Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, ao canal de televisão RBC TV, Moscovo, 16 de março de 2022
Pergunta: As conversações foram realizadas na Bielorrússia e depois por videoconferência. No passado dia 10 de março, o senhor falou com o Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba. Como é que está a decorrer agora o processo de negociação na sua opinião?
Serguei Lavrov: Não fui à Turquia para "usurpar" o canal de negociações bielorrusso acordado pelos Presidentes da Rússia e da Ucrânia, Vladimir Putin e Vladimir Zelensky, respetivamente. As negociações estão a ser mantidas agora por videoconferência. O Presidente Vladimir Zelensky havia pedido ao Presidente da Turquia, Recep Erdogan, para falar com o Presidente Vladimir Putin para que Dmytro Kuleba e eu pudéssemos encontrar-nos em Antália, pois ambos planeávamos participar no Fórum Diplomático de Antália.
Recebido o pedido, o Presidente Vladimir Putin pediu-me para me reunir com Dmytro Kuleba para ouvir o que ele tinha a propor (o que eu lhe pedi que fizesse). Ele afirmou que não tinha vindo para repetir declarações públicas. Fiquei ainda mais curioso. Durante a conversa de uma hora e meia na presença do Ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Mevlut Cavusoglu, Dmytro Kuleba não apresentou nenhumas ideias novas, apesar de eu lhe ter dito várias vezes que eu queria ouvir algo que não fosse declarado publicamente. Esta foi a minha proposta. Só conversámos e pronto. Estamos dispostos para contactos semelhantes no futuro. Gostaríamos de saber qual valor acrescentado que estes contactos poderiam ter e como as propostas de criar ou organizar novos canais de interação se correlacionam com o funcionamento de um processo de negociação sustentável ("canal bielorrusso").
Não comentarei em pormenor os detalhes. Pertencem a uma esfera delicada. Como disse o chefe da delegação russa Vladimir Medinski, as conversações são sobre questões humanitárias, sobre a situação "no terreno" em termos de hostilidades e sobre a solução política. A agenda é mais ou menos conhecida (foi anunciada publicamente várias vezes pelo Presidente russo Vladimir Putin nos seus extensos discursos): questões da segurança e salvamento de vidas na Região de Donbass; impedir que a Ucrânia se tornasse uma ameaça permanente à segurança da Federação da Rússia; e impedir que na Ucrânia ressurgisse a ideologia neonazi proibida em todo o mundo, incluindo na Europa civilizada.
Oriento-me pelas avaliações dos nossos negociadores. Afirmam que as negociações não são fáceis (por razões conhecidas). No entanto, há alguma esperança de se chegar a um compromisso. Alguns representantes do lado ucraniano, incluindo os do gabinete de Vladimir Zelensky e o próprio Presidente da Ucrânia, são da mesma opinião.
Pergunta: O Presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, disse que as posições da Rússia e da Ucrânia nas negociações se tornaram mais "realistas".
Serguei Lavrov: Esta é uma avaliação mais realista de Vladimir Zelensky em relação ao que está a acontecer. Antes, fazia declarações confrontacionistas. Pelos vistos, esta função fora reatribuída ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmytro Kuleba, que passou a dizer que as exigências da Rússia são "inaceitáveis". Se eles desejarem criar uma nova tensão (como se a que existe não fosse suficiente) no espaço mediático, o que podemos fazer com isso?
Algo semelhante aconteceu com os acordos de Minsk. Dmytro Kuleba "galopou à frente" daqueles que "espadeiraram" os acordos de Minsk. Declarou publicamente que eles não iriam cumprir estes acordos. Eu daria aos negociadores a possibilidade de trabalhar tranquilamente sem fomentar a histeria.
Pergunta: O Presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, disse que eles eram "pessoas adequadas" e compreendiam que não eram mais esperados na NATO. Porque é que mudou de retórica? A adesão à NATO é um dos artigos da Constituição ucraniana. Têm sempre dito que Kiev quer realmente juntar-se à aliança.
Serguei Lavrov: Ele mudou de retórica porque a liderança ucraniana passa a ter pensamentos adequados. A questão da extinção da URSS foi resolvida de uma forma específica: nem todos foram questionados, tudo foi decidido a três e os três formalizaram tudo. Depois surgiu uma espécie de união na forma de Comunidade de Estados Independentes. Ainda bem que mostraram pelo menos retrospetivamente respeito pelas outras repúblicas da ex-União Soviética.
A Declaração de Soberania Nacional da Ucrânia adotada antes dos Acordos de Belovezhskaia Pucha, escreveu preto no branco que a Ucrânia seria neutra e não alinhada. Todos os documentos subsequentes relativos à afirmação do Estado ucraniano citavam a Declaração a par de outros documentos básicos. Após o golpe inconstitucional de fevereiro de 2014, a Constituição ucraniana passou a incluir teses sobre o avanço "non-stop" rumo à NATO (e à União Europeia), o que prejudicou a integridade do processo até então afirmado e os documentos fundamentais em que o Estado ucraniano se baseava, uma vez que a Declaração de Soberania e a Lei da Independência da Ucrânia continuavam a figurar entre os documentos que sustentavam o Estado ucraniano.
Esta não é a única contradição. A Constituição ucraniana continua a conter a disposição sobre a garantia dos direitos das minorias de língua russa e outras minorias nacionais. Não obstante, eles adotam um monte de leis que vão contra esta disposição constitucional, discriminando flagrantemente a língua russa, ao arrepio de todas as normas europeias.
Lembramo-nos de como o Presidente Vladimir Zelensky declarou recentemente que a NATO deveria criar uma zona de exclusão aérea na Ucrânia e começar a lutar por aquele país, recrutar mercenários e enviá-los para a zona de combate. Falou de forma agressiva. A reação da Aliança do Atlântico Norte onde ainda há pessoas sensatas esfriou o seu ímpeto combativo. A adequação da situação atual é de saudar.
Antes de decidir sobre uma operação militar especial, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, falou, numa conferência de imprensa no Kremlin, das nossas iniciativas relativas às garantias de segurança na Europa, explicando a razão por que é inadmissível que a segurança da Ucrânia seja garantida através da sua adesão à Aliança do Atlântico Norte. Disse sem rodeios que estamos prontos para quaisquer formas de garantir a segurança da Ucrânia, dos países europeus e da Rússia, menos a expansão da NATO para leste. A Aliança assegura-nos: "não tenham medo, somos uma aliança de defesa, não há nenhuma ameaça para vós nem para a vossa segurança". Todavia, a NATO foi declarada como aliança de defesa nos primeiros tempos da sua existência. Na época da Guerra Fria, estava claro quem e contra quem se defendia. Convencionalmente, havia um muro em Berlim, um muro de betão e um muro geopolítico. Todos aceitaram esta linha de contacto entre a Organização do Pacto de Varsóvia e a NATO. Estava claro qual era a linha que a NATO iria defender.
Quando o Pacto de Varsóvia e depois a União Soviética deixaram de existir, a NATO começou a avançar para leste sem consultar aqueles que anteriormente tinham feito parte do equilíbrio de poder no continente europeu, movendo a sua "linha de defesa" cada vez mais para a direita. Quando a sua linha se aproximou muito (ninguém levou a sério as nossas preocupações que expressámos nos últimos 20 anos), avançámos as nossas iniciativas sobre a segurança europeia as quais também foram ignoradas, para grande tristeza nossa, pelos nossos parceiros arrogantes.
Pergunta: Muitas pessoas na Rússia e na Ucrânia perguntam: não terá sido possível resolver politicamente esta situação? Porque isso não chegou a acontecer? Porque era necessário lançar uma operação especial?
Serguei Lavrov: Porque o Ocidente não queria resolver politicamente esta situação. Já o disse, mas quero sublinhá-lo novamente. Não se trata de modo algum da Ucrânia. Não se trata apenas e não tanto da Ucrânia, mas da ordem mundial.
Os EUA "subjugaram" toda a Europa. Agora, alguns europeus dizem-nos: vocês comportaram-se "desta maneira", a Europa tinha "interesses especiais" em relação aos EUA, agora vocês fizeram com que eles "se unissem num lance de ataque". Creio que aconteceu algo diferente. Os EUA sob Joe Biden decidiram subjugar a Europa e fizeram com que esta seguisse submissa na esteira da política norte-americana. Este é um momento crucial, um momento marcante na história moderna porque reflete uma "batalha" no sentido mais lato da palavra pela futura ordem mundial.
Há anos, o Ocidente deixou de utilizar o termo "direito internacional" corporificado na Carta das Nações Unidas, tendo inventado o termo "ordem mundial baseada em regras". Estas regras foram elaboradas por um pequeno grupo de países. Aqueles que as aceitaram foram mimados pelo Ocidente. Ao mesmo tempo, foram criadas estruturas estreitas, não universais nas áreas onde existem estruturas universais. Temos a UNESCO, em paralelo cria-se uma espécie de parceria internacional para a informação e a democracia. Temos o direito humanitário internacional e a Agência das Nações Unidas para os Refugiados, ao mesmo tempo, a UE cria uma parceria especial para a mesma questão onde as decisões serão tomadas com base nos interesses da UE, sem se ter em conta os processos universais.
A França e a Alemanha criam uma aliança multilateralista. Quando lhes perguntámos por que razão a criam quando o multilateralismo está encarnado na ONU, a mais legítima e a mais universal organização, eles deram-nos uma reposta curiosa: "Sabem, há muitos retrógrados, enquanto nós somos vanguardistas. Queremos promover o multilateralismo para que ninguém nos trave". Quando lhes perguntámos sobre os ideais do seu multilateralismo, eles disseram-nos: "Valores da União Europeia". Esta arrogância, este sentido de superioridade sem fim erradamente entendido prevalece também na situação que agora estamos a abordar: a construção de um mundo em que o Ocidente governe tudo impune e inquestionavelmente. Há quem afirme que a Rússia está a ser atacada por ser quase o último obstáculo a ser ultrapassado antes de enfrentar a China. É uma afirmação simplória, mas contém uma boa dose de verdade.
O senhor perguntou-me por que razão a situação não poderia ter sido resolvida politicamente. Há muitos anos que nos propomos resolvê-la politicamente. A proposta de Vladimir Putin na Conferência de Segurança de 2007 de Munique foi levada a sério por muitos políticos objetivos, norte-americanos e europeus. Infelizmente, aqueles que tomaram decisões nos países ocidentais ignoraram-na. Também foram ignoradas as numerosas avaliações feitas por cientistas políticos de renome internacional e publicadas em revistas norte-americanas (Foreign Policy, Foreign Affair) e europeias de maior tiragem e circulação. Em 2014, houve um golpe de Estado. O Ocidente pôs-se ao lado da Ucrânia e dos golpistas que chegaram ao poder em Kiev. Recusou-se categoricamente a estabelecer qualquer quadro para as relações entre a NATO e o território de interesse russo. Estas advertências também foram feitas e também foram ignoradas, usando uma linguagem moderada.
Leia Zbigniew Brzezinski. Já nos anos 90 ele disse que o problema da Ucrânia seria fundamental. Ele declarou sem rodeios que a Rússia seria uma grande potência se a Ucrânia fosse a sua amiga, e seria um player regional se a Ucrânia lhe fosse hostil. É aqui onde jaz a geopolítica. A Ucrânia era um instrumento para impedir a Rússia de defender os seus direitos legítimos no cenário internacional.
Pergunta: Não há muito tempo assisti a um discurso do atual conselheiro do Presidente ucraniano, Aleksei Arestovich. Há alguns anos, ele afirmou que a neutralidade era demasiadamente cara para a Ucrânia. "Não temos dinheiro para isso", disse ele. Qual é a sua avaliação dessa sua declaração? É verdade? Se voltarmos ao que preocupa os ucranianos comuns, às garantias de segurança, o que está a Rússia preparada para fazer? Que garantias pode dar?
Serguei Lavrov: O estatuto de neutralidade está agora a ser discutido a sério em conjunto com garantias de segurança. Foi exatamente isto que o Presidente Vladimir Putin disse numa das suas conferências de imprensa: quaisquer opções possíveis, quaisquer garantias de segurança universalmente aceitáveis para a Ucrânia e para todos os países, incluindo a Rússia, menos a expansão da NATO. Isto é exatamente o que está a ser discutido neste momento nas negociações onde surgem fórmulas concretas que, na minha opinião, estão próximas de ser acordadas.
Pergunta: Pode citá-las ou ainda não?
Serguei Lavrov: Eu preferia não o fazer agora. Porque este é um processo de negociação. Nós, ao contrário de alguns dos nossos parceiros, estamos a tentar manter a cultura das negociações diplomáticas. Embora tenhamos sido forçados a tornar públicos documentos que normalmente não devem ser divulgados. Isto aconteceu quando os nossos contactos com os coparticipantes alemães e franceses no formato Normandia foram completamente distorcidos quando foram comentados publicamente. Fomos então forçados a torná-los públicos para pôr a opinião pública internacional a par do assunto. Agora não há tentativas provocatórias deste gênero quando se discutem garantias de neutralidade da Ucrânia. O espírito pragmático que se vem patenteado aos poucos e que, espero, virá a prevalecer permite ter esperança de que possamos chegar a acordo sobre esta questão. Embora seja evidente que só declarar simplesmente a neutralidade e anunciar garantias seria um passo importante em frente. O problema é muito mais amplo. Falámos disso no contexto dos famigerados valores: a língua russa, a cultura, a liberdade de expressão, porque os meios de comunicação russos estão simplesmente proibidos, e aqueles que transmitiram em russo na Ucrânia foram encerrados.
Pergunta: No entanto, podem dizer-nos que somos um país independente e que podemos escolher sozinhos a língua que queremos falar. Porque a Rússia, Moscovo, nos obriga a falar russo?
Serguei Lavrov: Porque a Ucrânia assumiu compromissos europeus. Existe a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias. Há toda uma série de outros compromissos, incluindo no Conselho da Europa, do qual estamos a retirar-nos (o que já foi oficialmente anunciado). Mas nunca abandonaremos os nossos compromissos relativos aos direitos das minorias nacionais, linguísticos, culturais ou quaisquer outros. Nunca "nos retiraremos dos documentos" que garantam a liberdade de acesso à informação.
Nos anos 90, todos esfregavam as mãos na expetativa de ver em breve a União Soviética como parceiro submisso do Ocidente. Naquela época, fazíamos questão de mostrar que a perestroika e a nova mentalidade estavam a abrir um capítulo completamente novo na história do nosso país. Assinámos tudo o que o Ocidente nos propunha no seio da OSCE, inclusive a Declaração que o Ocidente nos propôs e que nós apoiámos, que obrigava a garantir a liberdade de acesso à informação tanto dentro de cada país como a fontes transfronteiras. Agora não podemos persuadir o Ocidente a honrar este compromisso por ele proposto.
A exigência sobre a língua russa está consagrada nos compromissos. A Ucrânia não os abandonou. Consegue imaginar o que aconteceria se a Finlândia proibisse o uso da língua sueca no seu país? Os suecos somam 6% da população da Finlândia, sendo o idioma sueco a segunda língua oficial do país. E se a Irlanda proibisse o inglês, a Bélgica, o francês, e assim por diante. Todas estas línguas minoritárias são respeitadas, apesar de terem um país materno, no caso da língua russa é feita uma exceção. É discriminação direta que é silenciada por toda a Europa iluminada.
Pergunta: Não quisemos esperar que fossemos expulsos do Conselho da Europa, decidimos retirar-nos por iniciativa própria. Porquê?
Serguei Lavrov: De facto, esta decisão foi tomada há muito tempo. Não porque tivéssemos os nossos direitos "suspensos", mas porque esta organização se degradou completamente. Havia sido concebida como organização pan-europeia com a participação de todos os países europeus sem exceção, menos a Bielorrússia que foi declarada como observadora. Ajudámo-la de todas as formas possíveis a participar em algumas convenções (é permitido no Conselho da Europa). De modo geral, a Bielorrússia estava a ponderar aderir.
Contudo, nos últimos anos, o Conselho da Europa transformou-se em mais uma OSCE (desculpe a palavra grosseira), onde toda a ideia original, a ideia de interação e consenso como principal instrumento de alcançar a cooperação e segurança pan-europeia, foi substituída por uma polémica, por uma retórica que se tornava cada vez mais russófoba e era determinada por interesses unilaterais do Ocidente, principalmente dos países da NATO e da União Europeia. Eles usavam a sua maioria física tanto na OSCE como no Conselho da Europa para "destruir» a cultura do consenso e do compromisso e garantir a aprovação das resoluções que só refletiam o seu ponto de vista, deixando assim claro que não queriam de todo ter em conta os nossos interesses, os menosprezavam e só estavam interessados em pregar-nos moral, o que, aliás, estavam a fazer.
Há muito que estávamos preparados para nos retirar de lá, os acontecimentos recentes e a decisão que foi imposta pela votação impulsionou-nos a fazê-lo. A Assembleia Parlamentar pôs-se a recomendar algo ao Comité de Ministros e este último votou a favor da suspensão dos nossos direitos. Disseram-nos: não se preocupem, a única restrição é que não poderão participar nas reuniões, podendo, contudo, continuar a pagar as suas contribuições. Isto foi-nos dito diretamente.
A declaração do Ministério dos Negócios Estrangeiros salientou que nenhuma das garantias dos direitos humanos que constam da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (também nos retiramos deste documento, é elemento integrante do procedimento de retirada do C0onselho da Europa) será ferida nem violada. Em primeiro lugar, temos garantias constitucionais e garantias decorrentes de convenções internacionais em que a Rússia é parte. Estas são convenções universais: o Pacto Internacional sobre os Direitos Políticos e Civis; o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos e Sociais (em que os EUA não são parte); a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (em que os EUA também não são parte), e muitos outros atos que já foram incorporados, em grande medida, na nossa legislação. Agora os nossos advogados estão a ver, juntamente com o Tribunal Constitucional e o Ministério da Justiça, quais alterações que devem ser feitas às leis russas para que a retirada do Conselho da Europa não afete os direitos dos cidadãos russos.
Pergunta: Alguns países ofereceram-se para ajudar a estabelecer um diálogo entre Moscovo e Kiev. Entre eles esteve a França, agora está Israel. Hoje o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Mevlut Çavusoglu, chega a Moscovo. A Turquia também está ativa. Porque é que os três estão tão ativos neste caso?
Serguei Lavrov: Eles não são os únicos ativistas a oferecer os seus serviços. Ontem, o Presidente da Rússia falou com o Presidente da União Europeia, Charles Michel. Teve contactos com o Chanceler alemão, Olaf Scholz, com o Presidente francês, Emmanuel Macron, e com o Primeiro-Ministro israelita, Naftali Bennett. De vez em quando, sou abordado pelos meus colegas de outros países. Em particular, a Suíça, que tradicionalmente se posiciona como país onde se chega a compromissos, oferece-se para mediar.
Nestas circunstâncias, é um pouco estranho ver que os países que se juntaram às sanções sem precedentes contra a Rússia e têm o objetivo (já não se constrangem a dizê-lo abertamente) de colocar o povo russo contra as autoridades russas se oferecem para mediar. Já as propostas de mediação feitas pelos países que se recusam a jogar este jogo russófobo, que compreendem as causas profundas da crise atual e que se trata de interesses vitais e legítimos da Federação da Rússia, e que não se juntam a esta guerra de sanções, são bem-vindas. Estamos dispostos a estudá-las. Entre estes países estão Israel e a Turquia.
Pergunta: Eles vêm e dizem: deixem-nos ajudar a estabelecer um diálogo? Ou como é que isso acontece?
Serguei Lavrov: Isso acontece de formas diferentes. Não posso entrar em detalhes agora, mas ambos querem ajudar a alcançar um acordo nas negociações que estão a decorrer no "canal bielorrusso". Estão cientes da situação nas negociações, das propostas que estão em cima da mesa e dos aspectos que registam uma convergência das posições, tentando sinceramente acelerar esta convergência. Congratulamo-nos com isto, mas gostaria de salientar mais uma vez que a chave é um diálogo direto entre as delegações russa e ucraniana e a resolução das questões que têm importância crucial para nós e que estão relacionadas não só com a segurança física das pessoas no leste da Ucrânia e noutras regiões do país como também com a criação de condições para uma vida normal, civilizada no país que deve garantir os direitos daqueles que se chamam minorias nacionais e cujos direitos foram violados em todos os sentidos.
Não esqueçamos os objetivos da desmilitarização. Não pode haver na Ucrânia armas que constituam uma ameaça para a Federação da Rússia. Estamos prontos a negociar os tipos de armas que não constituem uma ameaça para nós. Este tópico deve ser resolvido, considerando-se ou não a questão da adesão do país à NATO. Mesmo que o país não seja membro da NATO, os EUA ou outro país podem entregar à Ucrânia armas de ataque no âmbito de contactos bilaterais, à semelhança do que aconteceu na Polónia e na Roménia onde instalaram as suas bases de defesa antimíssil sem consultar a NATO. Não esqueçamos que é provavelmente o único país da OSCE, da Europa, a legislar o direito dos neonazis de promover as suas opiniões e as suas práticas.
Estas são questões fundamentais. Espero que a compreensão de que são legítimas, justas e crucialmente importantes para os nossos interesses e, portanto, para os interesses da segurança pan-europeia, permita àqueles que se oferecem para ajudar promover os respetivos compromissos também nos contactos com o lado ucraniano.
Pergunta: Acabámos de citar alguns países que estão a ajudar a resolver esta crise. Os EUA ofereceram-se para ajudar a estabelecer um contacto? Afinal de contas, não é segredo para ninguém que as relações entre a Rússia e os EUA estavam a um nível muito baixo. Agora "atingiram o fundo do poço", não é?
Serguei Lavrov: Com efeito, esta expressão figurativa existe. Isto nunca tinha acontecido antes. Não me consigo lembrar de uma política tão frenética como a que Washington está a seguir neste momento. Em grande medida, é gerada no Congresso que perdeu o sentido da realidade e põe de lado todas as convenções, não falando sequer do decoro diplomático que há muito menospreza.
Os EUA desempenham certamente um papel decisivo na posição das autoridades de Kiev, possuindo, durante muitos anos, uma grande "representação" nos "corredores do poder" em Kiev, incluindo nas forças de segurança e no alto oficialato das forças armadas. Todo o mundo sabe que a CIA e outros serviços secretos têm aí os seus escritórios.
Eles e outros membros da NATO (canadianos e britânicos) enviaram os seus instrutores às centenas para treinar não só militares ucranianos, mas também os chamados batalhões voluntários, entre os quais o Azov e o Aidar, apesar de o batalhão Azov ter sido retirado oficialmente das listas de beneficiários da ajuda norte-americana há sete ou oito anos, imediatamente após o golpe de Estado de 2014, precisamente porque foi considerado organização extremista, para não dizer terrorista. Agora todas as convenções foram postas de lado.
Qualquer pessoa, estrutura na Ucrânia que declare a Rússia como país inimigo ficam logo sob a proteção dos patrocinadores estrangeiros e ocidentais.
Eles costumam falar sobre o primado do direito e da democracia. De que primado do direito se pode tratar numa altura em que a União Europeia decide enviar armas ofensivas para a Ucrânia, em violação do seu documento legislativo sobre a inadmissibilidade de fornecer armas a zonas de conflito?
Não vemos que os EUA estão interessados em resolver o conflito o mais rapidamente possível. Se estivessem mesmo, têm todas as oportunidades para o fazer: primeiro, poderiam explicar aos negociadores ucranianos e ao Presidente Vladimir Zelensky que deve procurar compromissos; segundo, eles compreendem que as nossas exigências, as nossas posições são legítimas, mas não querem aceitá-las não porque estas sejam ilegítimas ou injustas, mas porque querem dominar o mundo e não se querem limitar por nenhuns compromissos de ter em conta os interesses dos outros. Eles "subjugaram" a Europa, já o disse.
Os EUA disseram, durante muitos anos, à Europa que o Nord Stream 2 iria violar a sua segurança energética. A Europa respondeu-lhes que resolveria sozinha esta questão. Tomaram uma decisão, investiram milhares de milhões de euros. Os norte-americanos disseram que isso ia ao arrepio dos interesses da UE e ofereceram-se para lhe vender o seu gás natural liquefeito, dizendo que, se a Europa não tivesse terminais para o receber, deveria construi-los. Os alemães contaram-me isto há alguns anos. Isso aconteceu na época de Donald Trump. A Europa queixou-se que isso iria fazer subir muito o preço do gás para os seus consumidores. Donald Trump disse então que eles eram "rapazes ricos e a diferença poderia ser compensada com recursos do orçamento alemão". É assim que eles encaram a situação.
Agora mostraram à Europa qual é o seu lugar. O facto de a Alemanha ter acabado por dizer que o órgão regulador faz uma pausa mostra qual é o lugar atribuído pelos norte-americanos à Alemanha e à Europa no cenário internacional.
Pergunta: A Alemanha é menos autónoma sob o novo chanceler? Teria feito o mesmo sob Angela Merkel?
Serguei Lavrov: A entrega do Nord Stream-2, apesar de uma suspensão temporária, ocorreu sob o novo chanceler. Espero que, com a experiência, venham a compreender que devem defender os seus interesses nacionais e não devem esperar que um parceiro além-oceano decida e faça tudo por eles. Claro que uma tremenda quantidade de tropas dos EUA no território alemão é também um fator que afeta a sua autonomia na tomada de decisões.
Agora publicam-se artigos a dizer que a "política da memória" vem desaparecendo. Sempre foi considerada sagrada na Alemanha, significando que o povo alemão nunca se esquecerá do sofrimento que trouxe na Segunda Guerra Mundial, sobretudo para o povo da União Soviética. Quando li isto, apercebi-me de que se tinha tornado evidente para muitos. São publicações abertas. Este assunto é comentado tanto por analistas políticos alemães como pelos nossos. Há vários anos, notei algo que era provavelmente uma semente desta tendência emergente. Tivemos consultas diplomáticas e outras com alemães (refiro-me à política externa) a diferentes níveis: de diretores de departamentos, vice-ministros. Não notei isso a nível ministerial. A mensagem que nos foi transmitida durante as negociações foi a seguinte: "Nós, alemães, já pagámos tudo e não devemos nada a ninguém. Basta recordar-nos".
Por falar dos alemães - há uma coisa curiosa. Estamos agora a falar muito de sinais de genocídio, discriminação racial. Bem, o cerco a Leninegrado. Nos meus contactos com os meus colegas, a começar por Frank-Walter Steinmeier, Guido Westerwelle, Heiko Maas, e agora Annalena Baerbock, levantei sempre a questão das indenizações aos sobreviventes ao cerco a Leninegrado. O governo alemão pagou duas vezes, indenizando apenas os sobreviventes de origem judaica. Quando lhes perguntámos a razão por que indenizaram apenas os judeus e que dizer dos sobreviventes de origem russa, tártara e de outros grupos étnicos que continuam a viver em Leninegrado. Muitos deles ainda estão vivos. Como deveriam eles encarar o facto de que a indenização só foi paga aos judeus, embora tivessem passado fome juntos? Os montantes de indenizações não são grandes. Mas, em primeiro lugar, são importantes para muitos e, em segundo lugar, é o reconhecimento do facto de todos eles terem sofrido. Recebemos uma resposta curiosa. Os judeus, dizem eles, são vítimas do Holocausto enquanto os restantes não o são. As nossas tentativas de explicar aos legisladores e políticos alemães que o cerco a Leninegrado é uma "história" única da Segunda Guerra Mundial na qual a população não se dividia em judeus, russos e outros grupos étnicos, não levam a nada. Abordamos organizações judaicas. É também uma questão de honra para eles. Agora vamos continuar este trabalho. Em janeiro passado, celebrámos mais um aniversário do levantamento do cerco a Leninegrado. O Presidente da Rússia assinou um decreto sobre pagamentos únicos a todos os sobreviventes ao cerco, incluindo os judeus. A Alemanha não dá, por enquanto, provas de que a sua consciência despertou.
Pergunta: Uma pergunta que todos fazem a si próprios. Os acontecimentos na Ucrânia não farão com que o povo ucraniano se afaste ainda mais da Rússia?
Serguei Lavrov: Nunca tivemos reclamações contra o povo ucraniano. Eu pessoalmente tenho muitos amigos ucranianos. Adoro a cultura ucraniana, a doçura da língua ucraniana, a cozinha, o humor que é sempre um pouco irónico, revelando a conhecida esperteza inerente ao espírito nacional ucraniano. Estou certo de que a maioria esmagadora dos nossos cidadãos não tem problemas nem reclamações contra o povo ucraniano, tal como o povo ucraniano nunca teve quaisquer reivindicações contra a Rússia. A certa altura, eles começaram a "imbecilizar" o povo ucraniano e a coloca-lo contra os russos de todas as formas possíveis.
Isto havia acontecido muito antes do golpe de Estado, pouco depois da independência. Aqueles que jogavam no "grande tabuleiro de xadrez" como Zbigniew Brzezinski encaravam a Ucrânia como instrumento destinado a impedir que a Rússia recuperasse a sua influência que tinha sob o Império Russo e, depois, sob a União Soviética e a transformá-la (o que foi declarado abertamente) num player regional de "escalão médio". Optaram por esta política, cultivando a tendência para glorificar os radicais, nacionalistas ucranianos, inclusive Roman Shukhevych e Stepan Bandera, que foram declarados heróis nacionais. Isto aconteceu mais tarde, mas começaram a preparar o terreno no início dos anos 90. As eleições realizadas no início dos anos 2000 (altura em que os primeiros protestos de Maidan ocorreram) puseram a descoberto a essência da política ocidental. O Ministro dos Negócios Estrangeiros belga, Didier Reynders, que se tornou mais tarde Comissário de Justiça da União Europeia, havia declarado publicamente antes das eleições que o povo ucraniano tinha de decidir entre estar com a Europa ou com Rússia? Este princípio de "escolher entre" continua presente, inclusive nas ações públicas da UE. Criaram o programa de Parceria Oriental, convidando a Ucrânia, Moldávia, Bielorrússia e as três Repúblicas Transcaucasianas. Perguntámos-lhes (nessa altura ainda mantínhamos relações com a UE): o que é que acham de estes seis países terem laços profundos com a Rússia, não só culturais, linguísticos, históricos, humanitários, educativos, mas também económicos, um único sistema económico? Não deveriam os europeus, empenhados em expandir a sua parceria com eles, ponderar fazê-lo juntamente com a Rússia, para que não surja novamente a necessidade de "escolher entre", uma nova "linha de defesa" ou uma nova "linha de ataque" em relação à NATO? Foi-nos dito de forma bastante arrogante que "não era da nossa conta".
Do mesmo modo, em 2013, ano anterior aos protestos de Maidan em que a Ucrânia estava a caminho de assinar o Acordo de Associação com a UE na cimeira de novembro de 2013, o governo ucraniano chefiado na altura por Viktor Yanukovych condescendeu em informar-nos do que se tratava. Até então, eles não nos mostravam. Isso quando havia uma área de livre comércio da CEI. Quando olhámos o documento, dissemos-lhes: amigos, sabem, os vossos compromissos ao abrigo da área de livre comércio livre da CEI e os nossos compromissos são tarifas zero entre nós no que respeita à maioria esmagadoras das mercadorias. Quanto à UE, a Rússia, após 18 anos de negociações de adesão à OMC, tinha uma boa proteção tarifária de 15% a 20% (por um período bastante longo) em muitos itens: banca, seguros, agricultura (por um período, mas mesmo assim ainda existiam nessa altura). Agora vocês, amigos ucranianos, querem aplicar tarifas zero no comércio com a UE, tal como nas suas relações connosco. Neste caso, as mercadorias da Europa irão livremente, sem entraves, à Rússia através do território aduaneiro ucraniano, razão pela que teremos de colocar uma proteção tarifária na fronteira convosco. Propusemos realizar negociações a três: Rússia, Ucrânia e a Comissão Europeia. O então Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, disse que não era assunto nosso e que eles não interferem nas nossas relações comerciais com a China ou com o Canadá. Foi o que ele nos disse.
Viktor Yanukovych compreendeu que a assinatura do Acordo de Associação com a UE na cimeira da Parceria Oriental iria prejudicar a economia ucraniana e pediu à UE que lhe desse tempo para adiar e ver se havia possibilidade de mitigar as inevitáveis consequências negativas. Então eles deram o comando "ataca!" e os protestos de Maidan começaram.
Pergunta: A minha pergunta é sobre a Rússia. Muitas pessoas têm a sensação de que todos estão agora contra nós. Ainda há países que nos apoiam? Existem mesmo?
Serguei Lavrov: Sim, existem. De um modo geral, eles são a maioria. Não quero usar nenhum termo indelicado, mas a pressão a que estão sujeitos não tem precedentes. Nunca consegui imaginar isso. Eu sabia que os norte-americanos são capazes de fazer muita coisa para impedir quaisquer avanços positivos rumo a um mundo verdadeiramente multipolar e igual. Mas não podia imaginar no meu pior pesadelo que eles fossem fazer coisas "tão sujas" que não condiziam com uma grande potência. Os embaixadores norte-americanos têm a orientação de "intimidar" diariamente os líderes dos países anfitriões para que se recusem a fazer comércio com a Rússia, a comprar alguma coisa à Rússia, a vender à Rússia o que ela precisa, a contactar com a Rússia, a aceitar investimentos russos e a enviar à Rússia ministros, delegações. Não estou a brincar. Os meus amigos contam-me isso.
Não foi agora nem por causa da Ucrânia que isso começou. Há alguns anos, o Secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, fez um périplo pelos países africanos, dizendo sempre em conferências de imprensa em cada país que visitava o seguinte: instamos-vos, caros amigos africanos, a não fazer comércio e a não aceitar investimentos com origem na Rússia e na China, pois eles estão a fazer tudo em seu próprio benefício. Já nós, norte-americanos, trazemos-lhes a democracia, o mercado livre. Isso foi muito antes dos acontecimentos atuais. O que nos mais impressiona é que eles "chantageiam" civilizações tão antigas como a China, Índia, Egito. Os turcos também foram alvo destas exigências. Agora, no entanto, dizem-lhes que podem ficar com os S-400, mas devem cortar o "oxigénio" da Rússia. Não é digno de uma grande potência. Jen Psaki diz que a China deve compreender que eles "não a perdoarão" se "der a mão de ajuda" à Rússia. Como pode uma grande nação ser tratada desta forma?
Pergunta: A China reage de forma bastante dura a esta pressão.
Serguei Lavrov: Sim, mas a grosseria de Washington passa dos limites. Isso não será esquecido. A situação voltará ao normal de qualquer maneira. A imprensa ocidental, inclusive a alemã, já começou a publicar artigos. Muitos já começam a perguntar-se se precisam de negociar em dólares. A Arábia Saudita já quer negociar em yuan, não em dólares. Este processo não pode ser travado. Vladimir Putin tem dito repetidamente que os norte-americanos empenhados em resolver problemas políticos conjunturais, por mais importantes que estes sejam, estão a "cortar o galho" em que estão "sentados" numa perspetiva de longo prazo. O papel do dólar irá diminuir. A confiança nele está a diminuir significativamente.
Pergunta: Outra razão por que a confiança está a diminuir é que muitos entendem que não há mais regras do jogo e não há mais regras, em geral.
Serguei Lavrov: Claro que sim. Quando eles dizem "uma ordem mundial baseada em regras", isto, sim é que é a substituição de todos os conceitos. A propriedade privada é inviolável. O que quer que pensemos dos nossos oligarcas, mas quando as mansões e iates são apreendidos sem qualquer decisão judicial, simplesmente a mando do executivo. Estas mansões são invadidas por pessoas.
Pergunta: Algo semelhante à expropriação realizado após a Revolução de Outubro.
Serguei Lavrov: Exatamente. Onde está a presunção de inocência? Outro valor básico e fundamental da democracia ocidental, da democracia liberal. Não há nada disto.
Pergunta: Deixe-me perguntar sobre a ordem mundial. Na época da União Soviética havia um campo socialista, um campo capitalista, um movimento dos não-alinhados. Depois de todos estes acontecimentos, podemos esperar o surgimento de algumas novas estruturas não ligadas ao Ocidente?
Serguei Lavrov: Falando de campos, não esqueçamos que foi o Ocidente que, historicamente, deu vida ao termo "campo de concentração". Mostrou o que são genocídio, racismo, e muitas outras coisas. Em geral, os norte-americanos, realizando as suas políticas (cujo objetivo foi declarado), promovem a "ordem mundial baseada em regras", regras essas que estão a ser por eles elaboradas e que a Europa se dispõe a aceitar sob qualquer forma. Apenas o Presidente francês, Emmanuel Macron, continua a mencionar a necessidade de autonomia estratégica da UE. Ninguém o permitirá. Todos os outros membros da UE já se vergaram aos norte-americanos.
Os norte-americanos estão a construir um mundo unipolar. Se eles não compreenderem isso, tenho pena dos seus planificadores. Pelo menos a China e a Rússia, as grandes civilizações, não podem aceitar um mundo unipolar como dado adquirido. De qualquer maneira, haverá uma espécie de contrapeso. Alguém o construirá de forma mais suave, outro, de forma mais dura. Um mundo bipolar será criado de qualquer maneira. Será apenas um precursor de um mundo multipolar. Enquanto isso, teremos novamente dois campos por muitos anos. Um país como a Índia não jogará submissa o jogo norte-americano. Estão agora a tentar arrastá-la para as "alianças" que estão a ser criadas na Ásia-Pacífico apenas para conter a China e isolar a Rússia.
A própria Ásia-Pacífico foi rebatizada de Indo-Pacífico, em conformidade com a política de "flerte" com a Índia. Quando eles disseram que esta região passava a chamar-se Indo-Pacífico, perguntámos-lhes: qual era a diferença em relação à Ásia-Pacífico? Foi-nos dito que era uma região geopolítica maior e mais compreensível. Perguntámos-lhes: se se tratava do "Indo", havia dois oceanos, o Índico e o Pacífico, então isso significava que toda a África Oriental deveria fazer parte desta região? A resposta foi não. Se isso era "Indo", incluía o Golfo Pérsico, que fazia parte do Oceano Índico? Não responderam nada e fugiram-nos como o diabo da Cruz. Um mero "flerte" geopolítico com a Índia. Os nossos amigos indianos compreendem tudo isto. Discutimo-lo francamente com eles. Não querem ficar envolvidos em alianças militares de nenhum modo.
Conseguiram defender a QUAD, que eles tentaram transformar em algo militar, como aliança económica. A cooperação económica tem-se desenvolvido com base nas estruturas criadas em torno da ASEAN e da Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC), onde as portas estavam abertas a todos. Agora até o espaço económico começa a fraturar-se através de esquemas confrontacionistas.
A AUKUS é uma aliança político-militar. Eles estão agora a tentar atrair outros países, entre os quais o Japão e a Coreia do Sul. Estão a trabalhar ativamente neste sentido. O seu objetivo direto é dividir a ASEAN em dois grupos de cinco países cada.
Pergunta: O Ministro dos Negócios Estrangeiros turco está hoje em Moscovo e estará amanhã em Kiev. O que podemos esperar da sua visita?
Serguei Lavrov: Falámos com Mevlut Cavusoglu na semana passada em Antália. Tivemos conversações bilaterais detalhadas e uma agenda cheia. Os nossos Presidentes comunicam-se e abordam regularmente questões de princípio ao seu nível, após o que trabalhamos para implementar estes acordos nos nossos assuntos práticos. Trata-se da Síria, da troika de Astana. Ontem recebemos o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão.
Rússia, Turquia, Irão - há muito que falar, incluindo no que respeita à implementação das nossas decisões anteriores. Destacarei a necessidade urgente de erradicar os grupos terroristas da zona de desescalada de Idlib, a necessidade de pôr em ação o mecanismo permanente do Comité Constitucional que retoma os seus trabalhos no final deste mês. Espero que a Comissão de Redação que está a elaborar uma nova constituição e uma reforma constitucional comece a trabalhar permanentemente.
Temos também o tema da Líbia, onde a Rússia e a Turquia estão a procurar formas de apoio à solução política.
Pergunta: O tema da Ucrânia será abordado hoje?
Serguei Lavrov: Discutimos regularmente a Ucrânia em termos práticos. Houve problemas com cidadãos turcos que foram mantidos reféns em algumas cidades. Agora cerca de 116 cidadãos permanecem em Mariupol. Deviam ter saído ontem. Abrimos os corredores todos os dias. Simplesmente não lhes permitiram sair. Sabíamos onde eles estavam - numa mesquita em Mariupol, na cave.
Pergunta: Como reage Ancara ao facto de os seus cidadãos não serem autorizados a sair?
Serguei Lavrov: A Turquia compreende que a culpa não é nossa. Sabe que abrimos os corredores e que o problema está naqueles que controlam os territórios em questão. Eles contataram com o governo de Kiev para insistir em que as possibilidades proporcionadas pela Rússia não sejam bloqueadas e sejam aproveitadas. E toda uma série de outras áreas.
Temos uma questão relacionada com o Mar Negro, a cooperação no seio da Organização de Cooperação Econômica do Mar Negro (CEMN).
Pergunta: Há razões para o seu novo encontro com o Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano ou ainda não há nada o que conversar?
Serguei Lavrov: Se eles tiverem interesse, queremos compreender o que pretendem exatamente dizer-nos e ter a certeza que não se trata de mais uma tentativa de criar um canal de negociações paralelo para corroer o que está a ser feito no "canal bielorrusso", de simular as atividades por meio de efeitos externos, como os ucranianos o têm feito ao longo dos sete anos em que sabotaram os acordos de Minsk.
O Presidente Vladimir Zelensky e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmytro Kuleba, disseram-nos regularmente: vamos realizar uma cimeira no formato Normandia o mais rapidamente possível. Quando lhes perguntámos a razão por que não cumpriram a decisão da cimeira anterior que deveriam ter implementado na íntegra, eles disseram-nos: vamos reunir-nos para discutir tudo isto. É uma simulação das atividades por meio de lançamento de flashes de luz. Câmaras de televisão, toda a gente está sentada à volta da mesa a discutir alguma coisa, e ninguém está a fazer algo.
A Alemanha e a França colocaram-se ao lado de Kiev na sua recusa em implementar os acordos de Minsk. Começaram a dizer que não havia necessidade de diálogo direto com Donetsk e Lugansk. Que Kiev deveria resolver tudo com Moscovo, porque Moscovo "controla tudo aqui". Pregando-nos moral durante todos estes anos, eles não disseram nada sobre o bombardeamento de civis e infraestruturas civis da Região de Donbass e continuam em silêncio.
Um alto funcionário da UE contactou connosco. Perguntamos-lhe porque eles estavam tão histéricos por causa daquilo que os nossos militares estavam a fazer no âmbito da operação militar especial (atacamos pontualmente infraestruturas militares) e porque não se pronunciaram quando um míssil de fragmentação Tochka-U atingiu o centro de Donetsk a 14 de março. Ele disse-nos: "Ouvimos a vossa versão do que aconteceu". Não estou a brincar.
Pergunta: O que é mais difícil no processo de negociação neste momento? Quais são hipóteses de paz?
Serguei Lavrov: Há sempre hipóteses. Como diplomata, não tenho o direito de dar uma resposta diferente e de agir de forma diferente. As hipóteses devem ser sempre procuradas e utilizadas.
Sinto-me encorajado com algumas mudanças na retórica com o surgimento de perceções mais realistas do que está a acontecer. Embora estas declarações construtivas venham logo acompanhadas por uma lei que prevê uma pena de 15 anos de prisão para aqueles que contatarem com os russos. É um jogo. Não excluo que estas iniciativas de confronto tenham origem no estrangeiro e visem pôr fora de combate. É feito por pessoas que perderam completamente o contacto com a verdadeira a ciência política.
Quando a União Soviética deixou de existir, os cientistas políticos deixaram de ser procurados e de ser consultados. Eles simplesmente deixaram de formar sovietologistas e os russologistas. Isto está agora a sentir-se em muitas situações e resulta numa subestimação colossal do que está a acontecer no cenário internacional, onde a verdadeira multipolaridade está objetivamente a tomar forma, e numa superestima colossal das próprias capacidades e credibilidade junto de muitos países.