Discurso e respostas a perguntas de jornalistas do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Serguei Lavrov, no 5o Fórum do Diálogo Meditertâneo (Rome MED – Mediterranean Dialogues), Roma, 5 de dezembro de 2019
Antes de tudo, agradeço por ter sido convidado uma vez mais para este importante Fórum.
O Mediterrâneo é uma região única do género, em que se situam a Europa e a Ásia, sendo ainda um cruzamento de rotas logísticas e energéticas importantíssimas, cruzamento de civilizações e culturas, um berço das principais religiões mundiais. Os Estados desta região possuem tudo para desenvolvimento sustentável e prosperidade.
A situação na parte sul da região, ou seja, no Oriente Médio, que se tornou alvo de ações unilaterais agressivas, de engenharia geopolítica, não pode ser considerada como satisfatória. Vários países sofrem crises sociais e políticas. Persiste a ameaça terrorista. Continua a fragmentação de mosáico espectacular de etnias e religiões – inclusive a presença de cristãos que diminuiu significativamente.
Centenas, senão milhares de pessoas, morrem anualmente tentando atravessar o mar Mediterrâneo.
Claro que nem a chantagem, nem a pressão e nem ameaças não irão favorecer a normalização estável no Oriente Médio. Só é possível desfazer os múltiplos nós regionais, se basearmos no direito internacional e na cooperação em pé de respeito mútuo, apoiando-nos em ferramentas diplomáticas universais.
E há certos frutos. Eu citaria a Síria como um bom exemplo de eficiência da diplomacia multilateral. O trabalho conjunto dos países do formato de Astana (Rússia, Irã e Turquia) levou ao início de um processo político, à criação, mesmo que houvesse problemas e atrasos, do Comitê Constitucional. A situação na Síria em geral está voltando à normalidade, com a exceção de várias regiões no Norte do país, que não estão controladas pelas autoridades legítimas do país. Durante a sessão do clube de discussão Valdai, em outubro do ano corrente, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou que a pacificação síria pode ser um modelo para solução de crises regionais.
Outro foco perigoso de instabilidade é a Líbia, que passou a ser um abrigo de terroristas de todas espécies. O sistema estatal desse país foi seriamente afetado pela aventura da OTAN. O país permanece dividido, enquanto os conflitos armados internos vão prosseguindo e a economia se degrada em simultâneo com a esfera social. É óbvio que o conflito só pode ser regulado por via política, através do diálogo inclusivo, interlíbio. Os esforços da comunidade internacional neste sentido precisam de “reanimação”. Neste contexto, notamos com satisfação a iniciativa da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, de convocar em Berlim uma conferência internacional dedicada à regulação líbia. Claro que será conveniente levar em conta a experiência de conferências anteriores, a de Paris, em julho de 2017, e a de Palermo, em novembro do ano passado. Não devem ser esquecidos os resultados do encontro do Presidente do Conselho Presidencial, Primeiro-Ministro do Governo da União Nacional, Fayez Sarraj, com o comandante em chefe do Exército Nacional Líbio, marechal Khalifa Haftar, em fevereiro do ano corrente em Abu Dhabi. É importante que sejam respeitadas as respectivas Resoluções e as prerrogativas do Conselho de Segurança da ONU, que seja garantida a participação de todas as principais forças políticas líbias e das partes interessadas internacionais, incluindo todos os países vizinhos da Líbia, a União Africana, a Liga Árabe.
Há um grande perigo de desestabilização no Iraque. Evidentemente, a comunidade internacional deve apoiar as autoridades iraquianas na sua luta contra os restos do “Estado Islâmico” e outros grupos terroristas. A coordenação das ações no âmbito do Centro de Informações em Bagdá, criado pela Rússia, Iraque, Irã e Síria continua ganhando importância, em paralelo com a cooperação entre Bagdá e Damasco na eliminação de elementos terroristas da fronteira sírio-iraquiana.
A Rússia mantém a sua firme postura a favor da soberania, independência e integridade territorial do Líbano, que está passando agora por mais uma crise política. As questões agudas da agenda nacional devem ser resolvidas pelos próprios libaneses. É mister que seja conservado um equilíbrio de interesses entre as principais forças políticas e os grupos étnicos e religiosos, o que está garantido pela Constituição do Líbano.
Apelamos a superar a tensão no Golfo Pérsico através do diálogo. Isso já foi previsto há muito pela Conceção de Segurança Coletiva na região, elaborada pela Rússia. A realização consequente desta ideia permitirá criar um fundamento para construir uma arquitetura de confiança mútua em todo o Oriente Médio.
É óbvio ser impossível estabilizar a situação na zona mediterrânea sem a criação de um Estado da Palestina independente e viável. Só uma solução envolvendo dos dois Estados, que alguns estão tentando substituir por uma espécie de “negócio do século”, pode fazer cumprir as esperanças do povo palestino, garantir a segurança de Israel e da região em geral. Por isso, é importante retomar o quanto antes negociações entre os palestinianos e os israleenses para alcançar uma regulação abrangente, duradoura e justa baseada no direito internacional. A Rússia continuará contribuindo para a superação do cisma entre os palestinianos com base na plataforma política da Organização para a Libertação da Palestina.
A situação do outro lado do mar Mediterrâneo, nos Bálcãs, também preocupa. Os países da região são atraídos para a Aliança Atlântica sem levar em conta a vontade dos povos que vivem lá. Cresce o número de exercícios e manobras militares, aumenta o contingente marítimo da Aliança no Leste do Mediterrâneo. O resultado de tais ações é óbvio: a criação de novas linhas divisórias, e a falta, cada vez mais acentuada, de confiança mútua. Eu já mencionei os fluxos de refugiados que inundaram a Europa, que se vê obrigada a lidar com isso.
Em geral, estamos convencidos que tanto o Norte, quanto o Sul do Mediterrâneo estão interessados não em “jogos de soma zero”, mas sim em um trabalho coletivo com o objetivo de neutralizar desafios e ameaças comuns. Para isso, acredito que seria útil usar mais o potencial criativo da OSCE, inclusive a promoção através desta Organização de enfoques do problema dos Bálcãs positivos e aceitáveis por todos. Apoiamos ativamente a cooperação da Organização com seus parceiros mediterrâneos.
Creio ser possível fazer desta região uma zona de paz, estabilidade, segurança, parceria criativa só no fundamento firme do direito internacional, antes de tudo, dos princípios dos Estatutos da ONU e da Ata Final de Helsínquia, enquanto as ferramentas obsoletas de restrição, a filosofia de blocos devem ser esquecidas.
Pergunta: Quero voltar à questão da Líbia. O Sr.acredita que a Conferência de Berlim pode dar esperanças no sentido de resolver o conflito, já que um cessar-fogo já significaria progresso importante?
Deve saber que as fontes de informação estadunidenses informaram recentemente sobre uma eventual presença de mercenários russos na Líbia que terão combatido do lado de Khalifa Haftar. Como o Sr. comentaria isso?
Serguei Lavrov: Quanto à Conferência de Berlim, eu falei que era preciso levar em conta as conferências que tiveram lugar em Paris há dois anos e em Palermo há um ano, e também os acordos alcançados em fevereiro do ano corrente por Fayez Sarraj e Khalifa Haftar. Vocês sabem que eles prevêem a reforma do Conselho Presidencial, a criação de um novo governo da união nacional, um acordo sobre receitas através da venda de petróleo, a criação de uma nova Constituição. Se não há uma compreensão mútua sobre assuntos tão importantes, é muito difícil esperar que uma reunião das partes em Berlim, Palermo, onde quer que seja, vá ser suficiente para que a crise desapareça.
Nós participamos dos preparativos da Conferência de Berlim. Ficamos meio surpreendidos pela falta de convite das partes líbias e de todos os vizinhos da Líbia. Acreditamos que se trata de uma falha. Espero que no tempo que ainda resta sejam feitos passos para fazer com que a lista de participantes seja realmente inclusiva. Destacaria a União Africana. Em 2011, a União Africana, antes da aventura da OTAN, tentava regular a crise líbia através do diálogo entre Muammar Kaddhafi e a oposição. Mas naquela altura, um outro ponto de vista levou o melhor, visando o derrubamento do regime. Até hoje temos sentido os efeitos disso, e quem sofre mais são os países do Oriente Médio e do Norte da África e a Europa (especialmente os países mediterrâneos).
Claro, quem iria se manifestar contra o cessar-fogo? Depois de os acordos de Abu Dhabi terem sido esquecidos, anunciou-se a campanha militar. Se levamos em conta os armamentos na posse das partes, elas não poderão chegar à vitória militar. Só isso poderia ter sido uma razão suficiente para se sentar à mesa de negociações e de voltar aos entendidmentos alcançados em Abu Dhabi. O Enviado Especial do Secretário- Geral da ONU para a Líbia, Ghassan Salamé, apresentou um relatório ao Conselho de Segurança da ONU há um par de meses. Ele tem seus métodos, que nós apoiamos. Espero que todos os atores externos sem exclusão empurram os seus partidários na Líbia em única direção que passe pela mesa de negociações. Somos um dos poucos países que mantêm relações com todas as partes líbias: Fayez Sarraj, Aguila Saleh, Khalifa Haftar, Khalifa al-Ghawil, outros personagens da paisagem política desse país, que está, de fato, em ruínas. Estimulamos o seu movimento precisamente neste sentido.
A respeito dos rumores divulgados por nossos colegas estadunidenses, covinha indagar por que, quando em várias partes do mundo (a Síria é um exemplo na região mediterrânea) aparecem de maneira oficial e sem convite os militares da OTAN, ninguém pergunta o que fazem lá. Eles como que se estivessem lá tendo fundamentos e o direito para isso. Mas quando algures acontece alguma coisa, então o «Bellingcat» ou ONGs põem-se a divulgar materiais afirmando que a Rússia estaria fazendo lá algo ruím. Li terem descoberto um “ninho de espionagem” russa na Saboia, esclarecendo, contudo, que não se revelaram com isso as atividades de espionagem, mas mesmo assim é um “ninho de espionagem”. Como vocês sabem, descobriram a nossa “presença” no Chile. Lá, também ocupamo-nos de desordens e da luta política interna. Acho que precisamos ser sinceros. Não é segredo (todos somos inteligentes): todos sabemos quem de fato apoia as partes em conflito na Líbia. Não esqueçamo-nos disso. Mais vale a pena trabalharmos e não buscarmos sensações. Para isso, é necessário voltar aos acordos de Abu Dhabi e cumpri-los.
Pergunta: Quero voltar a mais um tema que o Sr. destacou, voltemos à qeustão da Síria. Desde a sua visita aqui no ano passado muitas coisas aconteceram, a saber: a operação turca no Norte da Líbia, a volta dos militares sírios e russos para o Norte. Hoje de manhã, o chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, divulgou que os turcos sentem o direito e a obrigação de lutar contra o que chamam de grupos terroristas no Norte da Síria. Há uns dias, o tenente general Aleksandr Chayko, que comanda as forças russas na Síria, chegou a um acordo com um destes grupos, Forças Democráticas Sírias (FDS), sobre a entrada das forças russas em mais três municípios no Norte do país. Como, a seu ver, poderia ser resolvida a situação na fronteira?
O senhor ministro falou ainda sobre o processo de Astana, sobre o Comitê Constitucional, porém este processo diplomático ainda é muito lento, se há um progresso qualquer. Cria-se a impressão que o governo sírio poderia pensar que teria possibilidades de ganhar a guerra, visto que o número de regiões em protesto vai-se reduzindo. E como é regra, se uma parte acredita na sua vitória, fica sem grande desejo de manter negociações. Por que o Sr. então acredita na possibilidade de uma solução política na Líbia?
Serguei Lavrov: Ajudando na regulação síria, insistindo em passos reais neste sentido, sempre pensamos em segurança da região e em necessidade de eliminar a ameaça terrorista e outras ameaças à segurança dos países da região.
A respeito do conflito entre Palestina e Israel e em geral da atitude de Israel para com os problemas da região em que está situado este país, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, não deixa de afirmar que encaramos as preocupações de Israel na área da segurança com muita seriedade. Encaramos com a mesma seriedade também as apreensões na área de segurança de qualquer outro país da região, inclusive do nosso bom parceiro, a República da Turquia. Pode-se discutir se os especialistas vão concordar com as explicações apresentadas aqui pelo meu amigo Mevlut Cavusoglu. O fato é que a Turquia tem prestado atenção a este problema durante mutis anos, explicando que ver-se-ia obrigada a resolvê-lo, levando em conta, entre outras coisas, o Acordo de Adana assinado pela Turquia e a Síria em 1998. Provavelmente ao ver que a Turquia tem sérias intenções, os EUA começaram a negociar com ela a possibilidade de eliminar estas preocupações. Vocês sabem do que se deu. Não se conseguiu consenso e os EUA anunciaram a sua saída da Síria. Depois, eles deram-se conta que tinham esquecido lá o petróleo, que, claro, não é deles. Mas isso é um outro assunto.
Quando a Turquia começou a sua operação – que tinha anunciado há muito (todos compreendiam perfeitamente que Ancara ficava muito preocupada com toda essa história), imediatamente iniciamos diálogo direito com os nossos colegas turcos. A operação Fonte de Paz foi congelada, suspendida. A zona da operação encolheu-se a 100 km da fronteira, e não a 444 km, e no resto da zona fronteiriça foram postos em vigor os acordos dos Presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan: as unidades armadas e os armamentos dos curdos retiram-se a 30 km ao sul da fronteira, e a faixa de 10 km de largura dentro dessa zona patrulha-se pela polícia militar russa e militares turcos, e, claro, os guardas de fronteira sírios deslocam-se para lá.
Tanto os curdos, quanto Damasco apoiaram estes acordos. Mas depois, quando os EUA anunciaram a intentona de regressar para “guardar” o petróleo, isto é, assumir a direção neste dominio, os curdos começaram a “vibrar”. Pensava que tinham aceitado nossos argumentos sobre o acordo direto com as autoridades oficiais da Síria como única possibilidade de resolver todos os problemas dos curdos. Espero que os nossos amigos curdos saibam aprender lições da vida. Os recentes acontecimentos com o zigue-zague da política estadunidense deve convencê-los da falta de outra solução que não seja fazer acordos dentro de um Estado sírio único, sem apostar naqueles que querem fragmentar a Síria e detonar a bomba representada pelo problema curdo para vários países da região. Eu acredito que os acordos que o senhor mencionou estão sendo cumpridos. Acredito que isso estabilizou significativamente a situação. Pelo menos, isso permitiu ampliar o controle do governo legítimo da Síria no território do seu próprio país.
A segunda pergunta era sobre o formato de Astana. Este formato foi criado quando outras coisas já não funcionavam. O meu amigo Staffan di Mistura, que está presente aqui, lembra quantos esforços aplicámos para lançar o processo de Genebra em 2016, no último ano do governo de Barack Obama. Primeiro, queríamos convocar encontro em abril, em maio, depois do Ramadã, depois em setembro, em outubro etc. Não dava certo.
O formato de Astana tem uma lógica muito simples. Antes dele, não existia um fórum que unisse auma só mesa de negociações representantes das partes que estão em guerra. Grosso modo, havia contatos entre governos e emigrantes. Já aqueles que estavam em guerra real contra o governo, a oposição armada, não entravam em negociações. O formato de Astana quebrou esta barreira e lançou um processo que uniu as delegações do governo, da oposição armada, de três países garantes (Rússia, Turquia, Irã) e dos países observadores. O primeiro observador era a Jordânia. Convidamos também os EUA, que assistiram a umas sessões, mas depois desistiram. Coisa sua, não estamos tratando da política estadunidense. O Iraque e o Líbano juntaram-se à Jordânia na qualidade de observadores.
Já na semana que vem, a capital do Cazaquistão sediará o 14o encontro do formato de Astana. Vai ser examianada a marcha de cumprimento dos acordos sobre a diminuição de escalada da tensão, sobre o fim da luta contra os restos dos grupos terroristas. Serão também discutidos assuntos humanitários, inclusive a ajuda humanitária ao povo sírio, a criação das condições para o retorno dos refugiados, o intercâmbio de presos e pessoas retidas ilegalmente. Claro que também o processo político será comentado.
Eu não vou fazer avaliação de êxitos ou lentidão no trabalho do Comitê Constitucional, já que só houve duas sessões. O processo político acaba de começar. Eu mencionei o conflito entre Palestina e Israel. Quanto tempo já estamos esperando? Em que ano foi aceite o “roteiro” que previa pacificação em seis meses, em 2003? Passaram-se quantos anos? Já ninguém se preocupa pela morosidade no cumptimento da decisão do Conselho de Segurança da ONU sobre a regulação do conflito entre Palestina e Israel.
O Comitê Constitucional podia ter sido criado há um ano, se os nossos colegas ocidentais não o obstaculassem. Quando em dezembro do ano passado, eu com os chanceleres do Irã e da Turquia, Mohammad Javad Zarif e Mevlut Cavusoglu, partimos a Genebra para o encontro com Staffan di Mistura e seus colegas, trouxemos uma lista aprovada pelo governo e pela oposição da Síria, os nossos colegas ocidentais tudo fizeram para que não fosse aprovado. Então, foi perdido um ano inteiro.
Questiona-se se a situação extrema pode forçar Bashar Assad a optar por negociações? Em meados de 2015, quando os subúrbios de Damasco estavam cercados por bandidos, Assad apelava a um processo político. Todo o campo ocidental, que apoiava esses bandidos, recusava-se categoricamente a fazer isso. Agora, quando começarmos o processo de Astana, a situação ficou diametralmente oposta. Graças ao apoio da Força Aeroespacial da Rússia, o exército sírio conseguiu obter vantagem. Porém, usamos a nossa influência sobre o governo sírio, as nossas boas relações para convencê-lo a consentir primeiro a convocar o Congresso do Diálogo Nacional Sírio em janeiro de 2018 em Sochi e depois a apoiar as decisões deste Congresso. Staffan di Mistura sabe que isso não era fácil: as partes não aceitaram imediatamente as propostas dos nossos amigos da ONU. Conseguimos convencer os nossos amigos em Damasco que a melhor opção era iniciar o processo político. Agora, a presença dos terroristas no território sírio diminuiu em resultado da aplicação do conceito de “zonas de desescalada”: persiste a presença terrorista no Noroeste, em Idlib, e no Nordeste, onde existem relações muito incertas entre os estadundenses e as suas criaturas, especialmente na região de al-Tanf. Porém, o governo sírio não se recusa negociar. Hoje, encontrei-me com o Enviado Especial do Secretáro-Geral da ONU para a Síria, Geir Pedersen. Falamos com ele sobre as suas impressões da segunda sessão do Comitê Constitucional. Ele não está em pânico e está convencido de que as partes estão se acostumando a manter relações. Asseguro que não vamos deixar os nossos esforços. Não agimos de maneira conjuntural, desistindo-nos de negociações quando à vista está a vitória. Não seria um princípio nosso. Conheço alguns colegas do Ocidente que defendem tal lógica de raciocínio. Mas nós não.
Pergunta: Se eu perguntar como avalia as eleições presidenciais nos EUA em 2020, o Sr. não vai responder. Por isso, vou fazer uma pergunta sobre a recente cúpula da OTAN. Ao retirar suas tropas pouco numerosas da região da fronteira turco-síria, o Presidente dos EUA, Donald Trump, parece ter prestado serviço à Rússia, já que ela obteve a oportunidade de reforçar ainda mais suas posições na Síria. Ao mesmo tempo, há uma crise na própria OTAN: os EUA não consultam seus aliados da Aliança, a Turquia mantém a sua própria política etc. Como o poderia comentar a estranha hipótese que a política de Donald Trump favoreça os interesses da Rússia?
Serguei Lavrov: Gostaríamos de ser parceiros tanto dos EUA, quanto da União Europeia.Tinhamos relações normais, pragmáticas com a OTAN. Não foram nós a cessar estas relações. Foi a OTAN quem fechou todos os canais de comunicação, inclusive encontros regulares de militares e dezenas de eventos anuais, que visavam aumentar a eficiência do combate contra o terrorismo. Deixo isso para a consciência da OTAN. Se a Aliança mantém esta postura, não vamos fazer questão ou assediar ninguémcom pedidos . Nos anos passados, compreendemos a necessidade de contarmos com próprias forças, porque nossos colegas ocidentais não são seguros como parceiros.
Eu não vou comentar motivos das decisões dos EUA. Vemos isso como um fato dado. Nem iremos procurar uma lógica nisso. Há um fato, pois é preciso avaliar este fato como ele merece.
Pergunta: Nas semanas e meses recentes, observamos uma onda de protestos populares nos países do Oriente Médio e do Mediterrâneo do Líbano ao Iraque. São diferentes daquelas manifestações antigovernamentais de 2011, que foram chamadas de Primavera Árabe. Há semelhanças e diferenças. Em alguns casos, os manifestantes vêem a causa dos problemas dos seus países no Irã e na influência que o Irã exerce no Oriente Médio. Como estes processos afetam o equilíbrio geopolítico e a situação na região? Como o Sr. avalia estes protestos populares? Pois estão longe de perder a intensidade: por exemplo, recentemente foram mortas no Iraque cerca de 400 pessoas.
Serguei Lavrov: A época do despertar da consciência das massas foi prevista por Zbigniew Brzezinski há cerca de vinte anos, quando todos compreenderam que o fim da história prognosticado por Francis Fukuyama não tinha acontecido e nunca aconteceria. Em um dos seus livros, Brzezinski escrevia que o principal problema de hoje não era o de estabelecer um “concerto” entre todos os atores-chave, mas sim não permitir que as revoluções voltassem a ser norma mundial. Mais uma vez, observamos a perspicácia deste analista e político.
Agora a respeito de fenômenos concretos. A comunidade internacional deve compreender o que queremos. Se queremos a democracia que trouxeram para a Líbia, então vamos confessar e dizer que sim . Outra coisa é - se acreditamos que por autoritário que tivesse sido o regime de Kaddhafi, a estabilidade era certíssima, a Europa não tinha nenhum problema da Líbia. Houve a explosão de um avião em 1988 sobre Lockerbie, mas isso foi um caso único, uma tragédia. O mesmo pode ser dito a respeito do Líbano, do Irã, do Iraque. O meu colega estadundense, Secretário de Estado, Mike Pompeo, tem repetido em voz alta que ninguém tem o direito de privar o povo iraniano da possibilidade de protestar. Ao mesmo tempo, quase não dissimulam que gostariam de ver no Irã a mudança de regime, como já fizeram na Líbia, no Iraque. Os resultados são sempre mesmos: o desacalbro do Estado, terrorismo, ondas de refugiados. Como aconteceu ainda na Ucrânia, que fica longe do mar Mediterrâneo, mas não muito longe. Quando se deu lá o golpe de Estado, eles apoiaram-o imediatamente. Até hoje, nossos colegas estadundenses tentam controlar todos os processos que ocorrem lá, procurando “adotar” esse país.
Quando naquele mesmo ano houve tentativa de um golpe de Estado na Gâmbia, o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Jeff Rathke, afirmou em tom muito grave que os EUA não e nunca iriam apoiar mudança de governos por métodos anticonstitucionais. Acho que vocês sabem melhor do que eu se isso corresponde às ações práticas dos EUA.
Por isso, a raíz de todos estes fenômenos reside na situação social e econômica da população, no descontentamento pelo estado das coisas, o desejo e a aspiração para uma vida melhor. Os governos devem reagir a isso. Acho que tentar fazer geopolítica se aproveitando da vaga de manifestações naturais é irresponsável e contraprodutiva. Porque em vez de estabilidade chamada de democracia, o que obtemos é o caos e o desmantelamento de Estados. Eu falei isso no meu discurso de abertura no Líbano. Lá, é muito importante tratar com muito cuidado essa construção que foi criada, não tentar substitui-la por algo que não funcione nesse país.
O mesmo pode ser dito em relação ao Irã. Sim, os problemas ali são muito sérios, porque os estadundenses anunciaram sanções contra esse país sem qualquer fundamento legítimo, saíram do JCPOA, ao mesmo tempo, insistindo que todos os outros, inclusive o Irã, o cumprissem. Nem sei como descrever isso. É um absurdo. Uma abordagem completamente surreal. Proibem a todos cumprir a resolução do Conselho de Segurança da ONU que anunciaram como não aplicável para si próprios. Se a ideia estadundense é estrangular o Irã economicamente e estimular a insatisfação do povo, observamos a mesma coisa em relação à Venezuela. É um padrão. É o mesmo modus operandi: acusar o “regime” de tudo, organizar bloqueio econômico ao mesmo tempo, congelar contas, e, de fato, extraviar as reservas de ouro.
Estamos a favor de uma solução de problemas através do diálogo inclusivo, seja a Venezuela ou o Líbano. Espero que a tradicional prudência libanesa e a capacidade de chegar a acordos dominem, independentemente de país em questão.
Pergunta: O Sr. Se referiu à Ucrânia. Com efeito, a Ucrânia interessa a todos os países da região mediterrânea, do Oriente Médio e do Norte da África, devido ao conflito interno. Em 9 de dezembro, terá lugar em Paris a cúpula do formato de Normandia. O Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, estará presente. O que pode-se esperar deste encontro? Um cessar-fogo ou algo mais?
Serguei Lavrov: Nós queremos que o formato de Normandia favoreça o cumprimento total do seu fruto, que são os Acordos de Minsk, resultantes de longas negociações dos quatro líderes em Minsk, assinados pelas partes do conflito, ou seja, por representantes de Kiev, Donetsk e Lugansk, aprovados pela resolução 2202 do Conselho de Segurança da ONU. Quando, durante o regime de Pyotr Poroshenko, dizia-se reiteredas vezes que a Rússia devia cumprir os Acordos de Minsk, explicávamos que eram e são as próprias partes signatárias, ou seja, Kiev, Donetsk e Lugansk, quem deve cumprir os acordos. Nós estamos aqui para ajudar com vários métodos, politicamente, através da missão da OSCE e outros. Hoje, quando o Presidente Vladimir Zelensky manifestou a vontade pela paz, apesar dos obstáculos que enfrenta, principalmente da parte dos ultrarradicais e dos neonazistas, nossos colegas europeus saudam o progresso alcançado no cumprimento das anteriores decisões do formato de Normandia, ou seja, a separação simeltânea das forças e armamentos em três zonas e o registro em papel da “fórmula de Frank-Walter Steinmeier”. O respectivo acordo foi alcançado há mais de três anos. Mas o regime de Poroshenko se recusava categoricamente de cumprir o acordo aprovado pelos líderes de quatro países. Hoje falam dos avanços porque o Presidente Zelensky tem vontade de alcançar a paz. Assim é. Mas este fato mostra também que a recente falta de progresso foi a culpa do regime ucraniano anterior.
Vamos esperar do formato de Normandia novos acordos que permitam liquidar este conflito e garnatir a segurança das pessoas em Donbass, os seus direitos previstos pelos Acordos de Minsk (por exemplo, a lei sobre estatuto especial de Donbass). Isso pode ser impossível de fazer em um só dia, mas é preciso insistir nisso. Quanto mais rápido o fizermos, melhor para toda a Ucrânia. Claro que na “cúpula” em Paris queremos ouvir do Presidente Zelensky como ele próprio vê o progresso no futuro. Porque a sua comitiva – representantes oficiais, ministros, membros do parlamento da sua bancada Servos do Povo – faz declarações muito contraditórias. Por exemplo, o chanceler ucraniano, Vadim Pristaiko, disse recentemente que iam ver o que dá o encontro de 9 de dezembro em Paris e depois decidirão se ficariam nos quadros dos Acordos de Minsk. Uma declaração bem simples, mas bastante interessante. Há declarações que negam futura anistia prevista pelos Acordos de Minsk. Há declarações sobre eventual falta de necessidade de prolongar a lei sobre o estatuto especial de Donbass (expira no fim de dezembro do ano em curso), apesar de que ela deve fazer parte da Constituição da Ucrânia até o final do ano. Falam-nos que vão pensar, que talvez até escrevam uma nova lei sobre o estatuto especial. O que significa isso? Como isso corresponde à obrigação de cumprir os Acordos de Minsk? Não sabemos. Assim, as perguntas são muitas. Quando os políticos ucranianos declaram que o diálogo direto entre Kiev, Donetsk e Lugansk é ou será impossível, isto pode ser qualificado como menosprezo total de tudo e de todos. Os Acordos de Minsk têm como base o diálogo direto entre Kiev, Donetsk e Lugansk. Será para nós muito importante neste encontro compreender como o Presidente Zelensky encara perspectivas de cumprir uma das suas promessas eleitoraias: a de garantir a paz no Leste da Ucrânia.