de princípios, entre os quais o princípio fundamental da segurança igual e indivisível, que foram acordados e assinados ao mais alto nível como compromissos políticos. De acordo com este princípio, os Chefes de Estado e de Governo estipularam sem rodeios que nenhum Estado euro-atlântico, nenhum Estado membro da OSCE reforçasse a sua segurança em detrimento da segurança de outros.

Já Jens Stoltenberg diz em voz alta, de forma bastante arrogante, que ninguém tem o direito de violar o princípio do Tratado de Washington, segundo o qual a porta está aberta a qualquer país "aspirante", em potencial, à adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte. Não fazemos parte desta estrutura, não somos signatários deste tratado. Todavia, somos signatários de um documento euro-atlântico mais amplo, de âmbito regional, que contém o princípio da indivisibilidade da segurança. Se o Senhor Stoltenberg acredita que os membros da NATO têm o direito de "se estar nas tintas" para este princípio consagrado nos documentos adotados ao mais alto nível, então está, talvez, na altura de mudar de trabalho, porque não está a exercer bem as suas atribuições. Quanto à reação real (e não à retórica que acabo de mencionar) dos nossos colegas norte-americanos, eu diria que foi concreta, indo direto ao assunto. Houve uma série de conversas entre os assistentes de política externa dos Presidentes da Rússia e dos Estados Unidos. No mais recente contacto, foram acordadas as modalidades organizacionais do nosso trabalho no futuro. Foi acertado que, logo no início do próximo ano, haja um contacto bilateral entre os negociadores russos e norte-americanos, uma primeira ronda. Os seus nomes já foram anunciados e foram aceites por ambos os lados. A seguir, planeamos, num futuro previsível (queremos fazê-lo em janeiro próximo), entabular negociações sobre o segundo documento, a proposta de acordo entre a Rússia e os países da NATO.

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversou, há dias, ao telefone com o Presidente da França, Emmanuel Macron, e o Chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, que também tinham interesse por este assunto.

O nosso Presidente reiterou que também levaremos a questão das garantias de segurança à Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).

Estão a patentear-se três vertentes. Existe um acordo, pelo menos entre Moscovo e Washington, para as usar. Não vejo razões por que esta abordagem seja contrária aos interesses de qualquer outro Estado da nossa região comum. Os norte-americanos disseram-nos que há toda uma série de preocupações nos nossos documentos que estão dispostos a discutir, e há as que não aceitam e que também têm preocupações. Estamos prontos a considerá-las, mas eles ainda não no-las apresentaram. Temos uma compreensão quanto aos aspetos organizacionais e temos muito trabalho pro fazer no que respeita aos aspetos substantivos. No entanto, como disse o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, este trabalho não pode ser infinito, porque as ameaças se têm acumulado constantemente à nossa volta ao longo das últimas décadas. A estrutura militar da NATO vem-se aproximando das nossas fronteiras. Temos sido regularmente enganados, de promessas verbais a compromissos políticos registados na Ata Fundadora Rússia-NATO. Desta vez, como disse o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, insistimos em haver garantias juridicamente vinculativas. Ao mesmo tempo, estamos conscientes de que o Ocidente pode, se o desejar, violar facilmente estas garantias jurídicas e retirar-se destes acordos, como aconteceu no caso do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, Tratado sobre Mísseis de Médio e Curto Alcance e do Tratado sobre o Regime de Céu Aberto. Mesmo assim, é muito mais difícil desvalorizar as garantias jurídicas proferindo "discursos ocos" (como ele disse) do que compromissos verbais ou politicamente registados. Estamos abertos a este trabalho. Faremos o nosso melhor para sermos compreendidos. Espero que, dadas as medidas que estamos a tomar para garantir de forma fiável a nossa capacidade de defesa, sejamos levados a sério.

Pergunta: Como sabe, a RT começou a transmitir em alemão. Em menos de uma semana, o nosso sinal foi "removido" do Eutelsat 9 sob pressão do regulador alemão. Estamos a ser ameaçados com uma ação judicial e um encerramento. Além disso, no dia do lançamento, o YouTube retirou o canal onde estávamos a transmitir. Quão consciente está o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia desta situação? Tem algum plano de ação para apoiar a nossa emissora e os nossos jornalistas?

Serguei Lavrov: Estamos a par desta situação. A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, comentou-a várias vezes. Acompanhamos de perto o trabalho dos nossos jornalistas no estrangeiro, dados os casos de discriminação de que são constantemente alvo. Até à data, a RT e a Sputnik não foram acreditados no Palácio do Eliseu. Em recente conversa telefónica com o Presidente da França, Emmanuel Macron, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, salientou-o em especial e manifestou a esperança de que os nossos colegas franceses fizessem os possíveis para que os meios de comunicação social russos (incluindo a RT) gozassem na França do mesmo conforto dos mass media franceses na Rússia.

Queremos que este mesmo princípio se aplique à RT na Alemanha e a qualquer outro meio de comunicação social russo que sofre de discriminação no estrangeiro. Penso que o caso ocorrido na Alemanha é gritante. Desde o início, foram as autoridades alemãs (embora funcionários governamentais daquele país tentassem alhear-se das as ações dos "reguladores") que tudo fizeram para criar uma imagem negativa da emissora na sociedade alemã e entre as estruturas oficiais. Tudo começou com as tentativas de bloquear os serviços bancários para a RT, depois as autoridades alemãs recusaram-se a registar a emissora e proibiram o Luxemburgo a fazê-lo. Agora os nossos colegas na Sérvia registaram o canal RT em alemão, de acordo com a Convenção Europeia sobre a Televisão Transfronteiras, da qual a Alemanha é parte e a qual tem de cumprir.
A julgar por tudo, vão agora responsabilizar novamente as redes sociais e o YouTube, alegando que esta iniciativa foi deles, que eles têm os seus próprios "critérios" e que a Alemanha não tem nada a ver com isso. Tem e deve ter algo a ver com isto porque a Alemanha assinou e assumiu todos os compromissos referentes à liberdade de acesso à informação. A responsabilidade não de plataformas como Youtube, mas sim do Estado em cujo território nacional as arbitrariedades ocorrem.

A discriminação contra os meios de comunicação social russos tem vindo a ocorrer há muitos anos. Temos sido muitas vezes tentados a retaliar. Mas até recentemente, estávamos convencidos de que não queríamos enveredar pelo mesmo caminho dos nossos parceiros ocidentais de "sufocar" a imprensa e os meios de comunicação social nesta situação. Todavia, como no caso da segurança russa, toda a paciência tem limite. Não excluo que, se esta situação inaceitável continuar, teremos de responder.

Pergunta: No ano passado, a América Latina teve alguns acontecimentos importantes. Por exemplo, as recentes eleições no Chile foram vencidas por Gabriel Boric, representante da esquerda, os esquerdistas venceram as eleições nas Honduras. A esquerda permanece no poder na Nicarágua e na Venezuela. Ao mesmo tempo, os EUA continuam a considerar esta região como zona dos seus interesses. O senhor acha que a mudança das políticas em alguns destes países é um sinal de que a América Latina se vem tornando mais autônoma no plano político ou, como os norte-americanos acreditam, continuará a ser "sua" região, seu "ventre mole" que se norteia pelas regras estabelecidas pelos EUA no espírito da recente Cimeira pela Democracia?

Serguei Lavrov: Nos últimos 50 a 60 anos, a América Latina tem sofrido mudanças políticas, dando guinadas à esquerda ou à direita. Agora assistimos a outra onda de chegada ao poder de forças saudáveis, orientadas para os interesses nacionais. Penso que esta onda reflete uma tendência geral de grande fracasso do projeto "neoliberal". Gostaria de salientar o seguinte: a Federação da Rússia nunca construiu as suas as relações com a América Latina em função de qual o governo que estava lá no poder. Queremos desenvolver a amizade, cooperação mutuamente benéfica com países e povos, e não com este ou aquele governo, em função das suas preferências políticas. Ao contrário dos EUA, não vemos a América Latina como campo para jogos geopolíticos. A atual administração dos EUA já não reproduziu as declarações do ex-assessor de segurança nacional de Donald Trump, John Bolton, de que a Doutrina Monroe estava viva. Todavia, em questões práticas esta atitude, esta mentalidade ainda se faz sentir, inclusive nas políticas concretas promovidas pelos EUA.

Trabalhamos com todos os países e organizações sub-regionais da América Latina e das Caraíbas, sem exceção. Só no último ano tive contactos com os meus colegas do México, Venezuela, Bolívia, Brasil, Guatemala, Nicarágua, Honduras, Cuba e Belize. Em Nova Iorque, à margem da Assembleia Geral, encontrei-me com representantes do sistema de integração centro-americano. "À margem” do G20, tive uma reunião com o meu colega da Argentina. Temos sempre salientado que, no que respeita às relações bilaterais, estamos interessados na cooperação despolitizada.

Em relação às estruturas e organizações multilaterais, como a maioria dos países da América Latina, defenderemos os valores, normas, objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas. No ano passado, por iniciativa da Venezuela, foi criado o Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas. Ganhou rapidamente mais de 20 apoiantes. Tenho a certeza de que os países, incluindo os da América Latina, irão aderir a este mecanismo. Em certa medida, ele responde às tentativas dos EUA e dos seus aliados mais próximos de "se distanciar" do direito internacional e basear as suas declarações, argumentos e políticas na "ordem mundial baseada em regras" por eles inventada. As "regras" são formadas pelo grupo restrito destes países onde ninguém exprime pontos de vista alternativos e onde não há discussões. Por isso, ali da discussão não nasce a verdade.

Ao mesmo tempo, vejo que a atual administração norte-americana começa a ter uma visão um pouco mais pragmática do que está a acontecer. Está a começar a considerar ações diferentes em relação à Venezuela. Começa a compreender que, de qualquer maneira, terá de dialogar com o governo do Presidente Nicolás Maduro, que confirmou o seu mandato após as eleições. Uma situação semelhante verifica-se no caso da Bolívia, onde a verdadeira democracia foi restaurada após as ações bastante duvidosas dos governantes anteriores, etc. Espero que as realidades de um país como a Nicarágua sejam compreendidas e aceites por Washington. Somos a favor de potências extrarregionais promoverem ativamente uma identidade latino-americana das Caraíbas como um dos principais e importantes polos da ordem mundial policêntrica emergente. Valorizamos o nosso relacionamento com as estruturas regionais e sub-regionais da região, especialmente a Comunidade dos Estados da América Latina e Caraíbas (CELAC), com a qual temos um mecanismo de consulta política. Houve uma breve pausa devido à pandemia. Os mexicanos estão a presidir ao CELAC nesta fase e querem retomar estas reuniões. Vamos apoiar ativamente esta tendência. Entre as áreas em que cooperamos, mencionaria a alta tecnologia, energia, agricultura, espaço, energia nuclear, medicina e saúde. Vários países da América Latina, o México, o Brasil, a Argentina, a Nicarágua, já receberam a nossa tecnologia de produção de vacinas. Estão a estudá-la e a instalar a sua produção. Penso que estes contactos darão um impulso a uma interação mais inclusiva nos campos de produtos farmacêuticos, saúde e medicina.

Pergunta: Muitas perguntas são de interesse para a nossa audiência árabe que conta com milhões de espectadores. Infelizmente, temos pouco tempo, pelo que não podemos fazer todas as perguntas. Gostaria de fazer uma pergunta sobre o Irão. O Ocidente continua a acusar o Irão de continuar a escalada nuclear, o que acreditam poder levar ao colapso das negociações sobre o JCPOA. Ao mesmo tempo, Teerão diz que a UE está a divulgar desinformação em vez de entabular negociações sérias. Qual é a posição da Rússia e o que é necessário para que estas conversações tenham êxito?

Serguei Lavrov: Para minha tristeza, os nossos parceiros ocidentais estão a tentar distorcer os factos da maneira que citei na minha resposta à sua pergunta anterior, ou seja, à primeira. A NATO vem a correr para junto das nossas fronteiras, acusando de escalada a Rússia, cujas forças armadas não saem do seu território nacional. Aqui se verifica a mesma coisa. A administração Trump retirou-se de todos os acordos: do próprio Plano de Ação Conjunto Global e da resolução do Conselho de Segurança que o havia aprovado, culpando o Irão por tudo. Quando Donald Trump fez isto, os iranianos não tomaram quaisquer medidas que divergissem dos seus compromissos no âmbito do JCPOA durante mais de um ano.

Só quando ficou claro que a decisão de Washington era irreversível é que os iranianos aproveitaram as oportunidades que o próprio JCPOA lhes proporcionava e que diziam respeito aos compromissos assumidos voluntariamente por Teerão em relação a alguns aspetos do seu programa nuclear. Apenas limitaram ou deixaram de cumprir os compromissos assumidos voluntariamente, salientando constantemente: "sim, estamos a fazê-lo, estamos a aumentar as percentagens de enriquecimento ou a lançar centrífugas tecnologicamente mais avançadas, mas assim que os Estados Unidos voltem a cumprir plenamente os seus compromissos, não tardaremos a voltar". É este princípio, esta posição que estão agora no cerne das negociações que atualmente em Viena. Houve seis rondas de conversações entre abril e junho, durante as quais os norte-americanos e os iranianos não estiveram à mesma mesa. Uma equipa de coordenadores do Serviço Europeu para a Ação Externa e delegações da China, Rússia, França, Alemanha e Reino Unido trabalharam no local. As seis rondas resultaram num "pacote de entendimentos" que permita ter esperança de que pudéssemos chegar a um acordo definitivo. Depois houve uma pausa devido ao Irão estar a formar um novo governo após as eleições. Os nossos colegas ocidentais ficaram nervosos, impacientes, exortando o Irão a fazer tudo isto, o mais rapidamente possível. Lembramos-lhes que o Irão havia esperado mais de um ano que os norte-americanos retomassem este entendimento e se retirou sem ver o resultado esperado. Portanto, isso era natural.

Eu não dramatizaria demasiado a situação. A atual equipa iraniana é nova. Todavia, estudou e compreendeu o material muito rapidamente, com rigor profissional. Preparou propostas que foram inicialmente rejeitadas pelos participantes ocidentais. No final de contas, reconheceram que estas propostas tinham o direito de existir e de ser estudadas. É exatamente assim que o trabalho está a decorrer agora. Não houve questões substantivas, antes as da imagem. Quem deveria ser o primeiro a dizer: "é isso, cá estou de volta a cumprir os meus compromissos?" Os EUA ou o Irão? O Irão estava convencido de que deviam ser os norte-americanos a fazê-lo, porque os norte-americanos foram os primeiros a retirar-se do JCPOA. Os norte-americanos acreditavam que o Irão havia começado a descumprir os seus compromissos e, independentemente do facto de Washington não ter cumprido de todo os seus compromissos, o Irão deveria dar o primeiro passo. Nós, juntamente com os nossos amigos chineses e com alguma compreensão por parte dos participantes europeus, pronunciámo-nos a favor da sincronização deste movimento para que houvesse um pacote de contrapassos. É isso que os negociadores em Viena estão a fazer agora. Fizeram uma pequena pausa para o Natal católico, devendo retomar as conversações até ao final do ano. O que o Irão reitera é que, se os EUA voltarem a cumprir os seus compromissos e deixarem de ameaçar com sanções que são incompatíveis com o JCPOA e a Resolução 2231, o Irão voltará a cumprir os seus compromissos, incluindo o Protocolo Adicional ao seu Acordo de Salvaguardas Abrangentes com a AIEA. Penso que temos uma boa oportunidade. É importante ter em mente que o princípio que está na base deste trabalho e o qual todos aceitam é o seguinte: nada está acordado até que tudo esteja acordado. Deve haver um pacote adequado e bem ponderado, o que é bastante realista.

Pergunta: Como é do seu conhecimento, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drian, advertiu as autoridades russas das "consequências extremamente graves" se a Rússia invadir a Ucrânia. Pode dizer-nos por que razão, na sua opinião, os contactos das "chancelarias" ocidentais connosco têm ultimamente assumido a forma de ameaças incessantes?

Serguei Lavrov: É melhor o senhor dirigir a sua pergunta a elas. Isso não me dá prazer nem me desperta nenhumas emoções negativas. Estamos habituados a ver os nossos colegas ocidentais falarem com arrogância e fazerem declarações que refletem a sua autoperceção como árbitros dos destinos e políticos impecáveis, irremediavelmente convencidos de que têm sempre razão. Ouvimos muitas vezes os líderes franceses terem declarado que seriam exigentes num diálogo com a Rússia. Está a ver, estão a ser exigentes. Parece-me que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e outros representantes do governo russo têm abordado muitas vezes o tema da "escalada" pela qual ameaçam punir-nos, e penso que já estão mesmo a elaborar um pacote de sanções para fazer um estoque (temos agora um serviço semelhante nas redes sociais, quando as pessoas compram alimentos para fazer provisões). Pode ser que, do ponto de vista dos nossos colegas ocidentais, esta prática também vale na política.

Já lhes explicámos muitas vezes o que as nossas forças armadas estão a fazer exercícios no nosso território nacional. Ao mesmo tempo, perguntamos-lhes o que os norte-americanos, os canadianos, os britânicos, o seu material de guerra de ataque e a sua aviação de combate estão a fazer nas imediações das fronteiras da Federação da Rússia, em particular nos países bálticos. E o que os seus navios estão a fazer enquanto navegam no Mar Negro com desvios significativos em relação às normas estabelecidas na Convenção de Montreux. Não recebemos nenhumas explicações claras, apenas ameaças. Em vez de fazer ameaças desmotivadas, os nossos colegas europeus fariam melhor se se dedicassem a exercer as suas funções diretas. A França, neste caso juntamente com a Alemanha, deveria obrigar Kiev a cumprir os acordos de Minsk e não desviar a atenção (como está a tentar fazer), usando como cortina de fumo as acusações contra a Rússia no sentido de esta estar a aumentar a escalada e estar prestes a conquistar Donbass, em parte ou na totalidade, ou toda a Ucrânia. Isto é óbvio.

Vladimir Zelensky e o seu regime estão a pedalar desenfreadamente o tema da Crimeia. Afinal, não havia nada disso há um par de anos. Naquela altura, ainda havia esperança de que Kiev cumprisse, de alguma forma, os acordos de Minsk, o que Vladimir Zelensky prometeu quando se candidatou à Presidência do país. Após subir à Presidência, ele percebeu que ou não queria fazê-lo ou não podia fazê-lo ou os neonazis e outros ultrarradicais não o deixariam fazê-lo. Foi então que surgiu o tema da Crimeia como quase o principal símbolo da política externa ucraniana, para desviar as atenções da sua plena impotência no que se refere ao cumprimento dos acordos de Minsk. Daí a "Plataforma da Crimeia" e tudo o que a acompanha. Tudo isso não passa de declarações ocas e de palavreado. Todo o mundo, incluindo os nossos colegas ocidentais que estão a brincar com este "brinquedo". O que devem fazer a sério e sem quaisquer jogos é obrigar Vladimir Zelensky a cumprir a resolução 2202 do Conselho de Segurança que aprovou os acordos de Minsk onde está escrito sem rodeios quem deve fazer o quê e qual deve ser a sequência das ações. Assim sendo, a sequência é a seguinte: Kiev, Donetsk e Lugansk; anistia, estatuto especial, realização de eleições em condições acordadas entre Kiev, Donetsk e Lugansk e sob os auspícios da OSCE. E só então as Forças Armadas da Ucrânia deverão restabelecer o controlo sobre a fronteira em toda a sua extensão. Agora propõem fazer o contrário: "deixem-nos controlar a fronteira e depois veremos se teremos algum tipo de procedimento de estatuto especial ou teremos outras soluções". Vejamos o projeto de lei ao qual o Presidente Vladimir Putin se referiu muitas vezes nos seus contactos com o Presidente Emmanuel Macron e com a Chanceler Angela Merkel e no seu contacto de ontem com o Chanceler Olaf Scholz. Chama-se "Da Política Nacional de Transição". Apresentado pelo governo ucraniano para a apreciação do parlamento da Ucrânia, o documento estabelece a proibição para que os funcionários governamentais cumpram os acordos de Minsk e propõe aplicar lustração no lugar da anistia, colocar a região sob uma administração civil-militar em vez de lhe conceder um estatuto especial e não realizar nenhumas eleições acordadas com esta região da Ucrânia, limitando-se apenas ao "restabelecimento do controlo sobre os territórios ocupados", como eles afirmam. Apesar das promessas dos franceses e alemães de dissuadir Vladimir Zelensky de promover este diploma, eles ajudam-no a implantá-lo no processo legislativo, para o que pediram consulta ao Conselho da Europa. A Comissão de Veneza disse-lhes que tudo estava bem. Há alguns comentários sobre a técnica jurídica, mas a Comissão de Veneza não "disse" uma só palavra no sentido de este documento ir diretamente contra a resolução do Conselho de Segurança da ONU.

Tenho um pedido encarecido ao meu bom camarada Jean-Yves Le Drian e aos meus colegas alemães para que tratem deste assunto, como sói dizer-se: são coisas que Deus manda fazer. Isso desviaria a sua atenção das suas preocupações infundadas com a escalada inexistente.

Pergunta: Os meios de comunicação social ocidentais continuam a instigar emoções por causa da crise ucraniana. A CNN, por exemplo, "transmite" há muito sobre milhares de soldados russos concentrados na fronteira ucraniana. O senhor já disse muitas vezes que estas ações são uma operação especial, pelo que a Rússia deu, em novembro passado, um passo inédito, ao publicar as conversações diplomáticas com a França e a Alemanha. Foi então dito que isto foi feito para que a posição da Rússia sobre o processo de paz ucraniano não fosse distorcida. Diga-me, por favor, esta publicação atingiu o resultado esperado?

Serguei Lavrov: Tenho a certeza de que esta ação não foi em vão. Não estou a tentar apelar à consciência de ninguém, nem a tentar despertar sentimentos de vergonha em ninguém. Trabalhamos no setor diplomático onde as emoções não são os melhores conselheiros. É preciso ter-se, como dizia um dos meus colegas, um cinismo saudável. Em termos de cinismo saudável, as negociações em causa foram exemplares, desmentido completamente as alegações, feitas antes de "pormos as cartas na mesa", de que a Rússia estaria a bloquear o trabalho do formato Normandia de todas as formas possíveis. Isto não é verdade. Estamos muito preocupados ao ver que Kiev está a deturpar os acordos de Minsk, colocando o seu conteúdo de "pernas para o ar". Eu já lhe disse, respondendo à sua pergunta anterior, que os franceses e os alemães, como coautores deste documento, como participantes no formato Normandia, estão a começar a tomar o lado do regime ucraniano.

Costumavam dizer-nos que os acordos de Minsk não tinham alternativa e que todos tinham de os cumprir. A 12 de outubro passado, realizou-se uma cimeira Ucrânia-União Europeia onde se afirmou que a Rússia "devia" e que o regime de Kiev era "bom", pois cumpria bem os seus compromissos no formato Normandia e no Grupo de Contacto. Recentemente, os líderes da Alemanha e da França reuniram-se com o Presidente Vladimir Zelensky em Bruxelas, à margem da Cimeira da Parceria Oriental. Também apoiaram sem reservas as ações de Kiev para cumprir os acordos de Minsk. Ou os nossos colegas reconheceram que não são capazes de garantir a implementação do que eles próprios haviam elaborado em cooperação connosco ou que optaram por minar conscientemente os acordos de Minsk para beneficiar o regime de Kiev. Não sei como é que a situação se vai desenvolver, mas vamos insistir na rigorosa implementação destes documentos, porque é impossível ler o que neles está escrito de uma forma diferente. Os documentos dizem: primeiro, um cessar-fogo, a retirada de armas pesadas, o restabelecimento de laços económicos, o que não só não foi feito, como existe um contínuo bloqueio comercial, económico e de transporte de alguns distritos das regiões de Lugansk e de Donetsk.

Quando emitimos passaportes russos à população local para que não fique à beira da extinção e facilidades às empresas locais para que estas possam atuar no mercado russo e proporcionar algum rendimento aos seus empregados, somos acusados de minar os acordos de Minsk.

Quanto à cidadania, isso me causa riso. Polacos, húngaros e romenos emitem passaportes para os seus irmãos étnicos residentes na Ucrânia. Este tem sido o caso há décadas e ninguém tem tido nenhuma preocupação a este respeito. Agora a Rússia está a ser "criticada" e não apenas pelos extremistas de Kiev. O Ocidente começa também a apoiá-los, juntando-se à sua "canção".

Na cimeira de Genebra, o Presidente dos EUA manifestou-se interessado (sem prejudicar o formato Normandia, como ele disse) em utilizar as capacidades dos EUA para ajudar a implementar os acordos de Minsk, sublinhando que ele compreendia perfeitamente que eles implicavam a concessão de um estatuto especial a esses territórios. Apoiámo-lo ativamente. O mesmo princípio foi discutido durante a visita a Moscovo da Secretária de Estado Adjunta dos EUA, Victoria Nuland. Depois, a Secretária de Estado Adjunta, Karen Donfried, veio aqui para discutir connosco os assuntos ucranianos. Todos eles reiteraram a necessidade de definir um estatuto especial para Donbass, em conformidade com os acordos de Minsk. O Secretário de Estado, Antony Blinken, disse-me o mesmo em Estocolmo, à margem do Conselho Ministerial da OSCE, no início de dezembro.

Tenhamos esperança de que, se os EUA compreenderem a necessidade de pôr fim à sabotagem flagrante e às arbitrariedades praticadas pelo regime de Kiev, só ficaremos satisfeitos. Alguns politólogos gostam de fazer suposições sobre se haverá alguma "troca". Dizem que os acordos de Minsk podem ser implementados, então podemos acordar algumas medidas de contenção no contexto das iniciativas, apresentadas pela Rússia, sobre garantias de segurança, incluindo garantias de não alargamento da NATO ao Leste e não instalação nos territórios dos nossos países vizinhos de armas que nos ameacem e possam constituir uma ameaça para a Federação da Rússia. Não vou comentar estas "suposições". Tanto uma coisa como outra são essenciais para nós, a plena implementação dos acordos de Minsk, incluindo a exigência de a Ucrânia garantir os direitos das minorias nacionais (como consagrados tanto na Constituição da Ucrânia como nas convenções europeias de que o Estado ucraniano é membro), e aquilo que diz respeito garantias de segurança mais amplas e à clareza e previsibilidade nas relações entre a Rússia e a Aliança do Atlântico Norte.

Pergunta: O que o senhor acha da probabilidade do agravamento da situação e como o seu Ministério reagirá neste caso?

Serguei Lavrov: A nossa filosofia é bem conhecida há muito tempo. Está refletida na letra de uma famosa canção: "Quererão os russos uma guerra?" Não queremos guerra. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse-o uma vez mais, não queremos conflitos, e esperamos que mais ninguém queira conflitos. Defenderemos firmemente a nossa segurança por todos os meios que considerarmos necessários. Uma advertência para os "cabeças quentes", são muitos na Ucrânia. No Ocidente também há políticos que estão a tentar fomentar estas tendências agressivas na Ucrânia. O seu motivo é simples: quanto mais fatores irritantes houver nas nossas fronteiras, mais chances terão para desequilibrar a Rússia para que não interfira com eles quando quiserem explorar alguns territórios geopolíticos. Ontem, durante a reunião da Cúpula Dirigente do Ministério da Defesa da Rússia, o Presidente Vladimir Putin deixou bem claro: temos todas as capacidades necessárias para dar uma resposta adequada, incluindo técnico-militar, a quaisquer provocações que possam ser empreendidas à nossa volta. Quero dizer mais uma vez que não gostaríamos de escolher este caminho, o caminho da confrontação. Cabe agora aos nossos parceiros escolher. Que a liderança dos Estados Unidos foi bastante rápida ao acordar connosco a "moldura" organizacional do nosso futuro trabalho (apesar do trabalho sério que temos pela frente sobre o âmago do problema) é, na minha opinião, um passo positivo na véspera da passagem do ano.

Pergunta: O senhor mencionou a mudança na posição alemã sobre os acordos de Minsk. Durante os últimos anos, as relações bilaterais entre a Rússia e a Alemanha têm vindo a deteriorar-se. O governo de Berlim tem vindo a acusar Moscovo disso. Qual é, na sua opinião, a causa disso?

Serguei Lavrov: Já abordei este tópico. Ouça o que dizem a Ministra da Defesa da Alemanha, Christine Lambrecht, e o que disse a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, quando esteve no Governo alemão e o que diz agora em nome da estrutura por ela chefiada. O texto é aproximadamente o seguinte: estamos interessados em relações normais com a Rússia, mas, primeiro, ela deve "mudar o seu comportamento". Tive uma conversa telefónica com a Ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock. Tivemos uma boa conversa. Reiterei o nosso convite para ela visitar a Rússia, ela vai fazê-lo. Notei que o acordo de coligação do novo Governo alemão contém uma tese sobre a profundidade e diversidade das relações russo-alemãs, reflete o seu desejo de manter um diálogo construtivo. Reflete igualmente outras atitudes para com as relações com a Rússia: "mantras" injuriosos sobre a violação da nossa sociedade civil em todo o lado, exigências de pararmos de desestabilizar a situação na Ucrânia e muito mais.

A tradição da democracia alemã é tal que as coligações governamentais são compostas de formas absolutamente diferentes e nem sempre são homogéneas. Isso é vida. Tomamos isso como coisa dada. À frente da coligação está o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD). É aos nomes dos líderes do SPD que estão associados os períodos de interação, coexistência e cooperação mutuamente benéfica entre Moscovo e Berlim mais produtivos. Esperamos que os parceiros da coligação do SPD também dispensem uma maior atenção à elaboração de uma agenda positiva connosco. Uma posição que pressupõe inequivocamente que o outro lado faz tudo certo e é impecável e cabe à Rússia "mudar o seu comportamento", não é viável.

Pergunta: A presença de tropas norte-americanas continua a ser uma ameaça sensível à integridade territorial da Síria. A Rússia tem exortado repetidamente os EUA a retirarem as suas tropas, mas estas ainda lá permanecem. Quanto tempo vai durar este problema? O que poderia levar os EUA a retirar as suas tropas? Quais são os seus verdadeiros objetivos?

Serguei Lavrov: Os seus verdadeiros objectivos são bastante claros. Os norte-americanos não os têm escondido muito. Tomaram sob o seu controlo a extração de hidrocarbonetos, os jazigos na margem oriental do Eufrates e as terras agrícolas e estão a cultivar ali o separatismo curdo de todas as formas possíveis. Todos sabem disso. Os territórios onde isso está a acontecer atingem parcialmente as terras tradicionais das tribos árabes. Isto não acrescenta harmonia e credibilidade aos "planeadores" de ações norte-americanos na vertente síria, incluindo o fator curdo e as relações entre curdos e árabes.

A situação no país é complicada devido à posição da Turquia. As organizações curdas que colaboram com os norte-americanos são vistas por Ancara como ramos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão considerados pelo governo turco como terrorista. Os próprios curdos (em particular a ala política do partido da Aliança Democrática, o Conselho Democrático Sírio) têm de tomar uma decisão. A certa altura, o ex-Presidente dos EUA, Donald Trump, disse que se estavam a retirar da Síria e que não tinham nada a fazer naquele país. Os curdos começaram imediatamente a pedir (incluindo a nós) para ajudar a estabelecer um diálogo com Damasco. Alguns dias mais tarde, a declaração de Donald Trump foi retratada: alguém no Pentágono disse que eles ainda não se iriam embora. Os curdos perderam imediatamente o interesse por um diálogo com o governo sírio. Há que compreender que, no final de contas, os norte-americanos ir-se-ão embora. Estão agora a ter mais problemas onde impõem as suas regras, incluindo o campo de refugiados de Rukban e a zona de 55 quilómetros em redor de Al-Tanf, mas não podem assegurar a viabilidade destas estruturas. Além disso, muitos bandidos e terroristas têm-se acumulado entre os refugiados. Estou convencido de que os curdos devem tomar uma posição de princípio. Estamos dispostos a ajudá-los. Eles pretendem visitar-nos. Recentemente, recebemos a visita de Ilham Ahmed, Presidente do Comité Executivo do Conselho Democrático Sírio.

Explicamos aos nossos colegas turcos que não queremos alimentar uma tendência negativa na Turquia. Pelo contrário, o nosso objetivo é ajudar a garantir que a soberania e a integridade territorial da Síria sejam respeitadas na prática. A consideração dos interesses das minorias nacionais é uma das condições-chave. Os EUA compreendem que ali se sentem desconfortáveis. Enquanto lá estiverem, o diálogo entre os militares é bastante eficaz em termos de prevenção de incidentes não intencionais. Mantêm-se consultas, com um grau de confiança bastante elevado, sobre o processo político e as perspetivas de implementação da resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Pergunta: Recentemente, o Assessor de Segurança Nacional do Presidente dos EUA, Jake Sullivan, disse francamente que os EUA estão a tentar ativamente transformar a ordem mundial existente formando novas alianças, parcerias e instituições concebidas para servir os interesses de Washington. Quão ameaçadoras são estas tentativas para a influência da Rússia? Que medidas concretas estão a ser tomadas pelos diplomatas russos e pela liderança da Rússia para impedir que a ONU se torne menos eficaz?

Serguei Lavrov: Este não é um tópico novo. Já mencionei que os EUA e os seus aliados deixaram de utilizar o termo "direito internacional". Falam da necessidade de todos respeitarem a "ordem mundial baseada em regras". Este tema é da mesma categoria. O sistema da ONU possui um grande número de programas, fundos, instituições especiais, comissões económicas regionais em que todos os países sem exceção estão representados. Estes organismos estão abertos a todos os membros da Organização. Ao mesmo tempo, para estes mesmos assuntos são criados fóruns extra-ONU.

No Fórum da Paz de Paris, foi anunciada a criação de um mecanismo para proteger os jornalistas e a liberdade dos media, além de muitas outras iniciativas no domínio da segurança no ciberespaço e do reforço do direito humanitário internacional. Para tratar de todas estas questões, temos a UNESCO, o Conselho de Direitos Humanos da ONU ou outra estrutura onde todas as regras são universalmente acordadas. A Carta das Nações Unidas é também uma regra. Não somos contra as regras como tais, se estas regras foram apoiadas por todos.

Os nossos colegas ocidentais veem uma ameaça aos seus interesses em toda uma série de áreas (liberdade de imprensa, acesso à informação, a situação no ciberespaço). Dizem que, se "nos sentarmos" num fórum universal do sistema da ONU para acordar regras que sejam aceitáveis a todos, isso afetará os seus interesses, os quais eles pretendem tornar unilateralmente preferíveis nesta ou naquela esfera da atividade humana. É daqui que tudo provém. O Ocidente quer que não só os governos, mas também o empresariado e a sociedade civil estejam presentes nos fóruns onde ele cria as suas "regras", diluindo assim a natureza intergovernamental dos acordos que podem ser sustentáveis. Esta é a política que eles estão a promover de forma empenhada. Acreditamos que esta é uma interpretação errada do que é necessário hoje em dia para as relações internacionais.

O meu colega, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que os EUA não podem deixar de desempenhar um papel de liderança, de definir "regras" no mundo de hoje. Alegadamente, muitos dos seus interlocutores (praticamente todos em todo o globo) dizem sempre que é bom os EUA estarem de novo no comando. Antony Blinken acrescenta que quando não o fazem, ou outro país toma o controlo ou surge o caos. Esta filosofia é egoísta. Para vencer as tendências de regresso ao diktat, à hegemonia, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, propôs convocar uma cimeira dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Não porque sejam mais importantes do que os outros, mas porque, ao abrigo da Carta das Nações Unidas, têm uma responsabilidade especial de elaborar ideias conjuntas de como reforçar a paz e a segurança internacionais. Tais recomendações seriam bem-vindas pelo resto da comunidade internacional.

Estamos a promover esta ideia; ela está a ser considerada. Estamos agora a discutir parâmetros concretos na fase preparatória. Utilizá-la-emos ativamente para defender o direito internacional e as organizações em que a Rússia participa: a ONU, CEI, OTSC, UEE, BRICS, OCX e G20. "O G20 é uma imagem "concentrada" de todo o espectro dos membros da ONU. Integra os principais países do Ocidente (o G7), os países BRICS e os seus correligionários. Este é precisamente um fórum onde as recomendações podem e devem ser elaboradas e depois submetidas para apreciação dos formatos universais, sobretudo as Nações Unidas.

Pergunta: O Tribunal de Haia sobre o caso MH17 rejeitou o pedido da defesa de revelar os dados da testemunha S-45 e de fornecer o registo do seu interrogatório em que afirmou que o míssil que havia abatido o Boeing malaio não teria sido lançado do local indicado pela investigação. Quando será anunciada a decisão judicial sobre este caso? Como irá a Rússia reagir à acusação contra ela?

Serguei Lavrov: Quando a decisão for anunciada, teremos uma palavra a dizer sobre o assunto. Estamos agora a acompanhar de perto o processo, principalmente porque se trata dos cidadãos russos que estão a ser julgados nesta fase. Registamos as tentativas de criar a impressão de que não se trata de um caso criminal, mas sim de um problema a nível governamental, porque se afirma que a Rússia teria comandado estas pessoas. Isto é totalmente inaceitável e representa tentativas com meios impropriados. Este é um processo intrinsecamente criminal e encaramo-lo como assim sendo. Qualquer advogado imparcial compreenderá que é este o caso. Registamos um grande número de inconsistências, violações das regras da imparcialidade e da manutenção de registos, entrevistas a testemunhas. Os nomes de quase todas as testemunhas, inclusive aquela acima mencionada e que poderia lançar luz sobre os factos ainda ignorados pela investigação, são mantidos em sigilo. O facto de o pedido do advogado dos arguidos ter sido rejeitado sem qualquer explicação também fala por si. Ignoraram os resultados da experiência à escala real realizada pelo Consórcio Almaz-Antey. Os resultados obtidos mostram que a alegação sobre o tipo concreto do míssil utilizado não é sustentada pelos factos. O nosso Ministério da Defesa forneceu documentos que confirmam que o míssil em questão foi produzido em 1986, entregue a uma unidade militar estacionada na Ucrânia e aí permaneceu até ser utilizado. Tudo isto é ignorado.

Quero salientar os factos que, sendo mais políticos, são muito convincentes. Quando o acidente aconteceu, os representantes da Malásia foram os primeiros a chegar ao local. O avião pertencia à sua companhia aérea. Eles, juntamente com as milícias (chamadas "separatistas", "terroristas", etc.) encontraram as "caixas negras". As milícias entregaram-nas para análise, sem fazer qualquer tentativa de as esconder. As "caixas" foram enviadas para Londres para análise pericial, cujos resultados ainda não foram divulgados. Ou seja, as milícias ajudaram a examinar a situação nas primeiras horas posteriores ao acidente. Os holandeses vieram para lá muito mais tarde. Um aspeto a assinalar: os Países Baixos, Bélgica, Austrália e Ucrânia criaram uma equipa de investigação mista para a qual a Malásia não foi convidada. Os malaios foram convidados cinco meses mais tarde, embora, segundo o regulamento da Organização Internacional da Aviação Civil, o país proprietário do avião deva participar na investigação desde o primeiro minuto.

O terceiro facto, que aqueles que acusam a Rússia, não querem ver, é o seguinte. Fomos nós que promovemos a aprovação da resolução do Conselho de Segurança da ONU alguns dias após a tragédia que obrigou a Organização Internacional da Aviação Civil a organizar uma investigação imparcial e definiu os princípios da mesma. Desde então, poucos convidaram este organismo internacional para a investigação. O processo de investigação foi usurpado por esta equipa de investigação mista que convidou a Malásia a aderir apenas no final do ano. Para além da experiência à escala real realizada pela empresa Almaz-Antey que mencionei e cujos resultados haviam sido ignorados pela investigação, a Rússia forneceu dados primários dos seus radares, que também foram rejeitados como argumentos, embora se tratasse dos factos absolutamente irrefutáveis. Ao mesmo tempo, ninguém pediu à Ucrânia que revelasse os seus dados de radar. O tribunal ficou satisfeito com a explicação de Kiev de que os radares não haviam funcionado naquele momento. Ninguém pede à Ucrânia para entregar as gravações das conversas dos controladores aéreos com o voo MH17, a rapariga que estava ao telefone na sala de controlo " desapareceu" algures.

Há muitas perguntas. Ninguém pede aos norte-americanos que forneçam dados obtidos por satélite que, segundo eles, provam irrefutavelmente que a investigação está no caminho certo. A investigação registou simplesmente que o lado norte-americano tem imagens obtidas via satélite e ficou satisfeita com isso.

A lista de coisas absurdas e violações flagrantes da imparcialidade e tentativas de "varrer para debaixo do tapete" factos óbvios poderia ser continuada. Naturalmente, os familiares das vítimas tentaram intentar na Holanda uma ação judicial por não encerramento do espaço aéreo ucraniano. O seu pedido foi simplesmente rejeitado e considerado irrelevante.

Voltemos às realidades atuais. Na primavera passada, houve a primeira vaga de acusações contra a Rússia no sentido de o nosso país estar a realizar exercícios militares no nosso território perto das nossas fronteiras ocidentais. Ninguém viu ali qualquer operação militar, não podia haver nenhuma. Mas só porque houve ali exercícios militares, os EUA apelaram oficialmente às suas companhias aéreas para que não sobrevoassem aquela região. Ou seja, os exercícios foram considerados pelas autoridades norte-americanas como motivo suficiente. Quando, em julho de 2014, todos sabiam muito bem que havia uma verdadeira guerra em Donbass, o espaço aéreo não foi fechado. Agora todos estão de "bico calado", considerando que isso é irrelevante. Dizem que a Ucrânia não deveria ter fechado o seu espaço aéreo. Toda esta história está "empachada" de padrões duplos, tal como como muitas outras histórias relacionadas com a posição do Ocidente sobre eventos internacionais.


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