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Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, ao canal de televisão RT, à agência Sputnik e à agência noticiosa internacional Rossiya Segodnya, Moscovo, 20 de julho de 2022

1504-20-07-2022

Pergunta: O senhor acabou de regressar de uma viagem e está prestes a partir novamente. Estamos tão internacionalmente isolados que o senhor quase nunca está em casa.

Aqui está uma pergunta enviada pelos nossos assinantes. Ora negociamos com a Ucrânia, aos mais diversos níveis, de deputados a responsáveis governamentais, ora não, ora dizemos que é impossível negociar com eles, ora dizemos que seria bom começar a negociar com eles. Isto faz algum sentido ou é um decoro diplomático?

Serguei Lavrov: Isso não faz sentido na situação atual. Ontem em Teerão, o Presidente russo abordou este tema durante uma conferência de imprensa sobre os resultados das conversações com os líderes do Irão e da Turquia. Vladimir Putin recordou mais uma vez que, no início da operação militar especial, a liderança ucraniana tinha solicitado conversações. Não nos recusámos. Abordámos esse processo honestamente. Todavia, já as primeiras rondas realizadas na Bielorrússia mostraram que o lado ucraniano não desejava discutir a sério nenhuma questão. Então entregámos-lhes a nossa avaliação da situação, assinalando que, se Kiev quisesse trabalhar a sério, deveria entregar-nos a sua proposta por escrito para que compreendêssemos de que tipo de acordos tencionavam falar. O lado ucraniano entregou-nos um documento, apoiámo-lo (o Chefe de Estado russo voltou a citar este facto ontem) e dispusemo-nos a concluir um acordo baseado nos princípios nele contidos. Elaborámos um documento com base na sua lógica e entregámo-lo ao lado ucraniano a 15 de abril passado. Desde então não ouvimos nada deles, mas ouvimos outra coisa, isto é, as declarações feitas pelo Chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, Boris Johnson (agora, aparentemente já não as faz), a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, "diplomata-chefe", Josep Borrell: a Ucrânia tem de "vencer no campo de batalha" e não deve aceitar negociações porque tem uma "posição fraca na frente"; primeiro, tem de rectificar esta situação, começar a "dominar" as forças armadas russas, as milícias de Donetsk e de Lugansk, e só depois começar a negociar " a partir de uma posição de força ". Creio que é uma “conversa para boi dormir”.

Pergunta: "Conversa para boi dormir” é porque a Ucrânia não terá êxito?

Serguei Lavrov: Não terá. Nunca serão capazes de formular "coisas" que mereçam uma atenção séria. Compreendemos isto. Não é segredo que Kiev está a ser persuadida a não dar passos construtivos, está a ser enchida de armas e está a ser compelida a utilizar as armas recebidas de uma forma cada vez mais arriscada. Instrutores e especialistas estrangeiros encontram-se na Ucrânia a manter estes sistemas de armas ("HIMARS" e outros).

Os nossos "colegas" norte-americanos, britânicos (anglo-saxónicos), apoiados ativamente pelos alemães, polacos e os países bálticos  querem fazer desta uma verdadeira guerra, para colocar a Rússia contra os países europeus. Washington e Londres, que se situam muito além dos oceanos e dos estreitos, ganham com isso. Quem sofre mais com isso é a economia europeia. De acordo com as estatísticas disponíveis, 40% dos danos causados pelas sanções são suportados pela União Europeia, cabendo aos EUA apenas um por cento, se considerarmos o impacto negativo cumulativo das restrições.

Não temos dúvida de que os ucranianos não serão autorizados a negociar até que os americanos decidam que já "fizeram bastante confusão" e causaram caos. Depois eles abandonarão a Ucrânia à sua sorte para ver como ela vai desembaraçar-se.

Pergunta: O senhor acha que este plano é possível? Uma "grande" guerra, um confronto entre a Rússia e os países europeus? Na verdade, isso significaria uma guerra nuclear.

Serguei Lavrov: Os norte-americanos não pensam sobre isto. A administração norte-americana integra rapazes ambiciosos empenhados em alcançar novos “patamares” nas suas carreiras. Não sei como irão tentar alcançar os seus objetivos nesta Administração. Agem de forma irresponsável, fazem planos, esquemas que implicam grandes riscos. Estamos a falar sobre isso publicamente. Também lhes poderíamos dizer, mas os norte-americanos não querem falar connosco, e nós não vamos correr atrás deles.

O diálogo que mantivemos não era inútil, até porque nos olhávamos nos olhos, expondo as nossas visões. Quando a operação militar especial começou, os EUA romperam-no. Penso que Washington ainda não percebeu que está a jogar um jogo perigoso. No entanto, na Europa muitas pessoas começam a aperceber-se disso.

Pergunta: Será possível do nosso ponto de vista um confronto entre a Rússia e os EUA, uma guerra nuclear?

Serguei Lavrov: Promovemos várias declarações (dos líderes russo e norte-americano, dos líderes dos cinco países membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU) de que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada. Esta é a nossa posição. Manter-nos-emos firmes nesta nossa opinião.

Mais do que isso, temos uma doutrina aprovada que expõe claramente os casos em que a Rússia será forçada a utilizar armas nucleares. Os nossos parceiros, colegas, rivais, "inimigos" (já não sei como se chamam em relação a nós) conhecem isto muito bem.

Pergunta: Consideramos Vladimir Zelensky representante legítimo da Ucrânia. Porquê? Dizemos com razão que tudo o que está a acontecer neste país é o resultado de um golpe, de uma violenta mudança de poder. Isto não aconteceu sob Vladimir Zelensky, mas ele também subiu à presidência em consequência desses acontecimentos. Porque é que admitimos isto no início?

Serguei Lavrov: O Presidente francês, Emmanuel Macron, guiado pelas suas próprias considerações de ética, publicou uma gravação de uma conversa telefónica com o Presidente da Rússia mantida em fevereiro passado que contém uma frase clara de Vladimir Putin. O líder francês tentou persuadiu-o a não se envolver demasiado na implementação dos acordos de Minsk. Disse-lhe que as Repúblicas de Donetsk e de Lugansk eram ilegítimas e que era necessário trabalhar no contexto das interpretações propostas para que a Rússia e a Ucrânia chegassem a um acordo, afirmando que, alegadamente, Vladimir Zelensky o queria. Vladimir Putin disse-lhe que Vladimir Zelensky foi o fruto do golpe de Estado e que o regime implantado na altura não tinha ido a lado nenhum.

Lembram-se de como as coisas se desenrolaram após o golpe de Estado? Os golpistas “cuspiram na cara” da Alemanha, França e Polónia, que se haviam oferecido para ser garantes do acordo com Viktor  Yanukovych. Na manhã seguinte este acordo foi “espezinhado”. Estes países europeus “não deram um pio”, aceitaram-no. Há alguns anos, perguntei aos alemães e aos franceses o que achavam do golpe. O que isso era se eles não quiseram exigir que os golpistas voltassem ao acordo? Responderam-me: “percalços de um processo democrático". Não estou a brincar. É espantoso, são pessoas adultas que ocupam os cargos de Ministros dos Negócios Estrangeiros.

A população da Crimeia e do leste da Ucrânia recusou-se a reconhecer os resultados do golpe. Na Crimeia, isto resultou num referendo sobre a reunificação com a Rússia; no Donbass, a população local recusou-se a contactar com o novo governo central ilegítimo que iniciou uma guerra. Depois Petro Poroshenko candidatou-se à presidência. As eleições realizaram-se nos finais de maio de 2014. O então Presidente francês, François Hollande, a então Chanceler Angela Merkel e outros líderes europeus pediram ao Presidente da Rússia para não falar antecipadamente sobre o não reconhecimento dos resultados das eleições ucranianas. Vladimir Putin respondeu-lhes: uma vez que Petro Poroshenko vai às eleições com slogans de paz, promete parar a guerra e restaurar os direitos de todos os ucranianos, incluindo os do Donbass, não nos oporemos à legitimidade desse processo.

Logo se tornou claro que Petro Poroshenko se havia esquecido das suas promessas eleitorais, havia enganado os seus eleitores e os seus  patrocinadores ocidentais, tendo desencadeado uma nova ronda de guerra que foi feita parar com grande dificuldade em fevereiro de 2015. Em seguida, foram assinados os acordos de Minsk. Recentemente, ele confessou que não tinha a intenção de os cumprir, tendo-os assinado porque precisava de "ganhar força" económica e militar para "reconquistar as suas terras", incluindo a Crimeia. Foi por isso que assinou aqueles acordos.

Pergunta: Será que não compreendíamos isto?

Serguei Lavrov: Quanto a mim, eu esperava que tivessem, pelo menos, um pouco de consciência. Petro Poroshenko confessou a sua verdadeira atitude para com os acordos de Minsk. Não ia cumprir o documento aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU. Assim, mais Petro Poroshenko confirmou mais uma vez publicamente que não era um presidente legítimo e desrespeitava os pilares legais internacionais.

Vladimir Zelensky também chegou ao poder com slogans da paz. Garantiu que traria a paz de volta à Ucrânia, que todos os cidadãos do país que quisessem falar russo poderiam fazê-lo e ninguém deveria persegui-los ou discriminá-los por isso. Vejam o que ele está a dizer agora.

Em “O Servo do Povo” Vladimir Zelensky interpretou um democrata, um rapaz de coração aberto, um simples professor escolar que saiu do povo, derrotou toda a oligarquia e pagou todas as dívidas ao FMI. Os   cidadãos do seu país tornaram-se livres. Ele dissolveu o parlamento e o governo corruptos. Há vídeos que são impossíveis de esconder e em que Vladimir Zelensky defende os direitos da língua russa, a cultura russa...

Pergunta: Ministro, ele é um ator!

Serguei Lavrov: Sim, ele é ator, conforme o sistema Stanislavsky: vira rapidamente a casaca. Quando lhe perguntaram recentemente o que pensava sobre as pessoas que viviam no Donbass, ele disse que havia seres humanos e havia "espécimes”. Ele também disse que, se alguém se sentia russo, então "em prol do futuro dos seus filhos e netos" deveriam ir para a Rússia. Foi exatamente isto que Dmitri Yarosh disse no primeiro dia após o golpe de fevereiro de 2014: "um russo nunca pensará à ucraniana,  nunca falará ucraniano, nunca homenageará os heróis ucranianos, os russos devem sair da Crimeia".

A elite levada ao poder pelo golpe de Estado já tem um código genético nacional. Entremeando-se com Dmitri Yarosh, Petro Poroshenko e  Vladimir Zelensky, Arseni Yatsenyuk chamou aos habitantes do Donbass "não-humanos".

Pergunta: Lembra-se de como Petro Poroshenko disse que as crianças ucranianas iriam à escola e que as crianças russas "se sentariam em caves"? Disse isso ao povo que "considerava" seu.  

Serguei Lavrov: Agora dizem que vão libertar as suas terras...

Pergunta: Já sem pessoas?

Serguei Lavrov: Não sei como é que Kiev vai lidar com estas pessoas.  Eles vão revoltar-se.

Pergunta: Que pessoas? Vão ser aniquiladas pelos HIMARS. O senhor disse que esperava que eles tivessem consciência, mas, como sói dizer-se, não “julgues os outros pelo teu código de valores”. Se o senhor tiver consciência, isso não significa necessariamente que os nossos parceiros a tenham.

Antes de o senhor chegar, Maria Zakharova e eu estávamos a falar daqueles que agora descreveu como "pessoas sérias". Claro que estávamos a fazer piadas deles, porque como é possível não o fazer? Por exemplo, o mais recente comentário da porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierreporta, que substituiu a nossa "favorita de longa data", Jen Psaki. Quando lhe perguntaram o que o Presidente Joe Biden havia feito durante dois dias, ela disse que ele estava "a pensar no povo norte-americano".

O que quero dizer? Os líderes ocidentais estão todos a “falhar”, apresentando muitos deles sinais da, por assim dizer, "adequação limitada” e, por vezes, até a "sanidade mental limitada”. Agora estão prestes a sair. Temos razões para acreditar que aqueles que os irão substituir serão capazes de apresentar sinais de uma “sanidade mental menos limitada”?

Serguei Lavrov: Poderia dizer de outra forma. O atual establishment político “crescido” no Ocidente pertence à classe daqueles que que têm  a "limitação adequada": do seu próprio ponto de vista, eles são adequados. No entanto, em termos de experiência política e conhecimentos, representam uma elite limitada.

Pergunta: Porque é que isto acontece?

Serguei Lavrov: Não sei, mas muitas pessoas assinalam isto. Henry Kissinger disse isto recentemente, recordando Gerhard Schroeder e Jacques Chirac. Ele foi menos grosseiro, deixando, contudo, bem claro que o contraste é impressionante.

Assistimos a uma atitude "média" para com os processos políticos. É preciso eleger pessoas que sejam compreensíveis e que batam num só ponto trivial. Eles conceberam esta "transição verde”: todos irão, em breve, morrer sufocados, os golfinhos e peixes irão desaparecer, as pessoas ficarão sozinhas no deserto. Como resultado, é a “transição verde” que eles têm agora. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, falou detalhadamente sobre como isso surgiu na política ocidental e como isso teve um tremendo fracasso, porque nada havia sido calculado.

Não sei a razão por que eles são inadequados. Pode ser que a ausência de líderes fortes seja do interesse de alguém.

Pergunta: De quem?

Serguei Lavrov: Dos burocratas que compõem a Comissão Europeia - são 60.000. Não são poucos. Eles tornaram-se numa “coisa em si”. Não é por acaso que a Polónia, a Hungria e outros países perguntam por que razão devem obedecer a estas pessoas, nomeadamente nas áreas onde ninguém as investiu de poderes. A situação é esta na realidade.

Pergunta: Então é uma espécie de "estado profundo" norte-americano na Europa, certo?

Serguei Lavrov: Acontece que sim. Não exatamente um “estado profundo”, antes a elite, a comissão europeia.

Pergunta: "Shallow state” (Estado superficial)?

Serguei Lavrov: Sim, aqui o pêndulo também está a balançar: de um  lado que estava associado à integração rápida para outro. As exigências impostas por Bruxelas, que nem sempre se baseiam em algumas disposições legislativas, começam a irritar e a impedir os países de construírem a sua vida interna, nacional, de acordo com as suas tradições e a sua religião. Hoje em dia, eles estão a tentar promover junto de  Budapeste os seus valores não-tradicionais. Os húngaros, como nós e muitos outros, não querem isto. A Comissão Europeia começa a censura-los, pressionando-os a alterarem a sua posição, caso contrário, o financiamento já acordado não lhes será disponibilizado.  Penso que é mau para a União Europeia.

Pergunta: E é bom para nós?

Serguei Lavrov: Não me parece que seja bom para nós. Penso que deveríamos assumir uma posição indiferente. Não podemos estar felizes ao saber que as pessoas na Europa passam frio e vivem mal.

Pergunta: Não podemos. Pode acontecer que os europeus fiquem fartos de “impor” a sua visão de que o senhor está a falar? Pode acontecer que os países acabem por ter líderes políticos de orientação nacional que pensarão nos seus cidadãos e por isso não quererão brigar com a Rússia? Não será do interesse de nenhuma nação brigar  com o nosso país.

Serguei Lavrov: Está certo. Este processo de saneamento é certo. As pessoas livrar-se-ão da ilusão de que Bruxelas decidirá tudo por elas, que as coisas serão as mesmas todos os dias: a energia será sempre  barata, a comida e tudo estará bem. É provavelmente do interesse da própria Europa e dos povos que a compõem fazer isto, mas não sei como é que tais processos ocorrerão.

Não nos regozijaremos e não estaremos muito preocupados. Acho que deveríamos assumir uma posição de afastamento. Foram eles que criaram esta situação e querem viver em tais condições, rompendo os laços naturais e benéficos criados ao longo de longas décadas nas áreas de  energia, logística, transporte. A escolha é deles. "A amar e a rezar ninguém se pode obrigar”. Este processo, quando o concluírem (se o conseguirem fazer de todo, porque não há maneira de o poderem fazer com fins lucrativos) será dispendioso para o desenvolvimento subsequente da economia europeia. Que não nos peçam para voltarmos a acordos. Provaram ser desconfiáveis. Não podemos planear investimentos estratégicos a longo prazo no desenvolvimento do nosso país e das suas relações externas, tendo em conta tais "parceiros". Teremos outros parceiros, mais compreensíveis. Sempre os tivemos: no Leste, no Sul, noutros continentes. Agora que a quota parte do Ocidente nos nossos laços económicos externos diminuiu muito, a fatia dos nossos outros parceiros aumentará.

Sobre as tendências na Europa. Demonstra também uma total irresponsabilidade no que respeita à explicação às populações dos seus países das causas da atual crise. O Chanceler alemão, Olaf Scholz, diz não ter a menor dúvida de que a Rússia pretende reduzir os fornecimentos de gás através do Nord Stream por razões políticas e não técnicas. Ele não tem dúvidas! Como se os factos que temos relatado repetidamente, e o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, não tivessem mostrado que a Europa reduzira sistemática e consistentemente as oportunidades para o Nord Stream 1, tendo deixado pendente a questão do Nord Stream 2 e decretado retroativamente as restrições à utilização do Nord Stream na altura em que os investimentos já foram feitos e as regras de investimento não podiam  ser alteradas nesta fase. No entanto, a Comissão Europeia insistiu e isso foi feito. Em vez de permitir encher o gasoduto a cem por cento, reduziram o volume de gás a ser transportado pela metade.

Somos também acusados de estarmos a usar a fome como arma. Isso foi dito por Ursula von der Leyen.

Pergunta: A fome e o frio. Lembra-se de termos tido o "General Frio"? Agora temos o “General Trigo” e o “General Aquecimento”.

Serguei Lavrov: A Secretária do Tesouro dos EUA,  Janet Yellen,  fez recentemente uma declaração patética de que os EUA não permitirão que a Rússia, a China, ou qualquer outro país altere as regras económicas internacionais supostamente aprovadas por todo o mundo e não permitirão que a Rússia utilize os processos de integração económica como arma. Acho que esta declaração “desbanca outras brilhantes afirmações” que ouvimos hoje em grande número e assemelha-se à agonia: eles já não sabem como explicar os seus fracassos.

Pergunta: O senhor mencionou a "transição verde" e como alguns países leste-europeus que, como nós, rejeitam a agenda LGBT, estão a ser pressionados. Pode ser que o senhor, como pessoa mais experiente e familiarizada, durante décadas, com muitos processos, compreenda isso melhor do que nós, pessoas comuns. Esta agenda, a transição verde, os movimentos LGBT, MeToo, BLM, o cancelamento do bailado na principal escola de dança inglesa, a proibição de fazer provas de matemática porque as minorias não conseguirão aprender esta disciplina em algumas outras escolas, a proibição de chamar ao leite materno “leite materno”, às mães “mães”, deixa as pessoas perplexas, elas não conseguem encontrar respostas para as perguntas: para que isso serve, qual é a ideia principal disso, quem o controla e a quem interessa? O que o senhor acha que está por detrás disso?

Serguei Lavrov: Com a análise de que dispomos, não podemos vestir a sua "pele" para compreender porque o fazem. É impossível compreendê-lo. Se uma pessoa tem uma inclinação para alguma coisa, porque não deixá-la em paz? Que a pratique. Porquê devem fazer de tudo isto uma "bandeira de um movimento”?

Pergunta: Porque é que a recém-nomeada porta-voz do Presidente vem ao pódio e diz ser lésbica e negra?

Serguei Lavrov: Também estou curioso para saber como e para onde é que o pensamento político ocidental está a evoluir. Alguns filósofos progressistas, aqueles que rejeitam o imperialismo e o colonialismo, pensam que um "milhar de milhões de ouro " ou aqueles que lideram este grupo e têm o poder de resolver questões políticas querem reduzir a população mundial, porque "o que há não chegará para todos”. O que há é pouco enquanto os humanos são muitos. Como disse Mikhail Zhvanetsky [famoso piadista soviético – N. da R.] numa referência à escassez de alimentos e de produtos manufaturados na União Soviética, "deveria haver menos de nós". Agora uma das explicações que li em algumas fontes ocidentais é exatamente essa. Isto é de assustar.

Pergunta: Não faz muito sentido porque o "milhar milhões de ouro" está assim a reduzir aqueles que compõem este grupo enquanto a população da África vem crescendo. A Nigéria, que agora quer ser nossa amiga, tem sete filhos por mulher.

Serguei Lavrov: Não. Todos estes hábitos são ali transmitidos a toda a hora.

Pergunta: Levam tempo para chegar até lá… Olha para a elite de Hollywood. Uma em cada duas crianças é transgénera ou alguém do género, não binária, ou seja, não terão netos. Começaram com eles próprios. Isso é certo.

Serguei Lavrov: Talvez isto também faça parte do seu plano, partilhar o menos possível. Eu disse desde já que não tenho uma explicação clara e sensata para isso. Acabo de lhes expor, talvez, uma das teorias da conspiração.

Pergunta: Antes da operação especial e agora costuma acreditar-se    que o Ocidente não consegue resolver os seus problemas sem nós. Em muitos aspectos, isto é verdade. O levantamento de algumas das sanções é uma prova disso. No entanto, não é claro se o pacote adotado esta semana é um conjunto de novas restrições ou visa levantar as antigas. E se, de repente, eles conseguirão passar sem nós? Qual é a perspectiva, na sua opinião? Poderá o Ocidente desistir completamente dos nossos recursos energéticos no futuro, se isso não o fizer neste inverno, pode fazê-lo no próximo inverno no inverno seguinte. Não permitirá o  lançamento do Nord Stream 2, deixará de utilizar os recursos fornecidos pelo Nord Stream 1. Haverá tal possibilidade? O que tem a dizer sobre isso?

Serguei Lavrov: O que é o novo pacote de restrições anunciado: sanções ou isenções, tanto uma coisa como outra, pois o Ocidente já não vê novas áreas em que possa prejudicar-nos. Já estão a pensar no que fizeram e em como isso os está a impactar. Que eu saiba, desta feita, os ocidentais fizeram esclarecimentos para permitir atender às exportações de alimentos russos. Durante meses, foi-nos dito que a Rússia é a “responsável” pela crise alimentar porque os alimentos e os fertilizantes não estão sob sanções, pelo que o nosso país não deve "criar vias para contornar as sanções” e deve vender os seus produtos, porque ninguém a está a impedir de o fazer. Nós, por nossa vez, tentámos explicar-lhes que, embora os alimentos e fertilizantes não fossem alvo de sanções, o frete, os seguros, as visitas dos nossos navios que transportavam estas mercadorias para portos estrangeiros e as vindas de navios estrangeiros aos nossos para buscar as cargas estavam abrangidos pelo primeiro ou segundo pacote de restrições ocidentais. Estão a mentir-nos na cara, alegando que nada disto é verdade e que tudo depende de nós. Não é um jogo limpo.

Infelizmente, eles (ocidentais) tentaram e ainda estão a tentar atrair para os seus jogos o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que, preocupado com a crise alimentar, veio à Rússia. Numa reunião com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, ele propôs uma solução de pacote. Por um lado, havia grãos russos que deveriam ser libertados de restrições artificiais e ilegítimas, por outro, grãos ucranianos que deveriam ser libertados de minas. António Guterres disse que iria persuadir a Europa e os EUA a remover todos os obstáculos à exportação de cereais russos. Em contrapartida, a Rússia deveria cooperar com eles, os turcos e os ucranianos na desminagem dos portos do Mar Negro para libertar os cereais ucranianos. Respondemos-lhe que, em princípio, os portos do Mar Negro poderiam ser desminados sem nós, mas se houvesse esse desejo, poderíamos aceitá-lo. O Secretário-Geral promoveu e propagandeou esta solução de pacote. Na semana passada, os nossos colegas foram a Istambul para acordar o esquema. Acordaram os princípios básicos segundo os quais os cereais ucranianos seriam exportados, mas quando a delegação russa mencionou a segunda parte da solução de pacote, os ucranianos recusaram-se categoricamente a discuti-la, enquanto a delegação da ONU ficou calada.

Ontem enviámos uma mensagem ao Secretário-Geral a dizer que a iniciativa era sua. Em resposta, António Guterres sugeriu solucionar, em primeiro lugar, a questão dos cereais ucranianos e deixar para depois a dos cereais russos. Este não é um jogo limpo. Não fica bem às pessoas envolvidas na alta política fazer coisas como essas. Este episódio significa apenas uma coisa: estou convencido de que o Secretário-Geral está sob enorme pressão, sobretudo dos norte-americanos e dos britânicos que se estabeleceram no Secretariado da ONU em torno de António Guterres ocupando cargos de secretário adjunto e utilizando ativamente esta estrutura por eles "privatizada" no seu interesse. É de lamentar.

Pergunta: Como pode esta pressão ser tecnicamente exercida? Como poderíamos explicar isso às pessoas comuns: se não o fizeres, vamos, digamos, meter-te na cadeia? O que é que eles vão fazer?

Serguei Lavrov: Não creio que eles utilizem métodos de chantagem pessoais. Quando se realiza uma votação na Assembleia Geral da ONU,  os embaixadores são abordados para ser informados de que, por exemplo, uma resolução antirrussa está em votação. Ao mesmo tempo, lembram-lhes que têm uma conta em Manhattan e uma filha a estudar em Stanford. É mais ou menos assim que isso acontece.

Pergunta: Mais ou menos a mesma coisa.

Serguei Lavrov: Acontece. Aqui, claro, não agem com tanta insolência. Os funcionários do Secretariado da ONU (que, na sua maioria esmagadora, são de países ocidentais, porque o número de funcionários do secretariado reservado a um país depende da sua contribuição) não atuam, na maioria dos casos, de forma neutra, como exige a Carta das Nações Unidas e o seu Regulamento de Secretariado. Isto é vida. Afirmo-o. Tem sido sempre assim.

Quanto à segunda parte da sua pergunta, penso que os ocidentais não estão agora a tentar de forma alguma mostrar que estão errados. Os partidos no poder fá-lo-ão por gancho ou por vigarista, pois não têm outra escolha, embora ainda haja oposição. Na Áustria, já começaram a ouvir-se vozes (do Partido Austríaco da Liberdade, que não é muito apreciado em Bruxelas, e é uma entidade legítima). Noutros países, a oposição levanta a cabeça e pergunta: porque é que estão a fazer isto? Porque não podem simplesmente olhar para as coisas e chegar a acordo? Muitas pessoas estão com perguntas.

Os países em desenvolvimento veem a situação de um modo diferente e não acha que a Rússia tenha cruzado uma “linha vermelha”. Eles lembram-se do que os norte-americanos fizeram no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e Jugoslávia em 1999. Nenhumas advertências de que os interesses norte-americanos haviam sido prejudicados foram feitos nenhuns apelos para fazer algo foram lançados…

Pergunta: Nenhuns oito anos de tentativas de chegar a acordo...

Serguei Lavrov: Os EUA bombardearam países localizados a 10.000 quilómetros da sua costa, arrasando as suas cidades. A Europa não se atreveu a dar um mínimo “pio” para dizer que isso era mau.

Pergunta: E não havia necessidade de proteger grandes comunidades de norte-americanos nesses países…

Serguei Lavrov: É isso mesmo. No nosso caso, a situação é totalmente diferente. Estamos a falar de uma ameaça real, e não inventada para espalhar os nossos tentáculos imperialistas para o além-oceano, estamos a falar de uma ameaça nas nossas fronteiras. Advertimos, durante muitos anos, o Ocidente para que se abstivesse de transforma a Ucrânia numa anti-Rússia, atrai-la para a NATO e criar ameaças militares diretas à nossa segurança. Todo o mundo compreende isso muito bem.

Voltando à Europa, não creio que seja do interesse dos europeus romper completamente todos os laços connosco e mudar para o GNL, que os norte-americanos estão a tentar...

Pergunta: ...impor-lhes.

Serguei Lavrov: Eu queria usar uma palavra menos educada, mas o verbo “impor” serve. A escolha será deles. Cientistas sérios escrevem que a Alemanha deve toda a sua atividade económica e prosperidade das últimas décadas principalmente aos recursos energéticos russos que lhe foram vendidos a preços acessíveis, razoáveis e previsíveis. É verdade que o GNL é um produto mais flexível. O gás tem de ser comprado no "fim" do gasoduto, enquanto que o GNL pode ser redirecionado. Por outro lado, esta é uma das suas desvantagens. Quando a procura de GNL na Ásia aumentou, os norte-americanos enviaram o seu GNL para lá, porque o seu preço naquele mercado era mais alto. Tudo isso pode provocar não só uma alta de preços como também a diminuição de fornecimentos numa determinada etapa. Todavia, se eles o fizerem, não teremos muitos problemas por causa disso.

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse que, dado o que estão a fazer com o Nord Stream 2 (estamos prontos para o pôr em funcionamento, já possui a pressão de operação necessária), na situação atual, 50 por cento da quantidade do gás destinado a este gasoduto já estão reservados para o consumo interno: para fins de aquecimento, para a indústria química e para outros projetos industriais. Iremos redirecioná-lo sem quaisquer perdas graves. Não duvido disso. Temos clientes, há procura, no final de contas, temos como aplicá-lo dentro do nosso país: na construção de uma rede de distribuição de gás natural e no desenvolvendo da nossa indústria química.

Pergunta: Milhares de aldeias do país vivem atualmente sem gás...

Serguei Lavrov: É o que estou a dizer: construção de uma rede de gás. Portanto, a escolha será deles. Gostaria de repetir: não devemos (e, graças a Deus, ninguém está a tentar fazê-lo) buscar soluções que impliquem a possibilidade, a probabilidade ou até mesmo a conveniência de regressar à situação que tínhamos há seis meses quando era possível restaurar as velhas “cadeias” de fornecimento. Penso que devemos acabar com elas e começar a construir cadeias novas, mais fiáveis. É isto que estamos a fazer agora, incluindo o corredor Norte-Sul, de São Petersburgo ao Oceano Índico, e da Índia a Vladivostok. Temos toda uma série de projetos que estão em fase avançada de execução. Se algum dia a Europa disser, de repente, que cometeu um erro sob o domínio de emoção e está interessada em restaurar as nossas relações económicas e comerciais, não devemos repeli-la. Deveremos, primeiro, ver se isso será vantajoso para nós e depois responder.

Pergunta: Enfiaram-nos a carapuça uma vez, voltarão a fazê-lo, é assim que diz o povo. O senhor mencionou a diversificação das nossas áreas de cooperação. Falámos muito sobre o Leste (China, Índia). Desta vez, o senhor vai à África, ou seja, ao Sul. O que é que vai fazer ali? Quais são as suas expectativas? O que devemos esperar?

Serguei Lavrov: Temos boas relações de longa data com África desde a época soviética. A URSS foi pioneira e liderou um movimento que culminou com a descolonização. Prestamos assistência ao movimento de libertação nacional e depois à restauração económica de novos países independentes, tendo construído para eles centenas de fábricas que constituem agora a base de muitas economias africanas. Na ONU, liderámos o movimento para que a descolonização se formalizasse como parte integrante do direito internacional e da vida.

Depois, no lugar da União Soviética surgiu a Federação da Rússia. Tivemos grandes problemas, não em África, mas no nosso país.

Há muitos anos que temos vindo a recuperar as nossas posições. Os africanos agem em reciprocidade. Eles estão interessados em ter-nos. Nunca lhes ensinámos nada, ajudámo-los sempre a resolver os seus problemas para que pudessem viver no seu país da forma que quisessem.

Pergunta: Eles, aliás, pensam que os ensinámos, na boa acepção da palavra.

Sergei Lavrov: Não. Ajudámo-los a cumprir os seus objetivos. Nunca lhes dissemos que fizessem amizade com os EUA ou outros países. Não lhes pregamos moral, contrariamente aos norte-americanos que viajam pelos países africanos dizendo-lhes: "não contactem com os chineses nem com os russos. Eles são sempre interesseiros, mesmo quando fazem comércio com vocês".

Todos os anos trocamos visitas. Uma vez ou duas vezes por ano, o Ministro dos Negócios Estrangeiros visita países africanos. Procuramos organizar isso de modo a abranger o maior número possível de países num período de dois a três anos. Este ano, temos visitas agendadas ao Egito, à Etiópia, ao Uganda e à República do Congo. Temos boas tradições e boas realizações económicas nestes países.

O Egito é o nosso principal parceiro comercial e económico na África, com o comércio bilateral a somar cerca de cinco mil milhões de dólares. Estamos a construir ali a primeira central nuclear. Está em fase de conclusão o projeto de criação de uma zona industrial russa nas margens do Canal de Suez. As nossas relações com África têm perspectivas ainda maiores à luz das decisões tomadas pela União Africana no ano passado no sentido de criar uma Zona de Comércio Livre Continental Africana. Estão a ser acordados critérios e tarifas para esta zona, o que levará algum tempo. Isto será do interesse da Rússia como parceiro crescente de África e contribuirá para o aumento do nosso comércio e investimentos que são bastante modestos em comparação com os EUA, a China e a UE. Agora temos de trabalhar arduamente com os nossos colegas para preparar a segunda cimeira Rússia-África. A primeira foi em Sochi, em 2019. A segunda deverá acontecer no próximo ano.

Pergunta: Em Odessa, talvez?

Serguei Lavrov: Não, é pouco provável que seja em Odessa. Anunciaremos o local do evento mais tarde. Em simultâneo, será realizado um fórum económico com mesas redondas sobre o comércio, energia, cibersegurança, agricultura, espaço exterior e energia nuclear.

Devemos intensificar as nossas atividades naquela região. A África tem uma população de 1,4 mil milhões de pessoas, o que é comparável à China e à Índia. É uma grande parte do mundo moderno e provavelmente o mercado mais promissor. É por isso que as empresas e os países previdentes elaboram estratégias a longo prazo para a África, que é o continente do futuro. As nossas relações têm uma boa base política, temos um bom entendimento mútuo baseado no facto de milhares de africanos que ocupam posições nos seus respectivos governos terem estudado na Rússia e continuarem a fazê-lo. Precisamos de utilizar este capital humano e político nas nossas atividades económicas.

Pergunta: Que relações temos com os nossos "Ex" (sei que os "Ex" se tornam raramente amigos, mas, por vezes, tornam-se)? Temos verdadeiros amigos entre os nossos "Ex", incluindo a Bielorrússia? O que se passa no Cazaquistão, recebemos sinais diferentes de lá? Não tem a sensação de que, nalguns aspectos, somos os culpados, deixámo-los à mercê da Europa, EUA e até da Turquia? O que é que pensa?

Serguei Lavrov: Houve um tal período. A União Soviética deixou de existir. Assinámos os Acordos de Belovezhskaia Pucha. Claro que os países que não foram convidados para Belovezhskaia Push cha se sentiram melindrados, sem dúvida. Compreendo-os. Depois, procurámos corrigir esta situação (aliviar a ofensa, por assim dizer). Nos finais de 1991, realizámos uma reunião especial em Alma-Ata. Porém, o ressentimento permaneceu. O mais importante é que houve um acontecimento a que se seguiram processos.

Nos primeiros anos de independência e soberania, a nossa liderança fez pouco impedir o arrefecimento das relações com os nossos vizinhos, os nossos aliados mais próximos. Vivemos juntos durante muitas centenas, ou mesmo milhares de anos. Lembro-me daquela época. Fui Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1992 e 1994 até partir para trabalhar em Nova Iorque. A minha função era tratar de organizações internacionais, entre outras coisas. A dada altura Andrey Kozyrev pediu-me para tratar de assuntos da CEI. Trabalhei pouco tempo nesta área. A situação não inspirava muito otimismo (não era o Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas sim o Gabinete do Presidente que decidia sobre as políticas para esta região). Na altura, todos pensavam que não tinham para onde ir. Vivíamos sempre juntos, partilhávamos a língua, as universidades e os gostos. Por isso, pensávamos que continuaríamos a viver juntos. As nossas relações económicas estavam tão entrelaçadas ao longo das décadas e séculos que era impossível rompê-las. Todavia, o Ocidente não estava de braços cruzados, é verdade. E não só o Ocidente. Se olharmos agora para a Ásia Central, veremos quantos formatos ali existem: o "Ásia Central mais parceiro", “Ásia Central mais os EUA” ou "Ásia Central mais a União Europeia", ou "mais o Japão", ou "mais a China", ou "mais a Turquia”, ou "mais a Índia" e "mais a Rússia", porque, apesar de termos a CEI, a UEE,  a OCX, a OTSC, não tínhamos uma associação que integrasse os cinco países da Ásia Central e a Rússia. Agora a temos. As relações são mantidas não só a nível de ministérios dos negócios estrangeiros, mas também a nível de estruturas económicas. É um processo importante. Outrora tínhamos sistemas comuns de abastecimento de água e energia. Agora os nossos "parceiros" ocidentais estão a tentar infiltrar-se precisamente nestas áreas. A UE e os EUA apresentam os seus programas destinados a adaptar às suas necessidades os processos emergentes nas áreas de utilização de água e energia e baseados na herança soviética. Aparentemente, o próprio Deu manda-nos conjugar os esforços nesta área. É o que estamos a sugerir aos nossos parceiros. Eles concordam, só que o Ocidente procura “desorganizar” este processo natural e interferir nas nossas relações com os nossos "Ex", como a senhora disse. O poeta Andrey Ex disse uma vez: "Não voltem para os seus ex-namorados”. Assim começa o seu poema que termina dizendo que: “De qualquer maneira, não tem para onde ir".

Pergunta: Uma poetisa moderna, atualmente muito em voga, Vera Ex, tem o seguinte verso: "Ela é amiga de todos os seus Ex como se eles nunca a tivessem traído". O senhor e o Ministério dos Negócios Estrangeiros disseram que não sabiam nada sobre a operação militar especial antes de esta começar. Pelo menos, não sabiam nada sobre ela muito antes de esta começar. Talvez isto não seja verdade, mas a impressão era essa. Posso perguntar-lhe como soube da operação? O que sentiu? Lembro-me bem do que Tigray Tigray e eu sentimos à noite, quando soubemos disso. Gostaria de lhe perguntar o que sentiu na altura. O que pensa das pessoas que agora passaram a ser chamadas "patriotas assustados" por terem partido para o estrangeiro, a pretexto de “ficarem assustados” ou “terem vergonha do país”, etc.?

Serguei Lavrov: Quanto à sua pergunta sobre quando “fiquei a saber”, não é o meu segredo.

Pergunta: Isto é, este não é um segredo de Estado?

Serguei Lavrov: Este não é um segredo de Estado, mas este segredo não é meu.  Se me permite, gostaria de não tocar neste assunto.

A sensação que eu tinha quando tudo foi anunciado era a inevitabilidade. Não alegria. Não é motivo de alegria saber que o teu país tem pela frente combates e os seus cidadãos irão defender a justiça e arriscar as suas vidas. Tinha a sensação de inevitabilidade e até de alívio. Durante muitos anos, não soubemos responder à pergunta feita pelos habitantes do Donbass e por muitos cidadãos do nosso país: “até quando”?     Até quando permitiríamos ofender o bom senso, o povo, a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas e tudo o que estava ligado a isso e o que foi descaradamente sabotado.

Pergunta: O que é que pensa dos que têm vergonha de ser russos?

Serguei Lavrov: Estamos agora a ter uma grande polémica sobre agentes estrangeiros e se foi bom elaborar uma nova lei que alguns consideram como amplificadora e perguntam se estamos certos ou errados. Vejo programas de auditório, inclusive os em que a senhora participa e em que são debatidas questões compreensíveis a todas as pessoas: “Eles partiram o que vamos fazer com eles? Como devemos encará-los se voltarem? Devemos permitir que eles regressem?” Eu não tenho uma opinião. Sem dúvida, cada um é dono do seu destino. No entanto, cada um deve ter consciência e vive com aquilo que tem na sua consciência. É assim que eu vejo as coisas. Porém, o que não posso aceitar são publicações (por dever do cargo, tenho de ler alguns recursos  designados no nosso país como agentes estrangeiros). Como saboreiam os problemas enfrentados pela Federação da Rússia e que são, na sua opinião, impossíveis de resolver! Com que…

Pergunta: Malevolência.

Serguei Lavrov: Sim, eles prometem um colapso. Um deles escreveu que a Rússia estava ameaçada de morte em termos de altas tecnologias, porque não tem cérebros nem instituições. Como é possível escrever tais coisas sobre o seu país!

Alguns outros também exercitam-se. Quando a corporação espacial russa (Roskosmos) disse aos norte-americanos, respondendo às suas sanções, que uma vez que eles não queriam os nossos motores, não  iriamos fornecê-los aos EUA nem ao Reino Unido. Então colocaram a nossa corporação sob sanções, quer dizer, não podem contactar com a Roskosmos. Um outro site definido como agente estrangeiro chegou ao ponto de afirmar que a nossa corporação teria violado todos os seus compromissos, tornando-se assim parceiro desconfiável, pelo que ninguém  ira contactar com ela. Dizemos “padrões duplos”. É assim que eles funcionam, pura e simplesmente. Neste caso é desnecessário procurar construções complexas.

A minha opinião é que estas pessoas deveriam ser deixadas a sós para pensar no que fizeram. Como encará-las é outra questão. Continuarão os seus conhecidos contactar com eles, renovará o Estado as suas  relações com eles, é outra questão. O que é mais importante é deixá-los a sós com a sua consciência.

Pergunta: A sua confiança de que cada pessoa tem uma consciência já lhe prestou um mau serviço com Petro Poroshenko e os acordos de Minsk. Talvez devesse deixar de acreditar nisto? Nem todos têm uma consciência, infelizmente. Todos nós e cada pessoa no nosso país querem saber quando "isto" vai acabar. Todos queremos que a operação militar especial termine o mais rapidamente possível, para que os nossos soldados e os civis, que são considerados de jure pela sua antiga Ucrânia como seus e estão a ser bombardeados pela mesma todos os dias, deixem de morrer. Quando é que isso vai acabar? Não sabemos. Não lhe vou perguntar sobre isso. Obviamente, não saberá nos dizer. Onde o senhor acha que isso deve terminar? Não estou a falar sobre os objetivos anunciados por Vladimir Putin. Evidentemente que os resultados potenciais desta operação serão a desmilitarização e a desnazificação. Isto é evidente. Onde a operação vai parar geograficamente? Onde é que seria sensato, correto e bom para nós?

Serguei Lavrov: No que diz respeito a previsões e prazos, acabo de recordar um facto engraçado. O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmitro Kuleba, disse recentemente que Vladimir Zelensky havia fixado uma data limite para a adesão à União Europeia e que ele não iria anunciá-la porque muitos na União Europeia poderiam ficar assustados e tentar travar o processo da sua adesão à UE.

Não temos datas limites. Quanto à operação militar especial e coordenadas geográficas, o Presidente Vladimir Putin deixou bem claro (como a senhora o citou): a desnazificação e a desmilitarização, para que não haja nenhumas ameaças à nossa segurança, nem ameaças militares a partir do território da Ucrânia. Este objetivo mantém-se. Na reunião de Istambul falou-se de um local para o fim da operação. A nossa disponibilidade para aceitar a proposta ucraniana baseava-se na situação existente no final de março de 2022.

Pergunta: Isso era a República Popular de Donetsk ou a República Popular de Lugansk?

Serguei Lavrov: Sim, mais ou menos. Agora o mapa é diferente e abrange não só as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk como também as Regiões de Kherson e Zaporozhye e várias outras. Este processo continua, de forma consistente e persistente, e continuará enquanto o Ocidente dominado pela raiva impotente continuar a encher a Ucrânia de armas com um alcance cada vez maior, agravando ainda mais a situação.  Tomemos os HIMARS. O Ministro da Defesa da Ucrânia,    Alexey Reznikov, regozija-se por terem recebido projeteis com 300 km de munições. Isto significa que os nossos objetivos geográficos irão afastar-se ainda mais da linha atual. Não podemos permitir que a parte da Ucrânia a ser controlada por Vladimir Zelensky ou pelo seu sucessor tenha armas que representem uma ameaça direta para o nosso território e para as repúblicas que declararam a sua independência e que querem determinar livremente o seu futuro.

Pergunta: Como é que isto pode ser realizado tecnicamente? Aqui está o nosso território. Aqui está o territórios das repúblicas que querem integrar-se no nosso país, ou melhor dizendo, já se integraram de facto: as  Regiões de Kherson e Zaporozhye. Vocês são diplomatas, por isso não podem dizer isto. Eu sou jornalista, e chamo as coisas pelos seus nomes. Do outro lado há o território controlado por Vladimir Zelensky. Estes territórios têm uma fronteira comum. Portanto, ou deve haver uma zona tampão de 300 quilómetros ou devemos marchar até Lvov.

Serguei Lavrov: Há uma solução para este problema. Os militares sabem-na.

Pergunta: Uma solução secreta? Acha que há uma hipótese de sairmos sem levar a operação a termo? Isto é algo que os nossos assinantes e espectadores temem.

Serguei Lavrov: Não vejo razão para pôr em dúvida o que o Presidente Vladimir Putin anunciou a 24 de fevereiro de 2022, e reafirmou há alguns dias: os nossos objetivos continuam os mesmos e serão cumpridos.