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Intervenção inicial e respostas do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, a perguntas da comunicação social após as conversações com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Mevlut Cavusoglu, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmitry Kuleba, Antalya, 10 de março de 2022

483-10-03-2022

Senhoras e Senhores,

Hoje tivemos uma reunião com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Mevlut Cavusoglu, à qual se seguiu uma reunião trilateral com a participação do Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmitry Kuleba, realizada por sugestão do lado turco. Esta iniciativa fora anunciada pelo Presidente da República da Turquia, Recep Erdogan, numa conversa com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Aceitámos a proposta dos nossos colegas turcos, pois defendemos, em princípio, quaisquer contactos sobre os problemas subjacentes à atual crise ucraniana e sobre questões relacionadas com a busca de soluções para a mesma.

A única condição que colocámos desde o início era que estes contactos tivessem um valor acrescentado. Acreditamos que não serão utilizados, sobretudo pelos nossos colegas ucranianos (coisas que eles fazem regularmente) para substituir ou desvalorizar as principais negociações atualmente mantidas no território bielorrusso entre as duas delegações aprovadas pelos Presidentes da Rússia e da Ucrânia.

A conversa de hoje confirmou que estas negociações não têm alternativa. Falámos sobretudo, por iniciativa dos nossos amigos turcos, sobre questões humanitárias. Explicámos as medidas que os nossos militares estão a tomar in loco para aliviar a situação dos civis que se tornaram reféns e são utlizados pelos chamados batalhões voluntários ucranianos e unidades de "defesa territorial" como escudos humanos. Estes factos são do seu conhecimento. Os nossos altos responsáveis, incluindo os do Ministério da Defesa, fazem regularmente, várias vezes por dia, comunicados de imprensa.  Reiterámos a iniciativa avançada em tempos pela parte russa de abrir diariamente corredores humanitários que continua em vigor. Os itinerários e o horário dos corredores são determinados por quem controla a situação in loco, com base numa análise da situação e na necessidade de escolher os itinerários mais seguros e eficazes para a saída dos civis.

Recordámos aos nossos colegas que, na mais recente ronda de conversações na Bielorrússia, a parte russa apresentou propostas muito concretas (já sob a forma de um projeto de documento jurídico), enquanto o lado ucraniano, tendo aceitado as nossas propostas para estudá-las em Kiev, garantiu-nos que daria uma resposta concreta daí a pouco tempo.

Queremos ter uma conversa séria no solo bielorrusso, não queremos limitar-nos a apresentar documentos informais, queremos acordar as coisas já aceites e que devem ser resolvidas no contexto de uma resolução global da crise ucraniana e da segurança no continente europeu de modo a levarem-se incondicionalmente em conta os interesses de todos os países sem exceção.

Isto é, em suma, aquilo de que falámos hoje. Estou agora à vossa disposição para responder às vossas perguntas.

Pergunta (via intérprete do turco): Vocês já calcularam os danos causados à Rússia pela guerra? São menores ou maiores do que vocês esperavam? Vocês considerariam uma intervenção fora do território ucraniano, visto que as armas (como vocês descobriram) fornecidas ao exército ucraniano vieram do Ocidente? Considerariam a instalação de sistemas Patriot na Polónia como uma ameaça direta? Deixam em aberto a questão da retaliação militar?

Serguei Lavrov: Não compreendi bem a tradução da sua pergunta. Quanto ao curso da operação militar especial, as avaliações são feitas por representantes do nosso Ministério da Defesa e, mais importante, pelo Presidente russo como Comandante Supremo. Ele sublinhou várias vezes que, de modo geral, a operação está a decorrer de acordo com o planeado.

Quanto ao fornecimento de armas à Ucrânia a partir do estrangeiro, sim, estamos a ver quão perigosas são as ações dos nossos colegas ocidentais, incluindo a União Europeia, que, em violação de todos os seus princípios e dos chamados "valores", está, de facto, a estimular o fornecimento de armas "letais" à Ucrânia, incluindo milhares de sistemas de mísseis antiaéreos portáteis, que podem ser transportados e colocados "no ombro" para qualquer lugar. É frequente os terroristas utilizarem-nos para criar ameaças para a aviação civil. Para onde irão então estes milhares de sistemas de defesa antiaérea portáteis? Fazemos esta pergunta aos nossos colegas da União Europeia quando mostram interesse em pôr fim à política que, durante muitos anos, fez da Ucrânia uma ameaça para a Federação da Rússia. Não há resposta. Como serão estes MANPADS controlados posteriormente? Assim, haverá riscos para a aviação civil nos próximos anos, e não apenas no espaço aéreo ucraniano, como também no espaço aéreo de toda a Europa.

Quanto à questão sobre se temos planos de atacar outros países, não estamos a planear atacar outros países, nem atacámos a Ucrânia. Na Ucrânia, como temos explicado repetidamente, surgiu uma situação que constitui uma ameaça direta à segurança da Federação da Rússia. Apesar de fazermos, durante muitos anos, apelos, declarações, propostas, ninguém nos deu ouvidos. O Presidente Vladimir Putin pronunciou-se detalhadamente sobre este tema várias vezes.  Os novos factos que estão agora a ser descobertos nos territórios libertados, particularmente nas regiões de Donetsk e Lugansk, mostram que um ataque a estas repúblicas foi cuidadosamente planeado e estava marcado para este mês.

Os factos relativos ao que o Pentágono está a fazer nos laboratórios biológicos criados com o seu dinheiro, utilizando o território ucraniano para fazer experiências com patógenos que, mais tarde, podem ser utilizados na produção de armas biológicas, são de indignar. Naturalmente, representantes de Washington negaram publicamente os boatos de estarem a praticar atividades proibidas na Ucrânia. O facto de os países da União Europeia terem começado imediatamente a dizer a uma só voz que também não tinham provas de que os norte-americanos estivessem a praticar atividades biológicas militares na Ucrânia também não é de surpreender. Também não é de surpreender que representantes das Nações Unidas tenham dito que também não dispõem destas informações. Claro que os norte-americanos têm vindo a realizar estas atividades muito secretamente. Do mesmo modo, têm atuado noutros países pós-soviéticos, criando os seus laboratórios biológicos militares à volta da Federação da Rússia e da República Popular da China. Portanto, não têm mais como esconder tudo isso. Existe a Convenção sobre a Proibição de Armas Biológicas e Toxínicas que exige que os Estados informem sobre as suas atividades no seu território nacional e no estrangeiro.

Aqueles que enchem a Ucrânia de armas devem compreender que são responsáveis pelas suas ações, tal como aqueles que encorajam o envio de mercenários para a Ucrânia para lutarem de acordo com as tradições implantadas pelos ultrarradicais no quotidiano ucraniano.

Pergunta (via intérprete do inglês): A Rússia usou diversas palavras para justificar a invasão da Ucrânia. No entanto, o senhor disse que isso era para o bem do povo ucraniano. Como se pode justificar o bombardeamento de uma maternidade e de um hospital onde as crianças estavam a ser tratadas? O senhor está de acordo com o Presidente Vladimir Zelenski quando diz que é uma atrocidade disparar contra mães e crianças? Quanto ao povo russo, a Rússia está à beira de uma crise da dívida - quarenta mil milhões de dólares - que fará a Rússia retroceder para 1917, para a época da revolução bolchevique. O que vocês dirão aos russos quando destruírem a sua economia por causa da invasão que o resto do mundo pensa que não deveria ter acontecido?

Serguei Lavrov: Esta não é a primeira vez que ouvimos declarações patéticas sobre as chamadas "atrocidades" cometidas pelas forças armadas russas. Há três dias, a 7 de março, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU, a nossa delegação apresentou os factos de que a maternidade em causa havia sido há muito tomada pelo batalhão ultrarradical Azov que expulsou de lá todas as mulheres em trabalho de parto, enfermeiras e todo o pessoal de apoio. Portanto, tire as suas próprias conclusões sobre a forma como a opinião pública é manipulada em todo o mundo.

Vi hoje algumas reportagens do seu canal e de outros meios de comunicação social ocidentais. Muito emotivo. Infelizmente, nunca prestam atenção ao outro lado de situações para ter uma noção objetiva.

Quanto à situação económica da Federação da Rússia, saberemos lidar com este assunto. Tanto o Presidente da Rússia como o nosso Governo estão a tratar do assunto. O senhor diz que usámos muitas palavras para justificar o que estamos a fazer na Ucrânia. Temos vindo a chamar a atenção para o facto de a Ucrânia ter sido transformada em "anti-Rússia" durante anos. O Ocidente tem vindo a exigir publicamente desde o início dos anos 2000, na véspera de cada eleição, que os ucranianos decidam com quem desejam estar: com o Ocidente ou com a Rússia. Isto é, ou vocês estão connosco, ou estão contra nós. Que valores ocidentais são estes que têm sido metidos nas cabeças do povo ucraniano? Vimos também outras coisas: quando um "candidato" pró-ocidental chegou em último lugar, isso aconteceu em 2009, o Ocidente, em violação da Constituição ucraniana, forçou o Tribunal Constitucional a decidir sobre uma terceira volta do escrutínio. Houve muitas manipulações deste gênero naqueles "bons anos". A Ucrânia tem sempre servido de ferramenta experimental pró-ocidental. Em última análise, a NATO começou a exigir que a Ucrânia tivesse total liberdade para aderir a esta aliança. No seu solo   começaram a criar-se bases navais, passou a tratar-se de instalar ali mísseis, o que representava uma ameaça direta para a Federação da Rússia. Agora descobrimos que ali havia laboratórios biológicos militares - também, às escondidas do povo ucraniano e da comunidade internacional. Quando passou a dizer-se que a Ucrânia deveria abdicar do seu estatuto não nuclear, apelámos à razão e à consciência dos nossos parceiros ocidentais e propusemos acordar os princípios da segurança no continente europeu. Foi-nos dito que poderíamos falar do que quiséssemos desde que não metêssemos o nariz nas questões do alargamento da NATO e que competia a eles resolver estas questões. Não se preocupem, o alargamento da NATO não ameaça a vossa segurança, disseram-nos eles.  Porque é que as questões relacionadas com a nossa segurança devem ser solucionadas pela NATO? Isto assim não pode ser. Não podem falar com a Rússia desta maneira. Não vamos justificar as nossas ações na Ucrânia. Os seus objetivos são muito concretos: não queremos que a Ucrânia seja militarizada e não importa se estiver ou não integrada na NATO, porque sistemas norte-americanos podem vir ali sem a ajuda da NATO e manter na mira o nosso território nacional. Não queremos que a Ucrânia se torne num Estado neonazi em que batalhões com distintivos da SS marchem em frente do Presidente da Ucrânia e se treinem para levar a cabo ações terroristas. Queremos que a Ucrânia seja neutra. O Presidente Vladimir Putin disse muitas vezes que, ao insistir que a NATO não se expande, não queremos de forma alguma negar a segurança ao povo ucraniano e ao Estado ucraniano. Estamos prontos a discutir garantias de segurança para o Estado ucraniano, juntamente com garantias para a segurança dos países europeus e a segurança da Rússia. O facto de agora, a julgar pelos discursos do Presidente Vladimir Zelensky, a compreensão desta abordagem estar a começar a rasgar um caminho, inspira-nos uma nota de otimismo.

Quanto aos nossos problemas económicos, saberemos resolvê-los. Superámos as dificuldades em todas as etapas da nossa história, sempre que elas surgiram. Desta vez, posso assegurar-vos, sairemos desta crise com uma psicologia e consciência completamente sãs. Não teremos ilusões de que o Ocidente possa ser um parceiro confiável; não teremos ilusões de que o Ocidente não traia em algum momento, inclusive os seus próprios valores. Onde se viu alguma vez que o direito à propriedade privada tenha sido espezinhado com o estalar de dois dedos? Onde se viu alguma vez que a presunção de inocência, como pilar do sistema jurídico do Ocidente, tenha sido simplesmente ignorada e grosseiramente violada? Asseguro-vos que vamos superar tudo e tudo faremos para não depender de forma alguma do Ocidente nas áreas da nossa vida de importância crucial para o nosso povo.

Pergunta: O chefe-adjunto do gabinete do Presidente ucraniano diz que o governo de Kiev está pronto para a busca de uma solução diplomática, afirmando, contudo, que as únicas negociações possíveis com os russos só poderiam ser a nível presidencial. O senhor acha que seria conveniente organizar neste momento ou no futuro conversações entre os Presidentes dos dois países?

Serguei Lavrov: Penso que é sabido por todos que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, nunca se recusa a contactos. Queremos apenas que estes contactos não sejam organizados só por contactar, mas para registar acordos concretos. Este tópico foi abordado hoje. Recordei a Dmitri Kuleba que somos sempre a favor de encontros, se isso ajudar a resolver o problema. A liderança ucraniana nos últimos anos decorridos desde o golpe inconstitucional tem preferido reunir-se só por se reunir para simular a busca de soluções concretas perante as câmaras de televisão. Quando os acordos de Minsk foram bloqueados pelo regime de Kiev, o Presidente Vladimir Zelensky continuou a exortar: "vamos encontrar-nos", "vamos finalmente encontrar-nos de novo". Naquela altura, recordámos aos nossos colegas ucranianos que, em dezembro de 2019, em Paris foi realizada uma cimeira do formato Normandia, as suas decisões foram dirigidas a Kiev, e nenhuma delas chegou a ser cumprida. Qual foi o sentido de nos termos reunido em Paris se se precisava de uma outra cimeira para que as decisões de Paris fossem implementadas? Esta é a sua maneira de substituir a essência de qualquer questão por efeitos externos: sugeriram também que o formato Normandia fosse alargado e que os britânicos, os norte-americanos e os polacos fossem convidados. Sugeriram que a Turquia também fosse convidada. Depois decidiram criar algo que atuasse em simultâneo com o Grupo de Contacto, depois convidar os franceses e os alemães para o Grupo de Contacto. O governo de Kiev foi "jorrando" iniciativas. Na reunião de hoje, reiterámos que o Presidente Vladimir Putin não se recusava a encontrar-se com o Presidente Vladimir Zelensky. Espero que, algum dia, esta necessidade venha a surgir. Todavia, para tanto, precisamos de realizar o trabalho preparatório que está a decorrer na Bielorrússia. Já foram realizadas três rondas. As nossas propostas muito concretas foram entregues ao lado ucraniano. Eles prometeram-nos que nos dariam respostas muito concretas. Estamos à espera.

Pergunta: Por todo o lado onde a Rússia entra "trazendo a paz" e a desnazificação, acontecem raptos, torturas. Isso aconteceu na Crimeia. Conhecemos os casos de cerca de 200 tártaros da Crimeia e do vice-presidente do "Mejlis dos Tártaros da Crimeia", Nariman Dzhelyalov. Nos territórios ocupados no sul da região do Mar de Azov foram raptadas hoje mulheres. Uma delas é tártara, deputada da Assembleia Legislativa da Região de Zaporozhye, Leila Ibraguimova. Vocês já passaram a outro nível. Não raptaram mulheres nos últimos oito anos. É importante que os meus colegas da Turquia saibam o que a Rússia faz aos tártaros da Crimeia não só durante oito anos na Crimeia. O que o senhor tem a dizer sobre isso? Estes são factos. Esta é a minha região natal: Genichesk, Melitopol (onde passei a minha infância).

Serguei Lavrov: O senhor disse que estes são factos. Penso que é outra palavra que começa também com a letra "f": falsificação. As falsificações inundam as transmissões, a Internet e os meios de comunicação em geral. Não conheço esta história do alegado rapto de uma deputada, mas conheço histórias pelas quais o regime de Kiev é famoso. Ontem ouvi dizer que o deputado Evgueni Shevchenko sumiu. Ainda não o encontraram? Denis Kireev, integrante da delegação nas negociações bielorrussas que participara na primeira ronda, foi assassinado. Primeiro disseram que ele foi sumariamente executado pelo Serviço de Segurança Ucraniano sob acusação de alta traição, depois disseram que era uma espécie de ajuste de contas. Se lidarmos com histórias individuais semelhantes, podemos encontrar muitas coisas interessantes e indignantes. Acho que usar um episódio, muito provavelmente fictício, e procurar sensibilizar a opinião pública, inclusive aqui na Turquia, para a construção de uma política antirrussa, significa substituir novamente uma conversa séria, negociações e ações por efeitos externos. Não ouvi falar sobre os casos dos deputados. Vou-me informar. Ouvi falar de Evgueni Shevchenko que desapareceu em Kiev e não em Zaporozhye.

Penso que o senhor já foi filmado, e o seu vídeo será exibido pomposamente no seu país de origem. Atingiu o seu objetivo.

Pergunta (via intérprete do inglês): Fala-se agora do uso de armas biológicas num ataque. O senhor tem algum comentário sobre isso?

Serguei Lavrov: Estamos preocupados com a informação de que o Pentágono instalou dezenas de laboratórios biológicos militares no território ucraniano no âmbito do seu programa de laboratórios em todo o mundo, ao arrepio da Convenção sobre a Proibição de Armas Biológicas e Toxínicas. Enviámos um pedido de esclarecimentos oficial. Vamos exigir uma explicação.

Não tenho informações de que já tenham utilizado estas armas. Todavia, o facto de se ter tratado de experiências destinadas à criação de armas biológicas, etnicamente orientadas, não deixa dúvidas.

Pergunta: Os EUA dizem abertamente que orientaram os seus embaixadores a persuadirem os governos de outros países a juntarem-se às sanções contra a Rússia. Orientou os nossos embaixadores a persuadi-los a não o fazerem?

Serguei Lavrov: Em qualquer situação informamos detalhadamente os nossos embaixadores sobre a nossa posição, sobre os factos vinculados a uma ou outra situação tratada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os nossos embaixadores transmitem esta informação às autoridades do país de acolhimento para que tenham um quadro objetivo.

Não é da nossa tradição forçar países soberanos, membros da ONU a cumprirem as ordens do "Grande Irmão". Afinal, somos, como sabem, pessoas educadas. Os norte-americanos não fazem segredo de que exigem que a Turquia, a Índia, o Egito, os países do sudeste asiático e até a China cumpram as sanções ilegais unilaterais impostas pelos EUA. Não podia imaginar um desrespeito como este por grandes países e civilizações. Mas para os norte-americanos, qualquer coisa serve para levar a sua russofobia a uma apoteose. Não praticamos coisas deste gênero.

Pergunta (via intérprete do inglês): O senhor disse hoje que a Rússia não está a invadir a Ucrânia, mas na realidade está. Também disse que não faria mal a civis, mas milhares de civis foram feridos, hospitais foram atacados. Porque deveriam os ucranianos acreditar no que lhes está a dizer e no que está a dizer a todo o mundo?

Serguei Lavrov: Quanto aos hospitais e maternidades, já disse tudo, mas o senhor não me está a ouvir. Isso nunca será mostrado, nenhum meio de comunicação social ocidental dirá que explicámos ao Conselho de Segurança da ONU há três dias o que havia acontecido àquela maternidade.

Quanto às declarações sobre quem vai fazer o quê ou quem não vai fazer o quê, quisemos resolver a questão diplomaticamente até ao último minuto. Apresentámos um projeto detalhado do nosso tratado bilateral com os EUA e um projeto de acordo Rússia-NATO sobre todas as questões-chave da segurança europeia, tendo em conta os interesses da segurança de todos os países do continente sem exceção, incluindo a Ucrânia. Foi-nos dito que a Ucrânia era "deles" e que eles e a Ucrânia decidiriam o seu destino a seu critério. Muitas outras coisas que propusemos, incluindo a prevenção de ameaças militares físicas à Federação da Rússia "no terreno", foram também rejeitadas. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, explicou claramente porque havia decidido realizar uma operação militar especial. Espero que o senhor (mesmo que não seja autorizado a contar isso ao seu público) possa ler o nosso documento e compreender a nossa lógica. É aí explicada. Queremos uma Ucrânia que seja amigável, desmilitarizada, em que não haja ameaça de surgir outro Estado nazi, que não proíba a língua russa, a cultura russa, a Igreja Ortodoxa. Infelizmente, tudo isto já foi criado e tem reflexos na legislação. Todas as nossas exortações durante os últimos oito anos após o golpe de Estado, os nossos apelos aos nossos colegas ocidentais para que chamassem à razão as autoridades ucranianas, enfrentaram um muro de silêncio. As coisas absolutamente óbvias com a língua russa. A lei "Da garantia do funcionamento da língua ucraniana como língua oficial" declarou apenas a língua ucraniana como utilizável, prejudicando os direitos de todas as outras línguas incluindo em termos de ensino nas escolas primárias e instituições de ensino superior. Não fomos apenas nós, mas também a Hungria, a Bulgária e a Roménia que começaram a expressar o seu descontentamento. O governo ucraniano encontrou uma solução muito simples, abrindo uma exceção paras as línguas da UE. Elegante solução. Como resultado, só a língua russa foi completamente privada dos seus direitos garantidos pela Constituição da Ucrânia. O Ocidente calou-se e acalmou-se, o que mostrou mais uma vez o que o Ocidente precisava da Ucrânia, ele quer que a Ucrânia trabalhe constantemente contra a Rússia, contra tudo o que é russo.

A atitude do Ocidente para com o referendo da Crimeia é também uma política de padrão duplo. Não houve nenhum referendo no Kosovo. A NATO bombardeou a Jugoslávia para a desagregar. Quando o órgão legislativo do Kosovo declarou a sua independência, todo o Ocidente (quase todos os países) aplaudiu e apoiou-a como manifestação de democracia e liberdade de escolha. Porque é que os albaneses podem e os russos da Crimeia não podem fazê-lo? Os albaneses da Jugoslávia não foram apenas autorizados, foram encorajados de todas as formas possíveis a avançar nesta direção, porque o objetivo de longa data de um país com uma história rica como o Reino Unido sempre foi impedir que nos Balcãs e, na verdade, na Europa em geral houvesse países demasiadamente grandes. Sabemos muito bem que assim é. Provavelmente, um objetivo semelhante foi fixado no caso da Federação da Rússia.

Apercebemo-nos de que não se trata da Ucrânia, mas de uma agressão contra tudo o que é russo: os interesses, a religião, a cultura, a língua, a segurança, etc. A reação histérica do Ocidente às nossas ações mostra que é, de facto, uma luta de vida ou de morte pelo direito da Rússia de estar no mapa político do mundo e pelo respeito pelos seus legítimos interesses.

Pergunta (via intérprete do inglês): O Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano afirmou que não há progressos no cessar-fogo. Foram alcançados alguns resultados nas negociações? Quais são os vossos próximos planos?  

Serguei Lavrov: Não viemos aqui para substituir as negociações entabuladas no território bielorrusso pelos Presidentes russo e ucraniano. É aí que todas as questões práticas estão a ser discutidas. Explicámos detalhadamente o que deveria ser feito para pôr fim a esta crise. Entre as medidas anunciadas estão a desmilitarização, a desnazificação, a garantia do estatuto neutro da Ucrânia, e toda uma série de outras coisas. As partes mantêm ali um diálogo substantivo. Avisámos os nossos colegas desde o início da reunião de hoje que não iríamos criar aqui uma vertente de negociação paralela como o lado ucraniano gostaria que fizéssemos. Eles preferem sempre substituir um trabalho concreto para a implementação de acordos pela criação de novos formatos que devem necessariamente fazer manchete das notícias, simulando o trabalho real.

Não me surpreendo que Dmitri Kuleba tenha dito que não conseguimos chegar a acordo sobre o cessar-fogo. Ninguém aqui ia negociar um cessar-fogo. Todas estas propostas e a sequência de passos delineados nestas propostas são bem conhecidas do lado ucraniano.

Se o objetivo da reunião era fazer perguntas: "vamos cessar o fogo", "vamos construir corredores humanitários de um modo conveniente ao lado ucraniano e não como propõe o lado russo", tudo isto foi feito apenas para dizer aos jornalistas que todas as nossas boas intenções fracassaram. Isto está de acordo com a lógica da diplomacia ucraniana que já mencionei. Efeitos externos destinados à perceção momentânea do público e a substituir o trabalho real.

Pergunta (via intérprete do inglês): A minha pergunta é sobre o embargo imposto pelos EUA às importações de petróleo e de gás com origem na Rússia. Qual é a política petrolífera da Rússia para a Europa? Como é que a Rússia reage às sanções impostas por empresas e países?

Serguei Lavrov: Já disse que vamos resolver este problema. A nossa solução será tão especial que nos permita jamais depender dos nossos parceiros ocidentais, sejam eles governos ou empresas que não se orientem pelos seus interesses comerciais, atuando como instrumento de uma agressão política do Ocidente enfrentada atualmente pela Rússia. Faremos com que não nos encontremos novamente numa situação como esta e que nenhum "Tio Sam" ou qualquer outro país possa tomar decisões que visem destruir a nossa economia. Vamos encontrar uma forma de não depender mais disso. Já o devíamos ter feito há muito tempo.

Sobre petróleo e gás. Deixamos tudo isso a critério e na consciência dos nossos colegas ocidentais. Nunca utilizámos petróleo e gás como arma, ao contrário do que nos acusam regularmente. A primeira crise ocorreu em 2010, altura em que o governo ucraniano começou a roubar gás destinado à Europa porque tinha deixado de pagar o seu. Estávamos a entregar corretamente gás à Europa, em plena conformidade com os nossos compromissos referentes aos volumes e preço, enquanto eles estavam a desviá-lo. Acha que a Europa tentou de alguma forma discipliná-los? De modo algum. A Europa começou a dizer que era a Rússia que estava a utilizar o gás como arma, sabendo perfeitamente o que realmente estava a acontecer. No que diz respeito à Ucrânia, o único critério aqui é aplicado: como poderia a Ucrânia ser utilizada para prejudicar a Federação da Rússia. A política de contenção do nosso país começou antes de ter sido oficialmente anunciada. Um aspeto a assinalar para caracterizar os valores europeus. Eles amaldiçoam-nos, usando todas as palavras possíveis, impuseram-nos sanções, proíbem as suas empresas de permanecerem aqui. Ao mesmo tempo, dizem que continuarão a comprar-nos petróleo e gás, porque, caso contrário, ficarão com frio. O Vice-Primeiro-Ministro russo, responsável pelo sector energético, Alexander Novak, explicou detalhadamente que não iríamos persuadi-los a comprar o nosso petróleo e gás. Se quiserem substituí-lo por alguma coisa, estejam à vontade. Teremos mercados para isso. Já os temos.

Pergunta (via intérprete do inglês): A Rússia tem alguma "linha vermelha" em relação aos países que enviam ajuda militar à Ucrânia?

Serguei Lavrov: Já respondi à pergunta sobre se iríamos reagir de alguma forma ao que os países que estão a armar a Ucrânia estão a fazer. Acreditamos que estes países representam uma enorme ameaça para si próprios, inclusive quando entregam armas perigosas, como mísseis antiaéreos portáteis, e quando observam indiferentes como as autoridades ucranianas entregam centenas de milhares de armas ligeiras a pessoas casuais indocumentadas. Nunca referimos quaisquer planos em relação aos países membros da NATO. A minha nova colega, Ministra dos Negócios Estrangeiros britânica, Elizabeth Truss, falou sobre isto. Ela disse que, se o Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, não perdesse na Ucrânia, não haveria limite para as suas ambições e os seus próximos alvos seriam países bálticos e a Moldávia. Não somos nós a dizer isto, mas Elizabeth Truss, que é famosa pelos seus aforismos. Quando ela profetiza um ataque aos países bálticos e à Moldávia, penso que as suas declarações condizem com a cultura, política e diplomacia inglesa, porque da mesma forma, os ingleses escreveram o falso testamento de Pedro I. Bem dentro do seu espírito.

Pergunta: O que ontem era inimaginável está a tornar-se possível hoje. Diga-me, por favor, o senhor acredita que uma guerra nuclear pode começar?

Serguei Lavrov: Não quero acreditar nisso nem acredito. Faço notar que, no contexto dos acontecimentos que se desenrolaram na Ucrânia nos últimos anos e que se intensificaram nos últimos meses e semanas, a questão nuclear foi lançada neste discurso exclusivamente por representantes ocidentais, sobretudo da NATO. Gostaria de lembrar que Elizabeth Truss (estamos a falar muito dela hoje) disse que não excluía um conflito entre a NATO e a Rússia. Como é que uma coisa destas pode vir à mente? O Secretário-Geral, Jens Stoltenberg (que, na minha opinião, já está a agir com demasiada independência, sem coordenar as suas declarações com todos os membros da NATO como deveria ser) disse que, se a NATO quiser, as armas nucleares serão instaladas nos territórios dos membros leste-europeus da aliança. O meu colega francês, Jean-Yves Le Drian, lembrou ao Presidente Vladimir Putin que a França também possui armas nucleares. A propósito, o Ministro da Economia francês, Bruno Le Maire, declarou orgulhosamente que o Ocidente declara guerra total à Rússia ("krieg total", como os "não franceses" diziam em tempos). Quando perguntaram ao Presidente dos EUA, Joe Biden, se havia alguma alternativa a estas "sanções do inferno", ele disse que a única alternativa era uma terceira guerra mundial. Isso lhes vêm sempre no seu subconsciente. Nunca dissemos isso. Claro que nos preocupa verificar que Ocidente volta constantemente a este assunto, como que cometendo deslizes freudianos.

Pergunta: O Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, propôs que o Cazaquistão fosse palco para as conversações entre a Rússia e a Ucrânia. A Rússia está a considerar esta proposta, e quando poderão ter lugar as próximas conversações entre as partes em conflito?

Serguei Lavrov: A Rússia agradece a todos aqueles que de boa fé se oferecem para ajudar a resolver a difícil crise interna ucraniana e que se dispõem a ajudar a encontrar uma solução de modo a levar em conta as preocupações de todas as partes, com base num equilíbrio de interesses. O mais importante é que estas propostas (que, como eu já disse, estamos certos de que os nossos amigos turcos e cazaques estão a fazer de boa fé), não sejam utilizadas indevidamente pela parte ucraniana, habituada a substituir a ação real para cumprir as suas obrigações por efeitos externos. Lembro-me de como eles queriam transferir o Grupo de Contacto para o Cazaquistão quando os acordos de Minsk ainda estavam em vigor; também propuseram transferi-lo para a Turquia. Por detrás de tudo isto estava e ainda está, estou certo, a sua indisponibilidade de fazer o seu trabalho que foi acordado. Todavia, com valor acrescentado, como disse o Presidente Vladimir Putin, e como lhes temos recordado repetidamente, a Rússia está pronta para uma variedade de formatos, que, porém, não devem ser convocados para "tagarelices".

Pergunta (via intérprete do inglês): A Rússia está realmente empenhada em buscar uma solução negociada para esta situação? Em caso afirmativo, que propostas fez, que progressos conseguiu?

Como o senhor pode falar da diplomacia, cessar-fogo e negociações quando há maternidades que são bombardeadas e tantos civis estão a sofrer?

Serguei Lavrov: Esta é a terceira vez que me perguntam sobre a maternidade, o que significa que o senhor não ouviu o que eu disse sobre este caso concreto colocado hoje na manchete pela sua corporação e por todos os outros principais meios de comunicação social ocidentais. Esta maternidade (dissemos isso no Conselho de Segurança das Nações Unidas a 7 de março) está há muito sem mulheres, crianças ou pessoal de apoio. Foi invadida pelo batalhão Azov e outros radicais que montaram ali o seu bastião, como fazem em toda a Ucrânia, transformando pessoas em escudos humanos, colocando material de guerra em áreas residenciais para bombardear as tropas russas e as milícias das Repúblicas Populares Donetsk e de Lugansk. Quanto às nossas propostas apresentadas a 15 de dezembro passado, eram extremamente sérias. Tratava-se de construir um sistema de segurança, não algo novo, com base nos acordos alcançados ao mais alto nível político, incluindo as cimeiras da OSCE de Istambul de 1999 e de Astana de 2010, onde estava escrito preto no branco que cada país tem o direito de escolher alianças, mas ninguém tem o direito de reforçar a sua segurança à custa da segurança dos outros. Esta fórmula foi acordada como conjunto. Foi o auge da diplomacia. Foi uma decisão assinada pelos líderes da Rússia e dos nossos vizinhos e (perdoem a minha imodéstia) do mundo livre. Nenhum Estado, grupo de países, organização no espaço europeu tem o direito de reivindicar um papel dominante, como a NATO está agora a fazer em flagrante violação de todas as obrigações dos seus Estados membros. A nossa proposta de concluir um acordo entre a Rússia e a NATO que codificasse e tornasse juridicamente vinculativos os princípios que acabei de expor e que foram importados dos documentos assinados ao mais alto nível, recebeu como resposta "bilhetes" de meia página de Jens Stoltenberg e Josep Borrell a dizer: não se preocupem, estamos dispostos a falar. O facto de termos recebido respostas dos chefes da União Europeia da NATO e não dos líderes de países individuais significa que o Reino Unido e outros líderes ocidentais lhes delegaram simplesmente todos os seus poderes e os tornaram responsáveis pelo cumprimento ou incumprimento das promessas contidas nos documentos das cimeiras da OSCE. Foi isto que os vossos representantes, representantes do Ocidente, fizeram à diplomacia.

Ainda queremos que a diplomacia decida todas as questões. Mas, desta vez, explicamos claramente que a desmilitarização, a desnazificação da Ucrânia são necessárias. Não devemos procrastinar. A ameaça militar, cultural, informativa, linguística e civilizacional direta à Federação da Rússia criada neste território tomou forma e tornou-se urgente. Se estivéssemos a lidar com pessoas probas, tudo já teria sido resolvido, e os acordos de segurança já teriam sido alcançados. No entanto, não vemos parceiros que estejam dispostos a negociar connosco honestamente, embora tenha havido tentativas para o fazer. Espero que os líderes ocidentais, agora animados pelo que está a acontecer na Ucrânia, estejam conscientes da ameaça existencial a toda a segurança europeia causada pela sua completa inação e falta de vontade de cumprir os acordos anteriores. Nunca quisemos uma guerra e continuamos a não querê-la. Queremos que esta guerra termine, isso é também do interesse das duas repúblicas que se recusaram em 2014 a aceitar o golpe de Estado inconstitucional e sangrento, o regime que observava orgulhosamente, com uma risota de escárnio nos lábios, os seus representantes queimarem pessoas vivas em Odessa, que enviou aviões militares para bombardear o centro da cidade de Lugansk, e que tem bombardeado áreas residenciais, aldeias, escolas, jardins de infância durante todos estes oito anos. Provas disso não faltam. Porque nós, os nossos jornalistas (honra lhes seja feita, inclino a minha cabeça perante todos aqueles que ali deram as suas vidas), mostrámos tudo o que se passava ali durante 24 horas por dia, 7 dias por semana. Os jornalistas ocidentais, por outro lado, praticamente nunca foram ver a linha de contacto ao longo destes oito anos, mostrando como a vida estava a correr bem do outro lado da linha de contacto. Cerca de 70% a 80% dos danos foram causados ao lado das milícias, o que indica quem normalmente inicia o bombardeamento. Representantes da sua corporação, a BBC, foram lá uma vez por alguns dias e, devo dizer, fizeram uma reportagem bastante objetiva. Mas não me lembro de ninguém no Ocidente cobrir todos os dias o tema da agressão do regime ucraniano contra o seu próprio povo, da sabotagem dos acordos de Minsk aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU e das declarações diretas sobre a sua recusa em cumprir este documento importante. Se tomarmos tudo o que está a escrever agora sobre o que está a acontecer na Ucrânia e confrontar com aquilo que nos tem vindo a dizer nos últimos oito anos, teremos um quadro muito ilustrativo sobre a liberdade de expressão, acesso à informação e muitas outras coisas que estão consagradas nas decisões tomadas ao mais alto nível político no seio da OSCE e que, como podemos ver, não são respeitadas pelos nossos colegas ocidentais.


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