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Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, à cadeia de televisão "Al-Jazeera", Moscovo, 2 de março de 2022

403-02-03-2022

 

Pergunta: Muitas pessoas não acreditavam muito que a Rússia optasse por lançar uma operação militar especial na Ucrânia. O lado russo tem repetidamente exposto as causas disso, entre as quais uma ameaça de natureza estratégico-militar de Kiev. Que ameaças a Ucrânia representava ou podia representar para que a Rússia tivesse lançado uma operação militar?

Serguei Lavrov: Esta história remonta a uma época anterior a 2014, ano em que um sangrento golpe de Estado foi perpetrado na Ucrânia com o apoio do Ocidente, tendo começado nos princípios dos anos 90, altura em que a URSS estava a deixar de existir. Os líderes soviéticos (e mais tarde, russos) Boris Yeltsin e Eduard Shevardnadze receberam a promessa dos seus colegas ocidentais de que não haveria uma viragem geopolítica e que a NATO não aproveitaria a nova situação e não deslocaria as suas infraestruturas para leste e não admitiria novos membros. O Arquivo do Reino Unido publicou as gravações das conversações mantidas, deixando tudo bem claro.

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, falou muitas vezes sobre este assunto nos seus discursos públicos. Em vez de cumprir a sua promessa e manter a estabilidade na Europa, a NATO teve cinco vagas de alargamento a leste, instalando as suas tropas nestes territórios e dizendo que isso era "temporário", o que, em pouco tempo, se tornou, porém, permanente. Não cessavam de construir as suas infraestruturas militares. Agora, estão a tentar atrair para o serviço da NATO países neutros da UE ou países como a Suíça. O projeto "Mobilidade Militar" obriga a Áustria, Suécia e a Finlândia a conceder à NATO o seu potencial de transporte para o transporte das suas tropas. O sistema centrado na NATO passa a ser abrangente. A UE, com todos os seus slogans sobre a necessidade de "autonomia estratégica para a Europa", não se entusiasma com este tema e aceita tranquilamente ser um "apêndice" obediente da Aliança do Atlântico Norte.

Este período foi acompanhado por provocações abertas em relação aos países pós-soviéticos (sobretudo da Ucrânia) para obrigá-los a escolher entre estar com a Rússia ou com o Ocidente. Estas provocações foram feitas abertamente, desde as primeiras manifestações na praça de Maidan em 2003. O mesmo aconteceu na etapa subsequente em que a Ucrânia, sob Viktor Yanukovych, decidiu adiar a assinatura do acordo de associação com a União Europeia porque contrariava o acordo de área de livre comércio com a CEI que já existia. Viktor Yanukovych percebeu que era necessário harmonizar o regime comercial com a Rússia e outros países da CEI e com a Europa. Esta é a única razão pela qual Bruxelas organizou os protestos na praça de Maidan que culminaram com confrontos sangrentos em fevereiro de 2014.

No entanto, a "paz" foi alcançada. Foi assinado um acordo de resolução da situação com Viktor Yanukovych que previa a sua renúncia e a realização das eleições antecipadas (que não ganharia). A Polónia, França e Alemanha, que haviam assumido garantir a implementação do acordo em causa, mantiveram-se em silêncio e "engoliram sapos" quando a oposição perpetrou um golpe de Estado pôs no lixo as suas garantias. Até saudaram as forças que chegaram ao poder que, de modo geral, eram golpistas. A primeira coisa que os golpistas fizeram foi declarar que anulavam o estatuto especial da língua russa na Ucrânia e não queriam ver russos na Crimeia e enviaram para lá bandos armados. O povo da Crimeia recusou-se a obedecer àqueles que tinham levado a cabo o golpe de Estado.

Foi quando tudo isso aconteceu. Tudo começou nessa altura. Chegaram ao poder pessoas que apoiavam abertamente as tendências   neonazis na sociedade, a criação de organizações neonazis que realizavam marchas das tochas, cujos integrantes carregavam retratos de cúmplices criminosos de Hitler e gritavam slogans neonazis e russofóbicos. O Ocidente aceitou tudo isto sem reclamar. Muitos até apoiaram isso e encorajaram isso de todas as formas. Depois surgiu o tema da adesão da Ucrânia à NATO. Vladimir Zelensky chegou ao poder sob os slogans da paz e da necessidade de salvar vidas humanas e evitar a morte de ucranianos e russos. Acabou por ser tão russofóbico como o governo de Petro Poroshenko, tendo chamado aos habitantes da Região de Donbass "espécimes". O primeiro-ministro do governo do presidente anterior, Arseniy Yatsenyuk, havia-lhes chamado "não-humanos".

Vladimir Zelensky não fez nada no que respeita à guerra sangrenta travada contra o seu próprio povo. De facto, mentiu prometendo repor a ordem e assinando numerosos acordos com a Região de Donbass. Ele violava-os sem piscar um olho. Durante todos estes oito anos tentámos apelar à consciência do Ocidente e chamar à razão este regime, que estava a assumir todos os contornos de um regime ultrarradical e neonazi. O Ocidente não pôde fazer nada. Penso que ele não queria sequer fazer nada, porque, já nessa altura, a Ucrânia (e antes de 2014) era utilizada como instrumento para conter a Rússia. Toda a situação atual surgiu porque o Ocidente se recusou a reconhecer que a Federação da Rússia tinha os direitos iguais na organização da arquitetura de segurança europeia.

Prova disso foi a reação dos principais países da NATO, principalmente dos EUA, às iniciativas avançadas pelo Presidente Vladimir Putin em dezembro de 2021 sobre a necessidade de implementar honestamente o que havia sido acordado. Ninguém deveria fazer nada que pudesse prejudicar a segurança de outro país, escolhendo as suas possíveis alianças militares. Este compromisso foi aprovado ao mais alto nível e assinado pelos Presidentes, Chefes de Governo dos países da OSCE no âmbito do Conselho Rússia-NATO. O Ocidente recusa-se categoricamente a honrá-lo. Vladimir Zelensky disse que, se a Rússia não deixasse de exigir que a Ucrânia cumprisse os seus compromissos, então ele estaria a pensar em readquirir armas nucleares para a Ucrânia. Isso já era de mais.

Pergunta: Esta foi a principal causa?

Serguei Lavrov: Não. Tudo se ia acumulando. Há gotas que fazem transbordar a paciência. Sugiro considerar todas as coisas que listei como argumentos, fenómenos quotidianos que nos levavam, dia após dia, a crer que o Ocidente decidiu usar a Ucrânia para conter a Rússia, para criar uma "anti-Rússia" e uma "zona hostil", enchendo há um par de anos a Ucrânia de armas. Ultimamente, os fornecimentos de armas dirigidos à Ucrânia tornaram-se mais intensos. Os norte-americanos e os britânicos construíam no país bases militares e navais, por exemplo, no Mar de Azov. O Pentágono criava no país laboratórios biológicos militares para continuar as suas experiências com bactérias. Este programa dos norte-americanos é secreto e é executado noutros países da ex-União Soviética, à volta da Federação da Rússia.

A injeção de uma componente militar hostil para nós na Ucrânia tem sido muito intensa. Gostaria de recordar que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, já falou sobre isto várias vezes. Provavelmente nada teria acontecido em 2014, não teria havido protestos no leste da Ucrânia, nem referendo na Crimeia se o acordo que os alemães, os franceses e os polacos haviam assumido garantir tivesse sido implementado. Todavia, eles demonstraram a sua incapacidade de forçar Kiev a respeitar as assinaturas dos chamados grandes europeus. Agora a questão é saber em que medida a União Europeia pode desempenhar um papel independente na manutenção da segurança europeia. Penso que a UE desempenhou o seu principal "papel" em 2014, altura em que não conseguiu fazer com que as garantias por ela dadas fossem respeitadas. Um golpe de Estado teve lugar, os golpistas enviaram bandos armados para a Crimeia depois de esta ter realizado um referendo, rejeitado os golpistas e decidido reunificar-se com a Federação da Rússia. Esta foi a maior contribuição da UE para a segurança europeia. Se isso não tivesse acontecido na Crimeia, se a Crimeia tivesse permanecida ucraniana, teria agora bases militares da NATO, o que é categoricamente inaceitável para a Rússia.

Pergunta: A Ucrânia tem potencial para criar armas nucleares, uma ameaça para a Rússia?

Serguei Lavrov: Tem potencial técnico e tecnológico. O Presidente Vladimir Putin falou sobre isto, os nossos peritos também o comentaram. Posso dizer com responsabilidade que não permitiremos que isto aconteça. O objetivo da operação, anunciada pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e que continua, é proteger as pessoas, principalmente da Região de Donbass, que foram bombardeadas e mortas durante oito anos sem qualquer atenção e compaixão por parte das sociedades e dos meios de comunicação social ocidentais. Estes últimos tentaram evitar apresentar aos seus telespectadores e ouvintes o que estava a acontecer "in loco», preferindo acusar sem fundamento a Rússia de não cumprir os acordos de Minsk a fazer reportagens objetivas.

Esta operação militar especial tem um objetivo claro, tendo em conta a experiência das últimas décadas decorridas desde o colapso da União Soviética, de desmilitarizar a Ucrânia. Há que identificar tipos de armas de ataque que nunca serão criados e instalados na Ucrânia. Outro objetivo é desnazificar o país. Não podemos ver os participantes das marchas das tochas marcharem na Europa moderna sob bandeiras neonazis e gritarem (como durante as manifestações de Maidan nos anos 2013 e 2014): "Russos à Forca", Morte aos Russos". 

Fico espantado ao ouvir comentários de políticos europeus, especialmente alemães. A minha colega Annalena Baerbock disse que, considerando a responsabilidade histórica de que a Alemanha está consciente, o seu país deve fornecer armas à Ucrânia. Como devemos entender isso? Que a culpa histórica e a compreensão da sua culpa histórica obrigam a Alemanha a apoiar neonazis? Isso cria associações um pouco estranhas. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que hoje em dia a União Europeia e a Ucrânia já estão mais próximas do que nunca. O que quis dizer com isso? Pode ser que este seja um sinal de que, enquanto tu fores russofóbico, enquanto fores fascista, enquanto fores neonazi, tudo é permitido para ti.

Consegue lembrar-se de uma situação semelhante ao que a Rússia está agora a fazer na Ucrânia, repondo a justiça? Quando centenas de milhares de iraquianos, líbios e sírios foram mortos nos países em que os EUA e os seus aliados "iluminados" do campo democrático puseram os seus olhos e que distavam milhares de quilómetros das suas fronteiras.    Bastou aos EUA um frasquinho de vidro e dizer que este ameaçava a sua segurança para justificar a invasão norte-americana do Iraque. Onde está o Iraque e onde estão os EUA? Onde está a Líbia e onde estão os EUA? Eles consideram-se no direito de fazer isso. Nenhum organismo internacional ergueu a sua voz para dizer que se tratava de uma violação do direito internacional, de um desencadeamento de hostilidades sem qualquer fundamento.

Olhe para a histeria levantada como se fosse por ordem de alguém relativamente às ameaças à segurança russa mesmo na nossa fronteira. Os EUA "deram a ordem de tomar a posição de sentido", como dizemos, a todo o mundo ocidental, a todas as organizações internacionais onde o Ocidente tem uma posição determinante, e estão a tentar tornar o desporto internacional e a cultura refém dos seus esforços, para não permitir que a justiça se faça nos assuntos internacionais, que se inicie uma discussão séria sobre uma arquitetura de segurança na Europa que garanta a igualdade de todos os Estados ali localizados.

Pergunta: Previu que os países ocidentais ficassem tão solidários antes de a Rússia anunciar a operação?

Serguei Lavrov: Estávamos preparados para tudo. Não tinha dúvidas de que a UE e, naturalmente, a NATO seguiriam submissas os EUA. Especialmente quando o destino do Nord Stream 2 ficou mais claro. Mesmo que seja posto em funcionamento (provavelmente não somos quem decide isso), independentemente de tudo, já é evidente que o Nord Stream 2 desempenhou o seu papel na história porque mostrou claramente o lugar que a Europa, incluindo a Alemanha, ocupa realmente no cenário internacional: um lugar completamente subordinado e não autónomo.

Não pensei que as sanções provocadas pela raiva impotente abrangessem o movimento desportivo, os intercâmbios culturais, os contactos interpessoais. Lembra-se de que, em anos anteriores, ao anunciar sanções contra países árabes, latino-americanos, o Ocidente repetia constantemente, pelo menos no Conselho de Segurança, que essas sanções não visavam pessoas comuns, visavam fazer com que o governo do país alvo sentisse a pressão da comunidade mundial e mudasse o seu comportamento. Agora ninguém fala disso.

Os contactos interpessoais foram totalmente proibidos por iniciativa dos países ocidentais que sempre defenderam a tese de não dever haver     obstáculos à comunicação entre as sociedades civis. Puseram no lixo todos os seus princípios que impuseram no cenário internacional e quando começaram a arrestar os ativos do Banco Central da Rússia e das nossas empresas privadas. Isso é um roubo. Eles abandonaram todas as regras que nos últimos 70 anos implantaram na vida internacional. Puseram no lixo estas regras e voltaram ao capitalismo selvagem e gangster da época da corrida ao ouro.

Pergunta: Em que medida está a Rússia em condições de resistir a esta pressão política e económica num futuro próximo?

Serguei Lavrov: Podemos resistir a qualquer pressão. Se alguém tem dúvidas sobre isso, aconselho-os a estudar a história russa, a história do Império Russo, a história da União Soviética e a história dos episódios da nossa vida em que enfrentávamos a invasão dos exércitos inimigos.

Pergunta: Já se prepararam de antemão para este roteiro?

Serguei Lavrov: Viu quão raivoso está o Ocidente, quão agressivo ele é ao promover as suas teses sobre a inadmissibilidade do aumento da influência russa, quão coerente ele era consistente ao defender o governo fascista e neonazi na Ucrânia e ao tentar usá-lo contra a Rússia. Claro que nos preparávamos para as situações em que teríamos de contar com as nossas próprias forças. No entanto, nós temos amigos, aliados. Temos muitos parceiros no cenário internacional que, ao contrário da Europa e de alguns outros países, não perderam a sua autonomia e a sua capacidade de serem guiados pelos seus interesses nacionais. Eles também estão sob uma tremenda pressão. Sei ao certo que os norte-americanos enviam os seus embaixadores em todo o mundo para forçar qualquer país em África, América Latina, Ásia a fazer qualquer coisa contra a Federação da Rússia. Isto não condiz com uma grande potência que os EUA são. É indigno e infame. Mas estamos habituados a isso. Houve muitos casos na nossa história em que os nossos parceiros agiram a partir de posições pouco decorosas, utilizando métodos sujos. Vamos resistir. Estou 100% certo disso.

Pergunta: Quais são as hipóteses de uma solução política do conflito? Que concessões pode a Rússia fazer? A Rússia tem manifestado repetidamente que quer que a Ucrânia reconheça a Crimeia como parte da Rússia. O que mais?

Serguei Lavrov: Só temos de ser realistas. A Crimeia é uma questão não negociável. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, expôs claramente a nossa posição, que a nossa delegação trouxe para as conversações com os ucranianos na Bielorrússia. A Crimeia faz parte da Rússia, o reconhecimento das Repúblicas populares de Donetsk e de Lugansk dentro das fronteiras das regiões de Donetsk e Lugansk, a desmilitarização de acordo com parâmetros a serem acordados. Não deve haver armas que possam ameaçar a segurança da Federação da Rússia. A desnazificação. Assim como a Alemanha nazi foi submetida a este procedimento. Mais uma vez apelo: vejam vídeos publicamente disponíveis sobre a liberdade que têm neonazi na Ucrânia quando estão a marchar carregando retratos de criminosos de guerra. O Presidente Vladimir Zelenski envia a guarda presidencial para servir de guarda de honra para eles. Há muito trabalho a fazer.  

Estamos a fazer tudo para evitar graves vítimas entre civis. As nossas forças armadas, juntamente com as milícias das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, utilizam armas de alta precisão para destruir exclusivamente as infraestruturas militares das autoridades ucranianas no âmbito da desmilitarização.

Estas ameaças tornaram-se demasiado tangíveis. Certamente, estamos agora a assistir a uma guerra de informação, eu diria a um terrorismo de informação. Milhões de falsificações estão a ser postas em circulação. Estamos constantemente a desmenti-las. O website do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia tem uma secção especial onde os verdadeiros factos são publicados.

O senhor representa um meio de comunicação social renomado e poderoso. Devem compreender-me. Se tomarmos o conflito na Região de Donbass, durante todos estes oito anos, jornalistas russos dos mais diversos meios de comunicação social trabalharam 24 horas por dia e sete dias por semana na Região de Donbass do lado da milícia para mostrar a verdade, mostrando como vinham bombas, como áreas residenciais eram bombardeadas por lançadores múltiplos de foguetes, como escolas e jardins de infância eram destruídas e como civis eram mortos. Tudo isto podia ser visto ao vivo. Dissemos sempre aos nossos colegas ocidentais naquela etapa, ainda calma, desta terrível crise: porque não encorajam os vossos meios de comunicação social a trabalhar do lado ucraniano para verem os danos que aí estão a ser causados aos cidadãos e às infraestruturas civis? A BBC e alguns outros profissionais da comunicação social foram lá duas ou três vezes. Fizeram uma reportagem bastante objetiva. Era evidente que o que estava a acontecer do lado da linha de contacto controlado pelo governo não podia ser comparado com o horror causado pelo lado ucraniano nas Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk. Não devemos esquecer que, para além das forças armadas ucranianas, que, que eu saiba, ainda observam a disciplina, a menor que fosse, o lado ucraniano tem batalhões "voluntários" nazis que nem no Ocidente, nem nos EUA nem no Reino Unido são respeitados. Era proibido prestar-lhes qualquer assistência. Agora eles estão na crista da onda, tentando continuar as suas atrocidades, praticando encenações, inclusive em cidades.

Pergunta: Os nossos correspondentes estão em Donetsk há um mês.

Serguei Lavrov: Ultimamente, todos foram lá, eu sei.

Pergunta: O secretário de imprensa do Presidente russo, Dmitry Peskov, reiterou duas vezes que Moscovo considera Vladimir Zelensky como presidente legítimo da Ucrânia. Se isto é verdade, então porque é que as tropas foram enviadas para Kiev? Qual é o objetivo?

Serguei Lavrov: Desmilitarização.

Pergunta: Não é para mudar o poder?

Serguei Lavrov: Desmilitarização. Os ucranianos devem decidir por si próprios como eles vão viver, depois de este conflito, que eles desencadearam e a que nós tentamos agora pôr fim, acabar. Isso agora está a ser discutido nos círculos dos cientistas políticos. Eu não participo nestas discussões. A nossa posição é unívoca e diz que isso deve ser a opinião de todos os povos que habitam a Ucrânia.

Quanto a Vladimir Zelensky, sim, ele é presidente. Infelizmente, ele é presidente que mentiu ao seu povo que o havia elegido por prometer acabar com a guerra. Continuou até recentemente e agora continua a fazer a mesma coisa: promover abordagens anti-russas e russofóbicas, fazendo declarações extremamente contraditórias. Por um lado, pede que a Ucrânia "seja admitida com urgência na NATO", por outro lado, diz que, se "não nos admitirem na NATO, dêem-me garantias", "estou pronto a aceitar garantias de segurança". Devia tê-lo dito antes. As garantias de segurança são exatamente o que procuramos e o que propomos. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse muitas vezes em janeiro e nos princípios de fevereiro que não aceitaríamos uma segurança europeia baseada no domínio da NATO, tanto mais na nossa vizinhança. Vamos encontrar outro caminho, disse ele, e nós repetimos isso muitas vezes. Um caminho que dê firmes garantias de segurança à Ucrânia, aos países europeus e à Federação da Rússia. É neste sentido que devemos avançar. O facto de o Presidente Vladimir Zelensky ter anunciado a sua disponibilidade, ou melhor, o seu desejo de obter garantias de segurança é positivo. Os nossos negociadores estão prontos para uma segunda ronda de discussões sobre estas garantias com representantes ucranianos. Todavia, os representantes ucranianos ainda não confirmaram a sua disponibilidade para a segunda volta, como na primeira reunião. Vão protelar. Penso que também os norte-americanos não lhes permitem aceitá-la. Ninguém acredita agora na independência de Kiev.

Pergunta: Após a primeira ronda, existem pontos positivos que permitem seguir adiante?

Serguei Lavrov: Os participantes nestas conversações já comentaram isso, Dmitri Peskov também o comentou. Não vamos agora entrar em pormenores, porque esta é apenas a fase inicial, mas o facto de as partes terem concordado em reunir-se pela segunda vez indica que estão dispostas a procurar soluções. Já disse qual é a nossa posição. O lado ucraniano conhece-a muito bem.

Pergunta: O que acabou de dizer, as vossas exigências não são um ato de capitulação para a Ucrânia?

Serguei Lavrov: Não creio que isso possa ser qualificado desta forma. O principal aqui não é um termo a ser utilizado. Estamos a propor um acordo para garantir os direitos legais de todos os povos que vivem na Ucrânia, o que inclui todas as minorias nacionais sem exceção e implica a igualdade dos seus direitos. Isso deve ter reflexos na legislação da Ucrânia que tem agora uma lei sobre os três povos indígenas, como se os russos nunca tivessem vivido no solo ucraniano. Estas coisas criam uma base legislativa para a continuação da política russofóbica e não só, uma política voltada contra todas as outras minorias nacionais: húngaros, romenos, polacos, búlgaros. Consideramos que deve ser o povo ucraniano a resolver esta questão. Se as autoridades concordarem com as condições que estão agora a ser discutidas, haverá um acordo.

Pergunta: O Reino Unido diz que é necessário tirar à Rússia o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Poderia dizer se existe algum mecanismo para levar à prática esta iniciativa?

Serguei Lavrov: Não existe nenhum mecanismo. Não tente explicar nada aos representantes britânicos. A sua total inadequação é geralmente conhecida.

Pergunta: As sanções que foram agora impostas à Rússia: o espaço aéreo na direção da Europa está encerrado. O senhor não acha que isso colocou a Rússia por detrás de uma cortina de ferro?

Serguei Lavrov: Winston Churchill estava sempre preocupado em fechar a cortina de ferro. O Reino Unido está evidentemente a sentir-se desconfortável ao ver que vem sendo esquecida após abandonar a União Europeia ao realizar o Brexit (a notícia ganhou, em tempos, as manchetes dos noticiários). Agora está à procura de possibilidades para voltar a ser "ativo" no cenário internacional, atuar juntamente com os EUA e ajudar a manter a Europa sob o controlo norte-americano. Não creio que haja necessidade de promover ideias que se oponham à cortina de ferro. É claro para todos que a construção de uma cortina de ferro é apanágio daqueles que pensam com base nos conceitos obsoletos: colonialismo, neocolonialismo. Estes conceitos evocam sentimentos de nostalgia, especialmente nos britânicos. Mas se for esta a decisão do Ocidente, posso assegurar-lhe que saberemos encontrar uma forma de continuar a viver e a desenvolver-nos e não nos preocuparemos muito com o que os nossos parceiros ocidentais fizeram, provando mais uma vez que não são parceiros confiáveis e não são capazes de buscar acordos.

Pergunta: Não terá a Rússia sido provocada a iniciar uma guerra na Ucrânia? Não terá sido provocada pelo Ocidente para se atolar neste "pântano"?

Serguei Lavrov: Não excluo que alguém quisesse que a Rússia se atolasse neste conflito criado pelo Ocidente. Agora os cientistas políticos ocidentais estão a escrever que isto permitirá aos norte-americanos ter as mãos livres e começar a conter a China. Um pensamento cínico, totalmente neocolonial e típico dos nossos parceiros ocidentais. Não excluo que tenha sido este o caso. A nossa determinação em evitar que o sangue continue a correr na Ucrânia, em impedir que a Ucrânia seja utilizada como cabeça de ponte para um ataque à Federação da Rússia não é determinada pelo que o Ocidente planeou ou não planeou - baseamos as nossas decisões nos factos "in loco". Eram extremamente preocupantes. O Ocidente estava a fazer os possíveis para tornar estes factos materiais cada vez mais ameaçadores para a Rússia.

Pergunta: Já chegámos ao extremo? Estaremos à beira da Terceira Guerra Mundial?

Serguei Lavrov: Tem de perguntar isso ao Presidente Joe Biden. Ele disse que, se não tivéssemos seguido o caminho destas sanções, a única alternativa teria sido a Terceira Guerra Mundial. Pensar desta maneira… No final de contas, Joe Biden é um político experiente, independentemente do que se pense sobre o que os EUA estão a fazer no cenário internacional. Em junho de 2021, em Genebra, ele e o Presidente Vladimir Putin reiteraram claramente a declaração feita pelos líderes da União Soviética e dos EUA nos anos 80 de que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser desencadeada. Em janeiro de 2022, os cinco líderes dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU assinaram uma mesma declaração multilateral, desta vez coletiva.

Se uma pessoa, quando perguntada se poderia haver algo diferente desta onda de sanções, diz que a alternativa só poderia ser a Terceira Guerra Mundial, ela não pode deixar de compreender que a Terceira Guerra Mundial só pode ser nuclear. Os velhos instintos devem ainda estar presentes na mente dos nossos parceiros ocidentais se o consideram possível, apesar da posição publicamente reiterada pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.  


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